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18 de maio 2005 às 10H47

PEC DOS PRECATÓRIOS – Projeto de Erradicação Constitucional

Por Anna Paola Zonari

A expedição de um precatório significa que uma longa batalha judicial chegou ao fim, não raro após vinte anos de inúmeros recursos protelatórios apresentados pelo Estado-devedor. O Estado, que lesou o particular, é chamado a saldar sua dívida. Finalmente fez-se justiça.

Engano. O Estado deve, já não há como negar. Mas não paga. Não paga porque o dinheiro é curto e não pode ser desperdiçado. E há sempre demandas sociais mais importantes do que o pagamento da dívida do particular. Afinal, o governante não foi eleito para isso. Além do mais, quem liga para o descumprimento de decisões judiciais? Isso passou a ser “normal”.

Quando o particular deve ao Estado, entretanto, já não se trata mais de um cidadão ou de uma empresa que cumpre o seu papel sócio-econômico. Trata-se de um devedor, um caloteiro que para exercer seu direito de defesa tem de garantir a dívida, se preciso for, com penhora de sua conta corrente. Não importa se faltará dinheiro para comer ou pagar os funcionários.

À exceção honrosa da União, o pagamento dos precatórios Estaduais e Municipais está atrasado até onde a memória alcança. Esse atraso reiterado e irresponsável gerou um estoque imenso da dívida (fala-se em 100 bilhões), que agora se diz “impagável”. É o Estado tentando se valer da própria torpeza.

Por duas vezes a Constituição já foi usada para tentar solucionar o problema mediante o parcelamento da dívida: por 8 anos, conforme o art. 33 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição de 1988; e por 10 anos, pela Emenda Constitucional nº 30/2000. A dupla moratória não funcionou. Pelo contrário, o estoque da dívida só aumentou desde então.

O remédio não surtiu efeito porque não houve meio eficaz de obrigar o pagamento dos precatórios, a despeito de algumas ordens judiciais de seqüestro de receitas em casos isolados.

Representantes de Estados e Municípios têm se manifestado publicamente em favor de mais uma emenda constitucional, desta feita digna, justa e equilibrada. Será?

A PEC 12/06 – conhecida como “PEC do calote” – aguarda votação na Câmara dos Deputados após aprovação no Senado (não por coincidência) no dia 1º de abril. Dessa vez houve criatividade na transferência ao particular do peso pela má administração dos cofres públicos. E muito cinismo para tentar convencer de que a proposta possa aproveitar a alguém, senão ao próprio Estado-devedor.

É um pacote de maldades. E dos grandes.

Rememorando. O Estado-juiz condena. O Estado-devedor não paga. O Estado-legislador tem a opção de avalizar ou não mais um calote institucional. Calote, sim. Ou, para quem preferir, o popular “ganha, mas não leva”.

Vejamos. O art. 2º da PEC cria regime especial que prevê duas opções para o pagamento das dívidas dos Estados e Municípios: (i) pagamento no prazo de 15 anos, reajustado pelos critérios da caderneta de poupança, ou (ii) o comprometimento de uma parcela fixa anual de sua receita (para os Estados, entre 0,6% e 2,0% e, para os Municípios, de 0,6% a 1,5%), sem limite de prazo. Os percentuais aumentam quanto maior o grau de endividamento do ente estadual ou municipal.

Para os Estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Norte, entretanto, esses percentuais são menores do que os efetivamente aplicados no ano de 2007, conforme levantamento fornecido à Senadora Kátia Abreu (relatora da proposta no Senado). São Paulo comprometeu 2,4% da receita líquida para o pagamento de precatórios sendo que de acordo com a PEC, comprometeria 1,5%. Minas Gerais comprometeu 1,8% quando poderia ter ficado em 1,5% e o Rio Grande do Norte utilizou 1,1% da receita contra 0,6%, se a nova norma já estivesse em vigor. Isso quer dizer que os devedores poderão pagar ainda menos do que estavam pagando.

Como tais regras atingem tanto os precatórios passados quanto os emitidos durante o regime especial, não só serão inservíveis para liquidar o estoque, como também eternizarão a inadimplência.

De outro lado, os que fizeram as contas publicaram artigos informando que a dívida atual de alguns Estados, por esse sistema, demoraria até 100 anos para ser liquidada. Isso pode ser considerado pagamento?

Há mais. Discretamente se introduziu no art. 100 da Constituição Federal um parágrafo 11, que atrela a correção monetária e os juros dos precatórios aos índices oficiais da caderneta de poupança. Isso poderá resultar redução significativa na recomposição patrimonial do credor, considerados os critérios atuais. Atualmente os precatórios pagos no prazo constitucional são corrigidos pelo IPCA-E e os parcelados ainda são acrescidos de juros de 6% ao ano a partir da segunda parcela. Nas cadernetas de poupança aplicam-se TR mais juros de 6% ao ano. Os juros são iguais, mas historicamente a TR é muito menor que o IPCA-E. No ano de 2008, por exemplo, a TR foi de 1,49% enquanto o IPCA-E foi de 6,10%. De janeiro de 2003 até hoje o percentual acumulado do IPCA-E + 0,5% chegou a 99,76% ao passo que a poupança (TR + 0,5%) rendeu parcos 69,64%. Por isso a substituição de um índice de correção (IPCA-E) por outro (TR) acarretaria induvidosa redução dos valores.

Tal previsão se aplica a qualquer precatório “independentemente de sua natureza”, sem ressalva sequer dos precatórios que já foram parcelados nos termos do art. 78 do ADCT, cujo pagamento foi assegurado em “valores reais”, computados “juros legais”.

Se tanto não bastasse, quem quiser receber o que sobrou do seu crédito terá que se submeter a leilões de deságio. Neles só terá chance quem der maior desconto, a despeito da ordem da Justiça para o pagamento integral da dívida na ordem cronológica de expedição do precatório, conforme a Constituição.

Pasmem, dos recursos irrisórios destinados ao pagamento de precatórios 60% serão reservados para o pagamento de dívidas por leilão eletrônico e 40% para pagamento à vista, em ordem crescente de valor.

Ou seja, quem já está há anos aguardando sua vez pela ordem cronológica de pagamento dos precatórios será submetido à nova e aviltante regra do “quem dá menos”.

O calote público é um assunto muito sério. Gera efeitos diretos na credibilidade do Governo tanto internamente, por revelar inúmeras violações constitucionais, quanto no cenário internacional, ainda ressentido por uma grave crise de confiança.

A PEC rasga a Constituição, na medida em que fere cláusulas pétreas, ou seja, preceitos constitucionais fundamentais que não podem ser alterados por emenda constitucional, mas apenas pelo poder constituinte original. Para começar, o princípio da independência harmônica entre os Poderes da República fica comprometido se o Legislativo compactuar com a irresponsabilidade do Executivo para descrédito do Judiciário. Demais disso, o pagamento da dívida em valor muito inferior ao que foi condenado o Estado evidencia confisco. Fere-se de morte o direito de propriedade e o seu correlato direito à justa indenização, na medida em que a recomposição do patrimônio será ínfima.

A violação ao princípio da paridade das partes também se apresenta, pois quando o contribuinte deve para o Estado incide a SELIC, mas quando o Estado é o devedor se aplicariam índices de poupança (em 2008 a SELIC foi de 11,82% enquanto o a poupança rendeu 7,74%). Nada garante sequer que os critérios atuais para a remuneração da poupança se mantenham, pois não há limites constitucionais para sua alteração legal. Isso significa que ficam ao sabor da política monetária do Governo. É o que se chama arbítrio.

O Estado, se preferir, pode utilizar-se da carga tributária para diferenciar a remuneração do pequeno daquela permitida ao médio e grande poupador. O disfarce de benevolência com os mais humildes não afasta a aplicação de critérios díspares entre a atualização da dívida do particular com o Estado e a deste com o particular.

A legalidade, moralidade e eficiência, de sua vez, são princípios que por determinação constitucional o Poder Público deveria observar de modo exemplar. Não é o que se vê, entretanto, quando se alteram as regras no meio do jogo. A alteração retroativa das regras que vigoravam no momento da expedição dos precatórios é atentatória ao mínimo de segurança jurídica que se exige de um país que se esforça para ser sério.

Pior ainda se pensarmos nos investidores internacionais que compraram precatórios parcelados no regime do art. 78 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT). O dispositivo, além de autorizar de forma expressa a cessão dos precatórios, determina que os mesmos “serão liquidados pelo seu valor real, em moeda corrente, acrescido de juros legais”. Assim, ao menos em relação aos precatórios parcelados segundo os critérios próprios estabelecidos pelo referido dispositivo do ADCT seria vedada a aplicação retroativa dos novos critérios. Mas não houve ressalva a esse respeito, o que leva o tema para o campo nebuloso da interpretação.

É óbvio que a remuneração de poupança e tudo o mais levará o valor do crédito para longe do real. E também não haverá aplicação dos juros legais, que atualmente equivalem à taxa SELIC (utilizada, como visto, apenas para atualizar a dívida do contribuinte).

No caso de cessão do precatório há ainda mais. A PEC introduz o parágrafo 9º no art. 100 do corpo permanente da Constituição Federal, que determina, no momento do pagamento dos créditos, sua compensação obrigatória e automática com débitos fiscais que não estejam com a exigibilidade suspensa. O detalhe é que a compensação se fará com os débitos do “credor original”, sem ressalva quanto às cessões amparadas pelo art. 78 do ADCT. Ou seja, a depender da interpretação do texto proposto poder-se-ia concluir que o investidor adquirente do precatório receberia o que sobrasse após a compensação com os débitos existentes do cedente (“credor original”). Nesse ponto, além de tudo, ferir-se-ia o ato jurídico perfeito, pois se anularia, de forma indireta, os efeitos da própria cessão.

Tais absurdos já foram identificados e avaliados no âmbito internacional. O Comitê de Risco da Austin Rating, em reunião realizada no dia 14 de maio de 2009, alterou a perspectiva de Fundos de Investimento em Direitos Creditórios lastreados, principalmente, em precatórios federais, de estável para negativa exatamente em função da aprovação, pelo Senado, do texto da PEC 12.

É uma pena que após louvável avanço do Presidente Lula o Brasil volte a suportar aumento na avaliação de riscos como decorrência de insegurança nas relações jurídicas e fragilidades das instituições.

Cabe à Câmara dos Deputados assegurar ao público interno e externo que a PEC 12 não passe de um engano ou eternizar a frase atribuída ao General de Gaulle, de que “o Brasil (ainda) não é um país sério”.

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