20 de abril 2022 às 10H17
A cobrança do Difal (diferencial de alíquotas do ICMS), recém regulamentado pela Lei Complementar (LC) nº 190/2022, é a polêmica jurídica do momento. Sua discussão tem levado inúmeros contribuintes ao Judiciário com o objetivo de não serem obrigados a pagar o diferencial de alíquota.
Em vários desses casos foram concedidas liminares para suspender a obrigação de pagar o diferencial. Essas decisões, em síntese, baseiam-se nos seguintes pontos: (i) na impossibilidade de cobrança do Difal antes de decorridos 90 dias[1] contados da publicação da LC n. 190/2022 (publicada em 05/01/2022), (ii) no Difal não poder ser cobrado durante todo o exercício de 2022[2], e/ou (iii) na impossibilidade de cobrança do Difal antes da edição de nova lei estadual ou distrital posterior à LC 190/2022, pois as legislações anteriores perderam seu suporte de validade, porquanto o Convênio ICMS 93/2015 foi julgado inconstitucional na ADI 5.469/DF.
Ocorre que várias dessas liminares têm sido suspensas pelos presidentes dos respectivos tribunais estaduais (ex.: Santa Catarina[3], Distrito Federal[4], etc.) sob pretexto de grave lesão à economia e ao equilíbrio fiscal dos Estados. Essas suspensões têm gerado insegurança aos contribuintes, razão porque alguns pontos merecem as explicações e pontuações que seguem.
A suspensão de liminar e sentença[5] preceitua que a pessoa jurídica de direito público interessada e o Ministério Público podem requerer, ao presidente do tribunal, a suspensão da liminar ou da sentença que tenha potencial de causar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia pública.
Tradicionalmente, a jurisprudência entende que a análise do pedido de suspensão não adentra à controvérsia da demanda, ou seja, não trata do mérito[6], bastando a demonstração de dano consubstanciada em fatos plausíveis e aptos a comprovarem uma relação de causa e efeito entre a decisão judicial e a lesão aos valores tutelados pela lei. Por esse motivo que os tribunais superiores atribuem à decisão suspensiva viés político-administrativo[7].
À vista disso, Luiz Fux argumenta que “a cognição sobre o mérito da causa é superficial, delibatória, meramente instrumental para a verificação de ocorrência de lesão grave à ordem, segurança ou economia públicas”[8].
De outro lado, parte da doutrina, como Leonardo Carneiro da Cunha, entende que, independentemente da natureza da decisão, o pedido de suspensão constitui espécie de tutela provisória e, portanto, deve “haver a coexistência de um fumus boni juris e de um periculum in mora, a exemplo do que ocorre com qualquer medida acautelatória”[9].
Nesse viés, Hugo de Brito Machado[10] defende ser necessário também a constatação da plausibilidade do direito quando da prolação da decisão, indo além da mera comprovação do potencial lesivo aos bens tutelados.
Vale ressaltar que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já decidiu que, em matéria tributária, é necessário que se examine o mérito da demanda no pedido de suspensão, vejamos a ementa:
PEDIDO DE SUSPENSÃO DA MEDIDA LIMINAR. COBRANÇA DE ICMS EM COMÉRCIO ELETRÔNICO. A suspensão da segurança nos casos de litígio em matéria tributária passa pelo exame do mérito da controvérsia, só justificando-se em casos extremos em que tema já foi pacificado no âmbito jurisprudencial. Agravo Regimental não provido. (STJ, Corte Especial, AgRg na SS 2.482/MA, Rel. Min. Ari Pargendler, j. 31/08/2011)
Também nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal (STF), conforme pontua Hely Lopes Meirelles[11], entendeu anos atrás que não se pode dispensar o pressuposto do fumus boni iuris quando da suspensão de segurança, cabendo ao presidente do tribunal analisar também a plausibilidade das alegações de mérito do ente público requerente da suspensão[12].
Dessa forma, partindo-se da premissa da necessidade de plausibilidade jurídica, para além do potencial lesivo à ordem, à saúde, à segurança e à economia, vejamos como exemplo de análise a suspensão ocorrida no Distrito Federal.
O presidente do TJ-DF suspendeu mais de 50 liminares favoráveis aos contribuintes por meio da Suspensão de Segurança Cível nº 0706978-14.2022.8.07.0000, sob o argumento de que o DF deixaria de recolher aproximadamente R$ 600 milhões, o que comprometeria as finanças distritais, razão porque seria necessária uma medida “consistente na restrição do recolhimento do tributo relativo ao Difal/ICMS, destinado, a toda evidência, a levar à população do Distrito Federal os serviços essenciais ao funcionamento regular da máquina pública”.
Os argumentos apresentados, respeitosamente, não merecem amparo. Isso, porque os elementos autorizadores não estão presentes. Inexiste plausibilidade do direito invocado, pois encontra-se pacificado na jurisprudência do STF que qualquer exigência tributária necessita estar amparada em lei (princípio da legalidade), o que inexiste atualmente no DF em relação ao Difal, uma vez que a ADI 5.469/DF julgou inconstitucional o Convênio ICMS 93/2015, o qual dava suporte à legislação anterior que previa a exigência do referido diferencial de alíquotas (Lei nº 5.546/2015).
Outrossim, o STF, também de forma pacífica, impõe a necessidade de observância do princípio da anterioridade plena (nonagesimal e anual) quando há mudança na legislação que importe na cobrança de tributo em dimensão superior àquela exigida no momento anterior à sua edição, como se deu no caso do Difal.
Por esses motivos, centenas de liminares foram concedidas a favor dos contribuintes, de modo a estabelecer jurisprudência favorável em diversos Estados[13]. Nesse viés, Hugo de Brito afirma que “o presidente do tribunal não deve suspender a liminar, ou a sentença que concede mandado de segurança, em se tratando de causa a respeito da qual já esteja firmada no Tribunal a jurisprudência em favor do impetrante (…)”[14]
Ademais, para além ausência de plausibilidade jurídica, a potencialidade lesiva à economia pública, respeitosamente, também não se verifica.
Vale ressaltar, inicialmente, que as decisões tributárias que desoneram o contribuinte, via de regra, acarretam na menor arrecadação do ente público. Todavia, essa redução não lesa a economia pública, pois, se assim fosse, todas as liminares e sentenças favoráveis aos contribuintes seriam passíveis de suspensão — o que sequer se cogita.
Outrossim, como a referida Lei Complementar não veio a ser publicada em 2021, os Estados deveriam ter levado em consideração a impossibilidade de inclusão do Difal para a elaboração de suas estimativas arrecadatórias de 2022. Isso, em estrita observância ao decidido pelo STF na ADI 5.469/DF e aos princípios constitucionais tributários.
Nessa linha, faz-se mister mencionar que o ministro Luiz Fux, em decisão proferida nos autos da Suspensão de Segurança nº 5.506 (DJe 15/03/2022), que também trata do ICMS-Difal, negou o pedido de suspensão de liminar concedida pelo Tribunal de Justiça do Maranhão sob o entendimento de que, no caso, não há potencialidade lesiva grave “na medida em que trata de decisão provisória que meramente suspende a exigibilidade do tributo controvertido”.
Ressaltou, ademais, que deve haver a comprovação de que a liminar obtida afetaria gravemente as finanças públicas, devendo ser afastadas as argumentações genéricas de prejuízo ao Erário.
Portanto, como se vê, não se mostram presentes os elementos autorizadores à suspensão. Ora, a situação fiscal do Distrito Federal ou de qualquer Estado não é argumento apto a justificar a cobrança de tributos manifestamente indevidos, como no caso do Difal, até porque isso nada mais é do que confisco — o que é vedado pela Constituição[15].
Se por um lado as decisões suspensivas concedem um alívio momentâneo aos Estados, por outro lado ferem os direitos dos contribuintes e vários princípios constitucionais, portanto, muito embora seja compreensível a preocupação dos Desembargadores Presidentes com a saúde da economia popular, essa não pode ser alcançada passando-se por cima de garantias constitucionais.
Logo, há elementos jurídicos aptos a demonstrar a improcedência das suspensões que vêm ocorrendo. De toda forma, apesar da possibilidade de interposição de recurso contra a decisão suspensiva, a resposta definitiva acerca da cobrança ou não do Difal no exercício de 2022 deverá vir do STF, que já conta com quatro ADIs[16] do tema, as quais estão sob relatoria do ministro Alexandre de Moraes.
Quando do julgamento, espera-se do STF coerência com as decisões anteriores, de modo a salvaguardar os contribuintes e garantir a segurança jurídica, sob pena de imposição de ônus da desorganização dos estados.
[1] Art. 150, III, “c” da CF/88 e art. 24-A da LC nº 87 – introduzido pela LC 190/2022.
[2] Art. 150, III, “c” da CF/88
[3] Santa Catarina (5010518-52.2022.8.24.0000).
[4] Distrito Federal (0706978-14.2022.8.07.0000).
[5] Arts. 4º da Lei nº 8.437/1992 e 15 da Lei nº 12.016/2009.
[6] STJ, Corte Especial, Rcl 541/GO, Rel. Min. Antônio de Pádua, j. 18/12/1998; SLS 1.415-9-MA, Rel. Min. Felix Fischer, Dje 1/08/2011.
[7] Nesse sentido, e referindo-se a vários outros precedentes: acórdão da 1ª Turma do STJ, AgRg no AREsp 126.036/RS, Rel. Min. Benedito Gonçalves, j. 04/12/2012, Dje. 07/12/2012. Ademais: STJ, 1ª Turma, AgRg no AREsp 175.679/SP, Rel. Min. Benedito Gonçalves. J. 18.11.20147, Dje 25.11.2014.
[8] FUX, Luiz. Mandado de segurança. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 139.
[9] CUNHA, Leonardo Carneiro da. A Fazenda Pública em juízo. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016. p. 609.
[10] “A suspensão de liminar, ou da sentença, somente é possível se presentes os dois requisitos necessários ao deferimento da medida cautelar, vale dizer, o perigo da demora e a aparência do bom direito (…)” MACHADO, Hugo de Brito. Mandado de Segurança em matéria tributária. 9. ed. São Paulo: Malheiros,2016. p. 204.
[11] MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de segurança e ações constitucionais. 36. ed. São Paulo: Malheiros, 2014. p. 109
[12] SS/AgR 1.149-9-PE, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, RT 742/162 e SS 846 AgR, Relator: Sepúlveda Pertence, Tribunal Pleno, J: 26/05/1996)
[13] Exemplo: TJDF – MS 0700137-46.2022.8.07.0018, Juiz Paulo Afonso Cavichioli, j. 14/01/2022; TJSP – MS 1003798-21.2022.8.26.0053, Juíza Fernanda Henriques, j. 31/01/2022, TJES – MS 5000602-63.2022.8.08.0024, Juiz Mário da Silva, j. 17/01/2022; TJDF – AI 0703678-44-2022.8.07.0000, Des. Soníria Campos, j. 25/02/2022, etc.
[14] MACHADO, Hugo de Brito. Mandado de Segurança em matéria tributária. 9. ed. São Paulo: Malheiros,2016. p. 204.
[15] Art. 150, IV da CF/88.
[16] ADI 7.070/DF, ADI 7.066/DF, ADI 7.075/DF e ADI 7.078/CE.
Victor Hugo Mosquera Filho é advogado da Advocacia Dias de Souza. Graduado pelo Centro Universitário de Brasília (UniCeub), pós-graduando em Contabilidade e Planejamento Tributário na UnB (Universidade de Brasília) e membro da Comissão de Precatórios da OAB/DF.
Revista Consultor Jurídico, 20 de abril de 2022, 6h01
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