31 de agosto 2021 às 17H04
Precatório é a forma constitucionalmente prevista para a União pagar dívidas em função das lesões por ela causadas às pessoas
Recentemente o governo federal apresentou ao Congresso a PEC 23/2021 que, relativamente aos precatórios federais, pretende (i) parcelá-los em 10 anos, (ii) compensá-los unilateralmente com dívidas inscritas em nome do credor; (iii) mudar o regime de correção monetária e juros; e (iv) aplicar tais regras retroativamente. A proposta veio ao ensejo da declaração do ministro da Economia, Paulo Guedes, que comparou o valor a ser pago pela União, a título de precatórios, a “um meteoro” que exigiria o disparo de “um míssil para impedir que o meteoro atinja a Terra”.
Cumpre esclarecer que o “meteoro” (precatório) é a forma constitucionalmente prevista para a União Federal pagar suas dívidas em função das lesões por ela causadas às pessoas (físicas e jurídicas, inclusive as de direito público interno), assim reconhecidas soberanamente pelo Judiciário. Por outro lado, o míssil, em português claro, nada mais é do que a proposta de constitucionalização de um calote sobre os credores do Estado, o que viola direitos e garantias individuais, afronta a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) e fragiliza a força normativa da Constituição Federal.
Nos dizeres de Konrad Hesse, a eficácia de uma Constituição é o que possibilita “imprimir ordem e conformação à realidade política e social”[1], revelando-se absolutamente “perigosa para força normativa da Constituição (…) a tendência para a freqüente revisão constitucional sob a alegação de suposta e inarredável necessidade política”[2].
O caso dos precatórios é paradigmático nesse sentido. Isso porque, das 110 emendas constitucionais aprovadas em apenas 32 anos da promulgação da Constituição[3], sete[4] delas cuidaram do tema precatórios. Foi assim, exemplificativamente, com a EC 33/00 e a EC 62/09. A constitucionalidade dessas emendas foi arguida perante o Supremo Tribunal Federal que as julgou inconstitucionais e alertou para o fato de que “a moratória de hoje é o prenúncio da moratória de amanhã” (Ministro Luiz Fux – ADI 4.357)[5], de sorte que “se esta Casa Maior da Justiça Brasileira interpretar o instituto do precatório com mais rigor (…) se os poderes constituídos perceberem que o desrespeito às ordens judiciais consubstanciadas nos precatórios encontram por parte desta Casa uma pronta reação, o Poder Público já não descumprirá, com tanto desembaraço, direitos subjetivos” (Ministro Ayres Britto – ADI-MC 2.356)[6]
Considerando a força normativa da Constituição, não é possível flexibilizar, a todo o tempo e a cada Governo de plantão, as regras constitucionais para pagamento das dívidas públicas decorrentes de condenação judicial.
Isso gera grave insegurança jurídica e abalo ao ambiente de negócios, em especial quando se constata que as “ideias” do governo já foram declaradas inconstitucionais pelo STF.
É o que procuraremos demonstrar na sequência.
Parcelamento obrigatório
A PEC busca parcelar os precatórios de duas formas distintas. Primeiro, ao alterar o §20 do art. 100 da CF de sorte que “caso haja precatório com valor superior a 1.000 (mil) vezes o montante definido como de pequeno valor conforme § 3º deste artigo (…)15% (quinze por cento) do valor desse precatório serão pagos até o final do exercício seguinte e o restante em parcelas iguais nos nove exercícios subsequentes”. Segundo, ao inserir o art. 101-A no ADCT que estabelece que “até 31 de dezembro de 2029, aplica-se o previsto no art. 100, § 20, da Constituição aos precatórios, em ordem decrescente de valor, a serem pagos pela União em determinado exercício que fizerem com que a soma dos valores, apresentados na forma do art. 100, § 5º, da Constituição, exceda 2,6% (dois inteiros e seis décimos por cento) da receita corrente líquida acumulada dos doze meses anteriores em que forem requisitados”.
Ao examinar os casos similares da EC 30/00 e da EC 62/09, o STF compreendeu que estaria fora do alcance do constituinte derivado impor parcelamentos no pagamento de precatórios, eis que isso afrontaria o núcleo duro da Constituição previsto no art. 60, § 4º, consistente nas cláusulas pétreas atinentes ao princípio da separação dos poderes (art. 2º, 60, § 4º, III da CF) e aos direitos e garantias fundamentais (art. 60, § 4º, IV da CF). A Corte considerou que os parcelamentos cuidavam de verdadeiros “calotes” que ofendiam os princípios da razoável duração do processo (CF, art. 5º, LXXVIII); do amplo acesso à justiça, da plena efetividade da prestação jurisdicional (CF, art. 5º, XXXV); do direito adquirido e da coisa julgada (CF, art. 5º, XXXVI), do direito de propriedade (CF, art. 5º, XXII):
“O art. 78 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, acrescentado pelo art. 2º da Emenda Constitucional nº 30/2000, ao admitir a liquidação ‘em prestações anuais, iguais e sucessivas, no prazo máximo de dez anos’ dos ‘precatórios pendentes na data de promulgação’ da emenda, violou o direito adquirido do beneficiário do precatório, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Atentou ainda contra a independência do Poder Judiciário, cuja autoridade é insuscetível de ser negada, máxime no concernente ao exercício do poder de julgar os litígios que lhe são submetidos e fazer cumpridas as suas decisões, inclusive contra a Fazenda Pública, na forma prevista na Constituição e na lei.” (Ementa MC-ADI 2356).
“(…) ambos os modelos de moratória violam, a mais não poder, a duração razoável do processo (CF, art. 5º, LXXVIII).Permitir que precatórios judiciais sejam saldados em até 15 anos – ou em prazos até maiores, considerada a ausência de balizas temporais no modelo de parcelamento previsto do art. 97, §1º, II, do ADCT – é medida que ultrapassa qualquer senso de razoabilidade. (…) a moratória criada pela EC nº 62/09 compromete ainda o amplo acesso à justiça e a plena efetividade da prestação jurisdicional (CF, art. 5º, XXXV). (…) ultraja ainda a Separação de Poderes (CF, art. 2º), o direito adquirido e a coisa julgada (CF, art. 5º, XXXVI), no mínimo quanto aos precatórios já expedidos na data de sua promulgação” (Voto Min. Luiz Fux ADI 4357).
Ademais, diferentemente dos Estados e Municípios (que possuem parcelamento vigente como forma excepcional de operacionalizar a supracitada decisão do STF na ADI 4.357), a União Federal está, há mais de uma década, em dia com o pagamento à vista de seus precatórios:
“(…)a União e suas entidades estão atualmente em dia com suas obrigações, de sorte que aplicar um índice de correção já declarado inconstitucional pelo STF terá o único condão de criar um passivo de precatórios e RPVs que hoje não existe na esfera federal, alimentando o ciclo de litigância judicial e todos os seus desdobramentos perniciosos (…)” (AC 3764, Min. Luiz Fux, DJe 24/03/2015).
Considerando esse cenário, além de violar os supracitados direitos e princípios constitucionais, a PEC romperá com a normalidade no pagamento de precatórios da União e criará um passivo impagável para as futuras gerações. Afinal, aos precatórios parcelados do exercício de 2022 se somariam, ano a ano, os futuros.
Compensação forçada
A PEC propõe que “o valor correspondente aos eventuais débitos inscritos em dívida ativa contra o credor do requisitório e seus substituídos deverá, conforme procedimento definido em lei própria, ser depositado à conta do juízo responsável pela ação de cobrança, que decidirá pelo seu destino definitivo”.
Medida similar de compensação forçada entre precatórios e débitos inscritos em nome do respectivo credor foi declarada inconstitucional pelo STF por violação aos princípios da proporcionalidade (art. 5º, caput, CF), da isonomia (art. 5º, caput, CF), do devido processo legal (art. 5º, LIV, CF), do contraditório e daampla defesa (art. 5º, LV, CF), da razoável duração do processo (art. 5º, LXXVIII, CF) e da separação dos poderes (art. 2 CF):
“esse tipo unilateral e automático de compensação de valores (…) embaraça a efetividade da jurisdição e desrespeita a coisa julgada (…) mesmo que veiculada por emenda à Constituição, também importa contratura no princípio da separação dos Poderes. No caso, em desfavor do Poder Judiciário. Como ainda se contrapõe àquele traço ou àquela nota que, integrativa da proporcionalidade, demanda a observância obrigatória da exigibilidade/necessidade para a restrição de direito. Isso porque a Fazenda Pública dispõe de outros meios igualmente eficazes para a cobrança de seus créditos tributários e não-tributários. Basta pensar que o crédito, constituído e inscrito em dívida ativa pelo próprio Poder Público, pode imediatamente ser executado, inclusive com a obtenção de penhora de eventual precatório existente em favor do administrado.” (Pag. 11/12 voto Min. Ayres Britto na ADI 4357).
“Por que apenas a Administração Pública, quando devedora, poderá ter seus débitos compensados com seus créditos? Não há justificativa plausível para tamanha discriminação. A medida deve valer para credores e devedores públicos e privados, ou acaba por configurar autêntico privilégio odioso. (…) manifesta ofensa ao princípio constitucional da isonomia (art. 5º, caput, CF/88) (…)” (Pag. 30 voto Min. Luiz Fux ADI 4357).
Alterações no índice de correção
O art. 3º da PEC prescreve que “nas condenações impostas à Fazenda Pública, independentemente de sua natureza e para fins de atualização monetária, remuneração do capital e compensação da mora, inclusive do precatório, haverá a incidência uma única vez, até o efetivo pagamento, do índice da taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia – Selic, acumulado mensalmente”.
Acerca do assunto, o STF reconheceu que seria inconstitucional a adoção da mesma taxa de juros para todos os precatórios “independentemente da sua natureza”. Para estar em conformidade com o princípio da isonomia, “os critérios de fixação dos juros moratórios devem ser idênticos para a Fazenda Pública e para o cidadão, “nos limites da natureza da relação jurídica analisada”[7]. Desse modo, quanto aos precatórios tributários, a jurisprudência já é no sentido de que “a correção dos precatórios relativos a indébitos tributários deve ser feita pelo mesmo índice utilizado na legislação fiscal de cada ente federativo para a correção dos créditos em mora” que, atualmente, é a própria SELIC.
Porém, em relação aos precatórios não tributários, a utilização de SELIC-simples ofende a propriedade (art. 5º, XXII, CF)[8], a moralidade e eficiência (art. 37, caput, CF), a separação dos Poderes (art. 2º, caput, da CF) e a coisa julgada (art. 5º, XXXVI, CF), conforme julgou o STF ao declarar inconstitucional o § 12 do artigo 100 da CF/88 (EC 62/09) que estabelecia a utilização dos índices de remuneração da caderneta de poupança para a atualização dos precatórios.
A violação ao direito de propriedade exsurge da mera comparação entre os índices previstos pelo Manual de Cálculos da Justiça Federal (IPCAe + juros de poupança) e a SELIC-simples. O acumulado de 2021 demonstra que a SELIC-simples correspondeu a apenas 41,05% daqueles[9]. Se for considerado o período de 2018 a 2021[10], a SELIC correspondeu a 52,22% daqueles. Portanto, o que a União busca com a alteração da correção dos precatórios é dilapidar o patrimônio de seus credores ao longo do tempo.
A violação à coisa julgada e à separação dos Poderes decorre da inobservância dos critérios previstos nas decisões transitadas em julgado, de sorte que “os membros do Poder Judiciário perderão a autonomia para fixar o critério que considerem adequado para atualização do débito, atingindo, de igual forma, a autoridade da coisa julgada” (Ministro Ayres Britto na ADI 4357)[11].
Até seria possível cogitar de um debate sério acerca da substituição de todos os índices do Manual de Cálculos pela SELIC se esta ao menos fosse calculada de forma composta, coerentemente com o que ocorre com os títulos emitidos pelo Tesouro[12]. Porém, não é isso o que ocorre na correção dos precatórios atualizados pela SELIC em que há incidência simples daquela taxa. No período de 2018 a 2021, o acumulado da SELIC-simples foi de 16,80%, o da SELIC-composta de 18,25% e do IPCAe + juros de poupança de 32,17%. Embora a SELIC-composta seja inferior aos índices do Manual de Cálculos, ela ao menos é superior à SELIC-simples e, a longo prazo, pode preservar um pouco melhor o patrimônio do credor.
Aplicação retroativa
O art. 4º da PEC prescreve, ainda, que “as alterações relativas ao regime de pagamento dos precatórios se aplicam a todos os requisitórios já expedidos ou inscritos, inclusive no orçamento fiscal e da seguridade social do exercício de 2022”.
A retroação da norma para alcançar precatórios já expedidos implica gravíssima afronta à segurança jurídica, ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada e contraria o sólido entendimento do STF que, recentemente, em sede de repercussão geral (Tema 792)[13], vedou a aplicação retroativa de norma que alterava a sistemática de pagamentos via precatórios a casos que já contassem com sentenças transitadas em julgado antes da respectiva alteração normativa.
Desproporcionalidade
A PEC também agride o princípio da proporcionalidade, pois existe remédio jurídico menos gravoso para que o Poder Público negocie diretamente com o credor formas especiais de pagamento, eventualmente com descontos ou parcelamentos consensuais. Trata-se da Lei 14.057/2020 que “disciplina, no âmbito da União (…) acordos diretos para pagamento de precatórios de grande valor (…) e acordos terminativos de litígios contra a Fazenda Pública”.
Referida lei poderia ser utilizada para a finalidade pretendida de redução do passivo dos precatórios, a demonstrar que o parcelamento geral, pela via constitucional, não é necessário, sob a ótica da adequação[14].
Observe-se, por fim, que a PEC reduz o alcance da aludida lei ao limitar a possibilidade de acordo aos casos em que “não penda recurso ou defesa judicial”, desestimulando o encerramento de litígios que poderiam poupar bilhões de reais ao orçamento. Afinal, quanto mais tempo passa em função da apresentação de defesas protelatórias da União mais juros e correção monetária acrescem à conta. Logo, quanto antes realizado o acordo, antes cessa a conta que, mais dia menos dia, recairá sobre os cofres públicos!
A PEC 23/21 cuida de tentativa de calote da União que, em desatenção à força normativa da Constituição, propõe medidas que já foram declaradas inconstitucionais pelo STF por ofenderem os fundamentos do Estado Democrático de Direito (art. 1º, CF) e as cláusulas pétreas consistentes na separação dos poderes (art. 2º, CF) e nos direitos e garantias individuais (art. 60, § 4º, III e IV, CF).
E, se a referida PEC agride de morte o núcleo duro da Carta Maior, o que dizer de mera Resolução do CNJ que pretenda impor um teto para o pagamento de precatórios, medida que tem sido cogitada como alternativa para a questão? Ora, ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) cabe, apenas, possibilitar eventuais encontros de vontade entre credores e devedor (no caso, a União Federal) no que toca à possibilidade de acordos mútuos. Não lhe cabe alterar, de forma geral e impositiva, a sistemática constitucional de pagamento de precatórios, privilegiando o devedor em face do credor. As inconstitucionalidades seriam ainda mais graves do que as incorridas pela PEC ora comentada.
[1] HESSE, 2009: 125/126
[2] HESSE, 2009: 135.
[3] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Emendas/Emc/quadro_emc.htm
[4] EC 20/98, EC 30/00, EC 37/02 EC, 62/09, EC 94/16, EC 99/17 e 109/2021.
[5] Pag. 51, DJe 14/03/2013
[6] Pág. 116/117, DJ 19/05/2011.
[7] Pag. 7/8 do voto do Ministro Edson Fachin na RG-RE 870.947.
[8] Com efeito, “a correção monetária de valores no tempo é circunstância que decorre diretamente do núcleo essencial do direito de propriedade (CF, art. 5º, XXII). Corrigem-se valores nominais para que permaneçam com o mesmo valor econômico ao longo do tempo, diante da inflação” (Pag. 35 do voto do Ministro Luiz Fux na ADI 4357).
[9] Em 2021, o acumulado da SELIC simples foi de 2,48%, enquanto que do IPCAe + juros de poupança foi de 6,04%.
[10] No período de 2018 a 2021, o acumulado da SELIC simples foi de 16,80%, enquanto que do IPCAe + juros de poupança foi de 32,17%.
[11] Pag. 14 do voto do Ministro Ayres Britto na ADI 4357.
[12] https://www.tesourodireto.com.br/titulos/calculadora.htm
[13] “Lei disciplinadora da submissão de crédito ao sistema de execução via precatório possui natureza material e processual, sendo inaplicável a situação jurídica constituída em data que a anteceda” (RE 729107, Min. Marco Aurélio, DJe 15/09/2020).
[14] ÁVILA, 2003: 114.
DANIEL CORRÊA SZELBRACIKOWSKI – Sócio administrador da Advocacia Dias de Souza, mestre em Direito Constitucional pelo IDP e especialista em Direito Tributário pelo IBET.
THAYNARA TEIXEIRA RODRIGUES – Advogada da Advocacia Dias de Souza, especialista em Direito Tributário pelo IBET e secretária da Comissão de Precatórios da OAB/DF.
Jota Info 31 de agosto de 2021 às 15:35
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