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05 de outubro 2023 às 15H08

Limitação inconstitucional a dívida pública de precatórios

Por Daniel Corrêa Szelbracikowski e José Roberto Afonso

A AGU concordou, nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade 7.064, com a declaração de inconstitucionalidade das ECs 113/21 e 114/22, promulgadas no governo anterior, que limitaram o pagamento de precatórios federais mediante a criação de um subteto para o pagamento dessas dívidas.

Com base em parecer técnico da Secretaria do Tesouro Nacional, a Advocacia Geral da União defendeu que apenas os valores principais dos precatórios sejam considerados “despesas primárias”.  Os encargos devidos, por conta de juros e atualizações inflacionárias, devem ser reclassificados despesas financeiras. Nessa linha, a AGU pediu ao STF a reclassificação dos precatórios acumulados para permitir seu pagamento em até 60 dias a contar da autorização de créditos extraordinários perante o Congresso.

O executivo federal está sensível à resolução de um imenso desafio que pode, agora, ter encaminhamento definitivo pelo Supremo Tribunal Federal. Segundo as estimativas do parecer que  presentamos ao STF na ADI 7.064, o passivo de precatórios criado pelas ECs 113 e 114 deve atingir R$ 244,7 bilhões em 2027 (em torno de 1,8% do PIB), quando cessariam os efeitos das exceções ditadas por mais de uma emenda constitucional.

As ECs 113 e 114 estabeleceram 1) moratória no pagamento dos precatórios federais em decorrência da instituição de limite orçamentário — “teto” — para o adimplemento desse tipo de dívida; 2) compensação forçada de eventuais dívidas inscritas em nome do credor com precatórios; 3) mudança no regime de correção dessas dívidas; e 4) aplicação retroativa das novas regras. Essas novas regras incorreram em sérios vícios de inconstitucionalidade e contrariaram a jurisprudência do STF, que, no passado, nas ADIs 2.356 e 4.357, declarou inconstitucionais medidas similares [1], ao fundamento de que elas subvertem o acesso à jurisdição, a efetividade jurisdicional, a separação dos Poderes, a moralidade administrativa e a própria ideia de Estado de Direito.

À época, um de nós alertou, na companhia de Hamilton Dias de Souza, que o governo e o Congresso de então estavam a desprezar a sólida jurisprudência do Supremo Tribunal Federal [2]. Nesse sentido, do ponto de vista jurídico, a manifestação recente da AGU, já chancelada pela AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros) nos autos, encontra respaldo na jurisprudência do Tribunal Constitucional e demonstra louvável atitude do governo de buscar resolver, com celeridade, uma questão que é grave e ofende tanto a transparência pública quanto os direitos dos credores do Estado.

De fato, um dos pecados capitais das ECs 113/21 e 114/22 está na equivocada compreensão de que precatórios constituiriam despesas discricionárias, quando, de acordo com o artigo 100, §5º da Constituição, eles constituem despesas obrigatórias, isto é, dívida pública:

“Artigo 100: (…)
§5º É obrigatória a inclusão no orçamento das entidades de direito público de verba necessária ao pagamento de seus débitos oriundos de sentenças transitadas em julgado constantes de  precatórios judiciários apresentados até 2 de abril, fazendo-se o pagamento até o final do exercício seguinte, quando terão seus valores atualizados monetariamente.”

Se não fosse obrigatório o pagamento dessa dívida pública, conforme previsto no referido artigo 100, §5º, da CF, de nada valeriam as decisões judiciais, em ofensa à separação dos poderes (artigo 2º c/c 60, §4º, III, da CF), ao acesso e à efetividade da jurisdição (artigo 5º, XXXV e LXXVIII, da CF).

Outro pecado capital centra-se na forma como são apuradas estatísticas fiscais pelo Banco Central, que não considera precatórios e restos a pagar como dívidas, apesar de sempre constarem  expressa e especificamente inscritos nos respectivos passivos dos demonstrativos contábeis de todos os governos brasileiros.

Quanto a essa questão, um de nós subscreveu parecer econômico, juntado no evento 253 da citada ADI 7.064, no qual se demonstrou, à luz do princípio da transparência fiscal, que parte dos problemas associados ao não pagamento de precatórios se dá em função do seu tratamento como despesa pública corrente— gasto primário/discricionário— e não como amortização de dívidas.

Nesse sentido, é preciso ficar claro que o estoque de precatório é contado e divulgado pelo Bacen, porém em uma conta chamada “outras contas a pagar” do demonstrativo de patrimônio financeiro líquido do governo geral (PFLGG). Ocorre que tal dívida não aparece nas estatísticas que são usualmente monitoradas pelo mercado e pela imprensa, isto é, nos demonstrativos de  dívidas líquida e bruta (DLSP e DBGG). Ao não incorporar os precatórios nesses indicadores, o Bacen pode estimular uma visão deturpada por parte dos agentes do mercado financeiro e criar um ambiente propício para esse tipo de postergação de pagamento. Para reverter este cenário, é imperioso somar os precatórios às estatísticas dos demonstrativos de dívida líquida do setor público consolidado (DLSP) e à dívida bruta do governo geral pela metodologia do FMI [3] (DBGG, metodologia a partir de 2008) [4].

As metodologias apontadas pelo FMI e as divulgadas pelo Banco Central em relação aos ativos e passivos do governo central deixam claro que a sustentabilidade da dívida tem como requisito preliminar a necessidade de haver uma cobertura ampla e correta da mensuração do endividamento público.

Sem nenhuma criatividade, no Balanço Geral da União, o estoque acumulado já é contado e apresentado de forma clara, e até discriminada, na conta de passivo da União. A título de exemplo, o último balancete contábil do Tesouro Nacional, do 1º trimestre de 2023, conta com 58 citações de “precatórios”, dentre a quais consta, na página 135, o montante devido. Apesar disso, o estoque de precatórios não aparece nas estatísticas do Bacen de dívida bruta do Governo Geral (DBGG), que são acompanhadas pelo mercado e utilizadas para avaliar a condição de sustentabilidade das contas públicas.

Nada disso se confunde, ainda, com a previsão da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), que, “… para fins da aplicação do limite“, prevê a inclusão na dívida consolidada apenas dos precatórios judiciais não pagos durante a execução do orçamento em que houverem sido incluídos (artigo 3, §7º). Este é um comando particular da LRF (o único nesta lei sobre precatório) com o objetivo único de coibir e punir a eventual inadimplência.

Não significa dizer que o resto dos precatórios, já acumulados, não constituam dívida. Na verdade, a mesma LRF, no artigo 29, ao tratar das definições básicas sobre dívida, prevê em seu primeiro parágrafo que são equiparadas a operações de créditos “… a assunção, o reconhecimento ou a confissão de dívidas“. Essas três condições estão postas no caso dos precatórios que têm caráter impositivo ao governo, nos termos do citado artigo 100, §5º da Constituição.

Portanto, o caminho indicado pela AGU e STN busca repor as boas práticas de transparência e responsabilidade na gestão fiscal, justamente ao contrário do que criticam alguns economistas [5]. Além de aparentemente desconhecerem a contabilidade pública, os críticos da proposta também parecem ignorar o processo judicial. É preciso rememorar que há um valor histórico que está na  origem da ação movida e, que, quando esta culmina na derrota do governo, a ele se imputa uma correção daquele valor até a data da emissão do precatório, e, posteriormente a este ato, incide a Selic até a data em que for efetivamente realizado o pagamento. O componente de natureza financeira no valor pago tende a ser elevado e mesmo predominante — tanto mais distante seja a data
do pagamento da data em que se deu a desavença entre o credor e o governo.

Curiosamente, quando o desfecho da ação judicial é no sentido oposto, de vitória do governo, especialmente com vistas à cobrança de seus tributos, não se propõe postergar a obrigação de seu pagamento. Quando se dá a efetiva arrecadação, a classificação da receita distingue claramente o que é a arrecadação originária daquela que decorre da imposição de juros e multas. O que se prática do lado da receita não se faz do lado da despesa. A moratória imposta quando o governo deve não é repetida quando o mesmo governo tem a haver.

Enfim, se os precatórios possuem a natureza jurídica de dívida e já são reconhecidos como tal nos demonstrativos contábeis e na Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), o ideal seria considerá-los nas estatísticas do Bacen que atualmente são utilizadas para avaliação da solidez fiscal da administração pública. Nesse sentido, para fins de cômputo no orçamento, apenas o valor do principal da dívida definido em decisão judicial representaria uma despesa efetivamente primária, embora não discricionária. Todos os juros e correção monetária entre a decisão judicial e o momento da quitação da dívida representariam um gasto financeiro, do mesmo modo que os aplicados aos títulos da dívida pública federal.

Para o Direito, nos termos do artigo 100, § 5º da Constituição, não resta a menor dúvida de que precatórios constituem obrigações do Estado, não despesas discricionárias. Trata-se de um encargo compulsório do Poder Público, razão por que não há facultatividade quanto a pagá-lo ou não. Nesse sentido, espera-se que o Supremo Tribunal Federal declare inconstitucionais as ECs 113 e 114, conforme requerido na ADI 7.064.

 


[1] Inconstitucionalidade do contingenciamento de recursos (artigo 107-A do ADCT):

“Na forma do artigo 97, §14, do ADCT, não há horizonte temporal pré-definido para o fim desse modelo, que perdurará enquanto os estoques de precatórios pendentes de pagamento forem superiores ao valor dos recursos vinculados à sua satisfação. (…) A previsão de contingenciamento de recursos orçamentários para o pagamento de precatórios também subverte o amplo acesso à justiça e a plena efetividade da prestação jurisdicional (CF, artigo 5º, XXXV). Com efeito, beira as raias do absurdo jurídico que a autoridade pública no Brasil, independentemente do número de ilícitos que cometa, somente responda até certo limite, traduzido em percentuais de receita corrente líquida (…) grotesca espécie de imunidade parcial do Estado à ordem jurídica, em franca colisão com a ideia de Estado de Direito, que clama pela sujeição completa e irrestrita do poder ao império da lei (rule of law)”. (ADI 4.357, p. 114, voto ministro Luiz Fux).

Inconstitucionalidade da compensação forçada (§9 do artigo 100 da CF):

esse tipo unilateral e automático de compensação (…) embaraça a efetividade da jurisdição e desrespeita a coisa julgada (…) mesmo que veiculada por emenda à Constituição, também importa contratura no princípio da separação dos Poderes. No caso, em desfavor do Poder Judiciário. Como ainda se contrapõe àquele traço ou àquela nota que, integrativa da proporcionalidade” (Pag. 11/12 do voto do ministro Ayres Britto na ADI 4357).

Inconstitucionalidade da Selic para a correção dos precatórios não tributários

“não há razão para utilizar índice de correção diverso, prejudicial ao segurado, caso esses mesmos valores venham a ser pagos na via judicial. Assim agindo, estar-se-ia violando o referencial de isonomia que deve presidir as relações entre Estado e particulares, pois estes devem estar sujeitos à mesma disciplina no que toca aos juros e à atualização monetária quando se está tratando de uma relação jurídica de igual natureza”. (RE 870947, voto ministro Luiz Fux, Tribunal Pleno, DJE 20-11-2017).

Inconstitucionalidade da retroatividade das novas normas

quanto aos ‘precatórios pendentes’, a deliberação do Congresso Nacional veio a privar da imediata eficácia a decisão judicial, com o cumprimento do precatório já pendente de pagamento, atentando contra a independência do Poder Judiciário” (ADI 2.362).

[2] Souza e Szelbracikowski, Precatórios: até que ponto o Congresso pode desprezar a jurisprudência do STF?, 24 de novembro de 2021, Revista Consultor Jurídico. https://www.conjur.com.br/2021-nov-24/opiniao-precatorios-ponto-congresso-desprezarstf

[3] O manual de estatísticas fiscais do FMI estabelece que “a classificação dos ativos e passivos financeiros em diversos instrumentos, tendo como base características como negociabilidade, transferibilidade e conversibilidade. Considerando que cada instrumento financeiro cria um ativo e um passivo correspondente, as mesmas descrições de instrumentos podem ser usadas para ambos“.

[4] Banco Central do Brasil argumenta que, “no Brasil, os manuais internacionais são utilizados como referência metodológica na apuração das estatísticas fiscais, sempre respeitando-se as especificidades do país“. Vide: https://www.bcb.gov.br/content/estatisticas/notas_metodologicas/estatisticas-fiscais/estatisticasfiscais.pdf

[5] https://valor.globo.com/brasil/noticia/2023/09/27/mudar-precatorios-traz-de-voltao-risco-de-contabilidade-criativa.ghtml;
https://www.estadao.com.br/economia/mudancanos-precatorios-o-que-pensam-os-economistas-sobre-a-proposta-do-governo-lula/


Daniel Corrêa Szelbracikowski é sócio da Advocacia Dias de Souza, mestre em Direito Constitucional pelo IDP e especialista em Direito Tributário pelo Ibet.

José Roberto Afonso é economista, professor do IDP e do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa. (ISCSP/Univ.Lisboa), pós-doutor em Administração Pública e doutor e mestre em Economia.

Revista Consultor Jurídico, 5 de outubro de 2023, 7h04

https://www.conjur.com.br/2023-out-05/szelbracikowskie-afonso-limitacao-inconstitucional-divida-publica-precatorios

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