16 de setembro 2021 às 11H04
Enquanto a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara discute a constitucionalidade da PEC 23/21, que busca instituir novo calote no pagamento de precatórios, o Supremo Tribunal Federal, nesta quinta-feira (16/9), apreciará o mérito das Ações Diretas de Inconstitucionalidade 2356 e 2362, que discutem a ilegitimidade do artigo 78 do ADCT, introduzido pela EC 32/00, que previa o parcelamento em dez prestações dos precatórios que estivessem pendentes de pagamento até a data de promulgação da emenda (13/9/2000) e dos que decorressem de ações iniciais ajuizadas até 31/12/1999. Os temas são conexos e merecem considerações sob os ângulos jurídico, político e econômico.
Do ponto de vista jurídico, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, em 2010, concedeu medida cautelar nas referidas ações para suspender a eficácia do artigo 78 do ADCT. Na ocasião, o tribunal qualificou o parcelamento como “calote” por ofender o Estado democrático de Direito (artigo 1º, caput, da CF/88), a separação dos poderes (artigo 2º da CF/88), a isonomia (artigo 5º da CF/88), o acesso à Justiça e a efetividade da tutela jurisdicional (artigo 5º, XXXV, da CF/88), o direito adquirido e a coisa julgada (artigo 5º, XXXVI, da CF/88), a propriedade (artigo 5º, XXII, da CF/88) e a moralidade da Administração (artigo 37, caput, da CF/88).
Em 2013, a Suprema Corte reiterou essa jurisprudência quando declarou a inconstitucionalidade da EC 62/2009 nas ADIs 4357 e 4425. Passados mais de dez anos desde a concessão da cautelar e não havendo qualquer mudança no quadro fático, tudo recomenda a manutenção da jurisprudência em homenagem à segurança jurídica e estabilidade dos precedentes. O mesmo se aplica em relação à PEC 23/21 que, por padecer das mesmas inconstitucionalidades, nem sequer deveria passar no crivo da CCJ.
Acresce que precatórios são dívidas. Como tal, devem ser pagos. Não há facultatividade em relação a isso. Trata-se de obrigação prevista no § 5º do artigo 100 da Constituição Federal. Realmente, precatórios constituem ordens de pagamento provenientes do Judiciário decorrentes de sentenças judiciais transitadas em julgado. Entre particulares, não se cogita do descumprimento de uma ordem de pagamento proveniente do Poder Judiciário, sob pena de responsabilidade e constrição forçada dos bens do devedor. Por qual razão haveria de ser diferente quando uma das partes é o poder público? Na realidade, o descumprimento de uma dívida por parte do Estado é ainda mais grave, pois implica ofensa aos supracitados direitos e princípios protegidos no rol das cláusulas pétreas constitucionais (artigo 60, §4º, da CF).
Ainda sob o ângulo jurídico, tem sido noticiado pela imprensa que o verdadeiro objetivo do governo com a PEC 23/21 seria abrir espaço fiscal para aumentar os valores do programa Renda Cidadã, cujos frutos seriam colhidos nas eleições de 2022. Se, no plano dos fatos, isso viesse a ser confirmado, então haveria desvio de finalidade caracterizado pela “(…) prática [de] ato visando a fim diverso daquele previsto, explícita ou implicitamente, na regra de competência” [1]. Nessa hipótese, não haveria verdadeiro interesse público a justificar a medida, em especial no caso da União que está absolutamente em dia com o adimplemento dos precatórios. O interesse público recomendaria que o Estado continuasse pagando suas dívidas, sem calotes.
Do ponto de vista político, tudo recomenda a não participação do Judiciário ou do CNJ na prévia validação da proposta. Primeiro, porque o STF ou mesmo o CNJ não devem se imiscuir em questões próprias de outros Poderes (artigo 2º da CF). Segundo, porque, se aprovada, o Judiciário será acionado para examinar sua constitucionalidade (artigo 5º, XXXV, c/c 102, I, “a”, da CF/88). Portanto, não seria conveniente antecipar julgamentos. Terceiro, porque seria paradoxal que o Judiciário atuasse contra sua própria jurisprudência. A atual instabilidade política e econômica demanda do Judiciário a manutenção de sua jurisprudência, o que não apenas prestigia a segurança jurídica, mas também sinaliza aos demais poderes independentes da República que há balizas constitucionais mínimas que precisam ser respeitadas nesse debate.
Do ponto de vista econômico, o problema alegado pelo governo para justificar o calote é simplesmente falso. Não há “meteoro” e, mesmo se houvesse, esse seguramente não atingiria o Brasil. Não se nega o aumento do valor nominal a ser pago pela União em precatórios nos últimos anos. É preciso, porém, examinar suas causas. O aumento decorre não só do apetite do Estado em lesar os cidadãos, mas especialmente da maior eficiência do Poder Judiciário na resolução dos processos nos últimos anos. Ocorre que os precatórios constituem apenas o lado da despesa pública decorrente da atuação do Judiciário. E as receitas que o Poder Judiciário gerou ao Estado nesses últimos anos? Se o aumento de precatórios, sob o lado das despesas públicas, decorreu de uma maior eficiência do Judiciário, não há dúvida de que essa maior eficiência gerou, também, receita pública extraordinária. Não é possível, sob o viés puramente orçamentário, observar apenas o lado da despesa. É preciso aferir as receitas também, de sorte a saber se o saldo aumentou ou não. Afinal, de acordo com o CNJ, “os cofres públicos receberam durante o ano de 2019, em decorrência da atividade jurisdicional, cerca de R$ 76,43 bilhões” [2]. Esse número aumentou em 2020, período em que o STF passou a utilizar massivamente o Plenário Virtual para resolver a favor do Estado inúmeras questões de direito público, resultando, segundo o próprio governo, em economia recorde de R$ 630 bilhões [3]!
Ainda sob o ângulo econômico, o parcelamento dos precatórios cria problemas presentes e futuros. Para o presente, a proposta de calote contribuiu para, ao lado da inflação, agravar ainda mais o problema da escalada de juros que incrementou a dívida pública em níveis bastantes superiores ao que pretensamente se buscaria economizar com a medida. Enquanto o governo declara que o parcelamento possibilitaria reduzir em R$ 22,7 bilhões a despesa de precatórios no ano que vem [4], o aumento da curva de juros já representa um desfalque anual ao tesouro superior a R$ 100 bilhões [5]. Para o futuro, a medida cria um acúmulo de dívida que será quase impagável pelas gerações vindouras. Calcula-se que a medida ocasionaria, já em 2023, um estoque de dívida no montante aproximado de R$ 100 bilhões, número que saltaria para R$ 545 bilhões em 2030 [6].
Além disso, recentemente o próprio governo, por intermédio da Receita Federal, divulgou ao mercado nota informativa no sentido de que “o maior nível real da atividade indica elevação de cerca de R$ 72 bilhões na arrecadação — efeito estrutural”, o que o possibilitaria “devolver” R$ 47 bilhões à sociedade por intermédio da pretendida reforma no Imposto de Renda. Ora, o valor que o governo quer “devolver” à sociedade é superior ao que se pretende economizar com o calote nos precatórios. Isso deixa claro que os precatórios não teriam o condão de destruir as contas públicas.
Em suma, a narrativa do governo a respeito dos precatórios é equivocada, padece de inconstitucionalidades e pode implicar desvio de finalidade. Não há meteoro algum e, mesmo se houvesse, ele teria sido desviado de sua rota em função da arrecadação substancialmente superior à prevista.
[1] MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno, 19ª Edição revista e atualizada, Editora Thomson Reuters Revista dos Tribunais, pág. 188.
[2] Justiça em Números 2020. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/08/WEB-V3-Justi%C3%A7a-em-N%C3%BAmeros-2020-atualizado-em-25-08-2020.pdf. Acesso em 14/09/2021.
[3] Vitórias da AGU no STF garantem economia de mais de R$ 600 bi aos cofres públicos. Disponível em: https://www.gov.br/agu/pt-br/comunicacao/noticias/vitorias-da-agu-no-stf-garantem-economia-de-mais-de-r-600-bi-aos-cofres-publicos. Acesso em 14/09/2021.
[4] “Registre-se que, para fins da Lei Orçamentária Anual para 2022, em se aplicando a nova regra proposta para o § 20 do artigo 100, apenas 47 precatórios, de valor superior a mil vezes o patamar de sessenta salários mínimos (portanto superiores a R$ 66 milhões), seriam alcançados, os quais representam impacto positivo de R$ 22,7 bilhões de reais em espaço fiscal em 2022. Se considerada também a aplicação do novo artigo 101-A do ADCT, o valor total impactado (espaço fiscal aberto) será de, aproximadamente, R$ 33,5 bilhões, em razão da regra embasada na receita corrente líquida, dados que denotam a absoluta proporcionalidade e razoabilidade da proposição” (Exposição de Motivos da EC 23/2021. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=node0kntrjto4n8pcxbiv4xvpapu5299050.node0?codteor=2054008&filename=PEC+23/2021. Acesso em 14/09/2021.
[5] Conforme assentado por Renato de Mello Jorge Silveira em artigo publicado na Revista Conjur neste mês: https://www.conjur.com.br/2021-set-10/renato-silveira-observacoes-dia-setembro.
[6] Efeitos da proposta de limitação do valor anual de pagamento de precatórios. Disponível em: https://bityli.com/J1yyKn . Acesso em: 14/09/2021.
Hamilton Dias de Souza é fundador dos escritórios Dias de Souza Advogados Associados (SP) e Advocacia Dias de Souza (DF), especialista e mestre em Direito Tributário pela USP.
Daniel Corrêa Szelbracikowski é sócio do escritório Advocacia Dias de Souza, mestre em Direito Constitucional pelo IDP e especialista em Direito Tributário pelo Ibet.
Revista Consultor Jurídico, 16 de setembro de 2021, 7h11
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