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01 de março 2002 às 11H29

Contribuições de Intervenção no Domínio Econômico e a Federação

Por Hamilton Dias de Souza

1. O exercício da competência tributária pela União e as contribuições

 

Os poderes públicos sempre procuraram alargar sua competência tributária, inclusive por meio da criação de novas figuras com denominações impróprias. Assim é que foram instituídas taxas com bases de cálculo próprias de impostos, empréstimos compulsórios sem afetação do produto de sua arrecadação à respectiva causa, contribuições sem referibilidade a qualquer grupo de indivíduos.

As décadas de 70 e 80 foram particularmente ricas em precedentes versando  variadas figuras rotuladas de taxa. O Supremo Tribunal Federal, aos poucos, foi assentando determinados conceitos, tais como o de serviço específico e divisível, o de serviço público[1], bases de cálculo impróprias[2], o que cerceou novas tentativas de invasão de competência sobre o pretexto de se tratar de taxa.

Na década de 80, as tentativas de invasão de competência foram feitas sobretudo pela União. Entre essas, merecem especial referência os empréstimos compulsórios, mesmo porque bastava para a sua instituição afirmar-se ou que houve seca no Norte ou chuva no Sul ou, ainda, que em face do fenômeno inflacionário havia necessidade de absorver temporariamente o poder aquisitivo da moeda. O Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade de vários desses empréstimos.[3] Todavia, tantos eram os flancos que a redação do texto da Emenda Constitucional nº 01/69 suscitava que houve nítida preocupação do Constituinte de 1988 em traçar limites claros à sua criação.

Na década passada, já não mais dispondo do recurso fácil dos chamados empréstimos compulsórios de outrora, a União recorreu às contribuições sociais. O tema ainda permite reflexões aprofundadas da jurisprudência, mas em grande parte já há uma sedimentação razoável do que se entende por tais tributos, sobretudo os para a seguridade social.[4]

Ao que tudo indica, move-se a União, na atualidade, em direção às contribuições de intervenção no domínio econômico.

A legitimidade da instituição de tributos – no caso, das contribuições – passa, necessariamente, pela verificação quanto à preservação da unidade e harmonia do sistema constitucional tributário e de sua compatibilidade com as vigas mestras sobre as quais o Estado brasileiro foi construído. Isto nos leva à revisão de alguns conceitos  indispensáveis à determinação dos limites aos quais o legislador – constituinte derivado e/ou ordinário – está preso ao exercer a competência tributária, em especial no que pertine à rigidez do sistema tributário, que decorre da determinação das espécies tributárias e da partilha do produto da arrecadação dos tributos, ambas guardiãs da autonomia dos entes federados e, portanto, do próprio regime federativo.

 

2. Classificação das espécies tributárias

 

A classificação das diferentes espécies de tributos deve ser feita não só em função de suas próprias características, mas também tendo em vista os vários critérios adotados para a repartição dos encargos públicos. Isto porque, de fato, a distinção dos tributos foi logicamente elaborada em primeiro lugar pela Ciência das Finanças, e, após, penetrou no terreno jurídico.

O Estado cobra exações compulsórias de todos aqueles que se encontram submetidos à sua jurisdição. Por uma perspectiva pré-jurídica ou no âmbito da Ciência das Finanças, o que se tem de verificar é como os indivíduos se relacionam com os vários serviços públicos prestados pelo Estado, sobretudo no que respeita à utilidade individual que deles retiram. Assim, (1) há casos em que os serviços são de tal forma gerais que cada indivíduo não pode medir a utilidade que deles tira (ex.: segurança externa). Outros há (2) em que o serviço é desenvolvido em função do interesse público, mas implica uma série de prestações a indivíduos determinados, que dele tiram uma utilidade específica e, portanto, mensurável. Por fim, (3) há aqueles desenvolvidos em função do interesse público, prestados não a usuários específicos, mas que causam um benefício diferencial a setores de atividade ou grupos de indivíduos.

De acordo com as características antes assinaladas pode-se dizer que, no primeiro grupo (1) temos impostos; no segundo (2), taxas, e, no terceiro (3) contribuições.

Do ponto de vista jurídico, para se chegar à classificação dos tributos importa examinar a estrutura das hipóteses de incidência de suas espécies, verificando o que cada uma delas tem em comum.

Se é verdade que as classificações, em geral, obedecem a motivos pragmáticos ou interesseiros, não possuindo, assim, maior relevância do que didática, é igualmente verdadeiro que, no caso brasileiro, a classificação dos tributos possui qualificação diversa e superior, tendo em vista que ela tem status constitucional. De fato, no caso particular do Brasil, o sistema tributário é tido como o mais rígido do mundo, havendo ampla partilha da competência tributária entre União, Estados e Municípios, não se admitindo competências concorrentes em matéria de impostos. Portanto, embora o poder de tributar seja do Estado, como um todo, cada uma das ordens parciais de governo que o compõe tem sua parcela de poder que é determinada a partir de critério classificatório. Em razão deste critério, temos taxas e contribuições de melhoria, como tributos de competência comum e demais contribuições e impostos como de competência privativa. Por tal razão a exata classificação da espécie tributária tem repercussões jurídicas importantes, pois a própria repartição de competências está nela fundada. Por conseqüência, são diferentes os regimes jurídicos a que cada espécie está sujeita, sendo por isso necessário traçar suas características.

Para identificar uma espécie tributária e determinar a natureza dos tributos, importa verificar o aspecto material da hipótese de incidência da norma jurídico tributária. Assim, se o aspecto material da hipótese de incidência consiste num fato desvinculado de qualquer atuação do Estado, em função do que estará o contribuinte sujeito à imposição de determinado tributo, sua espécie será imposto. Se implicar atuação estatal, teremos taxa – caso a referibilidade entre a atividade estatal e o sujeito seja direta – ou contribuições – se a referibilidade for indireta, pois a atividade é desenvolvida para atender ao interesse geral, mas no primeiro caso provoca especial benefício a uma pessoa e, no segundo, a um grupo de pessoas. Este ângulo é fundamental para definir o que são as contribuições.[5]

A contribuição, vista por este ângulo, é um tributo vinculado a uma atividade estatal, referida a um grupo de indivíduos, ou, como quer Geraldo Ataliba, referida indiretamente a cada um dos indivíduos do grupo.

Em conclusão, verifica-se que o exame das classificações das espécies tributárias feitas a partir de dados da Ciência das Finanças – repartição dos encargos públicos – e a partir de critérios jurídicos – exame da norma jurídica tributária – são complementares.

A Constituição Federal de 1988 outorga competência tributária à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios para instituir impostos, taxas – em razão do exercício do poder de polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos à sua disposição – e contribuições de melhoria, decorrente de obras públicas (art. 145).  Ainda, à União, com exclusividade, a Carta outorga competência para instituir contribuições sociais, de intervenção no domínio econômico e de interesse das categorias profissionais ou econômicas, como instrumento de sua atuação nas respectivas áreas, observado o disposto nos arts. 146, III, e 150, I e III, e sem prejuízo do previsto no art. 195, § 6º, relativamente às contribuições a que alude o dispositivo (art. 149, CF), bem como empréstimos compulsórios, por lei complementar, para atender a despesas extraordinárias, decorrentes de calamidade pública, de guerra externa ou sua iminência e no caso de investimento público de caráter urgente e de relevante interesse nacional, observado o disposto no art. 150, III, b (art. 148, CF).[6]

A Constituição atual permite distinguir, claramente, taxas de impostos e taxas de contribuições. Os impostos, tributos que se distinguem dos demais, são instituídos a partir de um determinado fato econômico previsto em lei e que revela, supostamente, uma capacidade econômica para contribuir dos respectivos sujeitos passivos. O artigo 16 do Código Tributário Nacional os define como tributos que independem de qualquer atividade estatal referida ao contribuinte. Claro que os fatos econômicos, sobre os quais podem incidir os impostos, são variados, razão pela qual a Constituição os classifica atribuindo competência privativa à União, Estados, Distrito Federal e Municípios, a partir de tal classificação. Assim, os campos econômicos são separados de molde a permitir que sobre cada um deles possa incidir o imposto correspondente. É bem verdade que a referência feita na Constituição Federal é genérica, abrangendo o âmbito de incidência do tributo. Nesse sentido, não pode haver tributação que decorra diretamente da Constituição. É preciso mais, que o titular da competência impositiva descreva, sempre respeitando o respectivo âmbito de incidência, o fato gerador do tributo, com todos os seus aspectos, em atenção ao princípio da tipicidade.

Outrossim, a competência tributária é estabelecida de sorte a não permitir que uns invadam o campo tributável de outros. Com efeito, a Federação brasileira é estruturada de forma a que suas ordens parciais de governo tenham fontes próprias de recursos. Mas não só próprias, também exclusivas. Isto significa que não podem os entes que  a compõem alargar suas competências impositivas de nenhuma forma, sobretudo através da utilização de tributos que nada mais constituem do que disfarces daqueles que pertencem à competência alheia.

Em matéria de impostos, a rigidez da partilha das competências impositivas é clara, mesmo no que respeita à chamada competência residual da União (artigo 154 da CF-88).

Mesmo no que respeita às taxas, a Constituição fornece critérios claros para sua imposição. Nos termos do artigo 145 da CF-88 e do artigo 77 do Código Tributário Nacional, só pode haver instituição de taxa se houver atividade estatal consistente na prestação de serviços públicos prestados ao contribuinte ou postos à sua disposição ou consistente no exercício regular do poder de polícia. De outra parte, o serviço público que autoriza a cobrança de taxas é aquele prestado pelo que detiver a competência para tanto. Nesse sentido, é inconstitucional a taxa em razão de serviço público se quem o presta não é detentor da respectiva competência administrativa para instituí-la.

Portanto, impostos e taxas, bem como a contribuição de melhoria, têm seu campo material de incidência definido na Constituição.

Quanto às demais contribuições, têm elas suscitado sérias dúvidas para a sua instituição. De fato, embora as contribuições para a seguridade social tenham sido objeto de copiosa jurisprudência, havendo indicação do aspecto material de seu fato gerador no artigo 195 da Constituição Federal, o mesmo não ocorre com os tributos instituídos com base no § 4º deste mesmo artigo 195.[7]

Também as contribuições sociais gerais, tais como salário-educação (art. 212, § 5º, da CF-88), Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS –  (art.7º, inciso III, da CF-88), PIS e PASEP (art. 239 da CF-88) e outras, têm, na Constituição, parâmetros que limitam seu campo de incidência.

De outro lado, os empréstimos compulsórios previstos no artigo 148 da Constituição de 1988, só podem ser instituídos mediante lei complementar e nos casos excepcionais previstos no seus incisos I e II. Demais disso, o § único do artigo citado contém importante limitação ao exercício da competência tributária à medida em que obriga que o produto da arrecadação do empréstimo seja vinculado à despesa que fundamentou sua instituição.

A rigidez do sistema, pois, tem por objetivo primordial impedir invasões de competência o que, como inicialmente referido, a União tem levado a efeito nas últimas décadas. As invasões de competência prejudicam o sistema tributário como um todo, afetando sua lógica interna e atingem não só os contribuintes como também os demais poderes tributantes. Daí a importância de não se perder de vista, no exame das contribuições de intervenção no domínio econômico, a necessária verificação quanto à verdadeira natureza da figura : se se trata de verdadeira contribuição ou se se caracteriza, em verdade, como mecanismo para usurpação da competência tributária e da rigidez do sistema constitucional tributário, inclusive no que tange à repartição do produto da arrecadação dos tributos.

 

3. As contribuições de intervenção no domínio econômico

 

O artigo 149 da Constituição – que é a única referência existente na Constituição sobre as contribuições de intervenção no domínio econômico  – estabelece competir à União instituí-las, como instrumento de sua atuação em determinadas áreas. Nada mais.

Pois bem, qual é a materialidade de tais contribuições?

Para responder a tal questão, impõe ter presente que :

(i) o artigo 149 da Constituição estabelece que têm elas de ser instrumento da atuação da União nas respectivas áreas. Portanto, a contribuição há de ser um meio para a União atuar no domínio econômico em termos de áreas;

(ii) elas têm de ser verdadeiras contribuições, contendo todas as características que as identificam;

(iii) em relação a elas, assim como em relação às demais contribuições de que cuida o artigo 149 da CF-88, aplica-se o artigo 146, III, da Carta Maior.

As contribuições de intervenção no domínio econômico são tributos cujos traços conceituais supõem, sempre, uma atividade estatal referida indiretamente a um determinado setor, a um grupo de indivíduos e não a toda a população. Portanto, se há intervenção, tem ela de ocorrer em um determinado setor. Intervenção geral não justifica a instituição dessa contribuição.

Seus sujeitos passivos são todos aqueles que pertencem ao grupo ou setor sob intervenção e que tenham especial interesse na atividade estatal ou que dela aufiram benefício diferencial ainda que suposto. Embora a atuação do Estado refira-se ao grupo ou setor como um todo, presume-se que tal benefício alcance cada um de seus membros[8].

A falta de indicação do aspecto material do fato gerador das contribuições torna imperioso que tributo instituído a esse título atenda claramente aos requisitos próprios da figura e que vêm sendo indicados pela doutrina e acolhidos pela jurisprudência. A contribuição distingue-se dos impostos por ser de sua essência o atendimento a uma determinada finalidade, ou melhor, a uma finalidade constitucionalmente prevista. O artigo 149 da Constituição Federal, ao estabelecer que à União compete impor as contribuições “como instrumento de sua atuação nas respectivas áreas”, as entende como instrumento, isto é, meio para um determinado fim. Este fim é a atuação nas respectivas áreas, ou seja, de interesse das respectivas áreas. Portanto, há, antes de mais nada, de verificar-se na própria Constituição quais são as normas que permitem a intervenção do Estado no domínio econômico. Isto porque só como veículo para atingir aquelas finalidades é que se pode instituir contribuições.

É evidente que a falta de critérios do que seja intervenção e domínio econômico impede a identificação adequada dessa figura. Tal ausência de critérios abre um largo campo para que os poderes públicos possam invadir competências alheias ou provocar um bis in idem a pretexto de instituir tributo de sua própria área, infringindo, como já posto, limitações constitucionais próprias de impostos além de lesar interesses de estados e municípios no produto da arrecadação de impostos. Portanto, a correta análise do que e quando seja possível a intervenção é essencial ao deslinde do tema das contribuições.

O artigo 170 contém os fundamentos e princípios que regem toda a ordem econômica nacional. Sua leitura conduz o intérprete, muitas vezes, a algumas perplexidades em face da aparente colisão que têm eles entre si. Aparente, porém, já que do exame do caso concreto e em face da fundamentalidade dos valores envolvidos é que se há de dar maior ou menor prestígio a um ou a outro. O que não pode ocorrer é, a pretexto de afirmar-se um, negar-se completamente o outro. A interpretação supõe um balanceamento dos princípios a partir, sobretudo, de considerações axiológicas[9]. A intervenção do Estado no domínio econômico só pode dar-se nos estritos limites da autorização constitucional.

O artigo 173 da Constituição Federal, estabelece que “ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta da atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.”

Da interpretação do dispositivo verifica-se que os casos de exploração direta da atividade econômica pelo Estado são ou aqueles expressamente previstos na Constituição (art. 21 e art. 177 da CF-88) ou, excepcionalmente, quando houver problemas relacionados com a Segurança Nacional ou relevante interesse coletivo, definido em lei.

Assim, o que o artigo 173 da Constituição autoriza é a exploração excepcional da atividade econômica pelo Estado em área que não é do seu domínio, mas sim dos particulares. Tanto assim, que as empresas estatais criadas para desenvolver tais atividades submetem-se ao mesmo regime aplicável às empresas privadas e não gozam de privilégios fiscais (§§ 1º e 2º do artigo 173). Há, pois, nessas condições, ingerência do Estado em domínio alheio e, portanto, intervenção. Desta forma, a primeira forma de intervenção do Estado no domínio econômico é a prevista no caput do artigo 173 da Constituição Federal.

Outra forma de intervenção é a que consta do § 4º do mencionado artigo 173, que se refere ao abuso de poder econômico e que dispõe : “A lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros“.

Deste modo, o abuso do poder econômico, quando afetar a concorrência, permitirá, também, a intervenção do Estado. Mas não uma intervenção para que ele, Estado, atue empresarialmente, exercendo, com exclusividade ou juntamente com os particulares, atividade econômica. A intervenção autorizada pela Constituição, neste caso, é de natureza regulatória  e que Celso Antonio Bandeira de Melo denomina de intervenção indireta[10]. Na esteira dessa terminologia, dar-se-ia que também se qualifica como intervenção regulatória a que se opera ou pode operar-se em face do que prevê o artigo 174 da Constituição Federal, do qual passamos a tratar.

A intervenção direta do Estado na atividade econômica é excepcional, podendo ocorrer somente dentro das balisas estabelecidas pelo artigo 173, caput, da Constituição Federal – imperativos da segurança  nacional ou relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei, ressalvados os casos previstos na Constituição (arts. 21 e 177 da CF-88). A intervenção indireta do Estado ocorrerá em duas hipóteses: (a) naquela descrita no § 4º do artigo 173[11], que prevê a atuação do estado para reprimir abuso do poder econômico que vise a dominação dos mercados, a eliminação da concorrência e o aumento arbitrário dos lucros e que tem, portanto, natureza regulatória e (b) na contida no artigo 174, que permite a atuação do Estado como agente normativo e regulador da atividade econômica, exercendo as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este apenas indicativo para o setor privado e determinante para o poder público.

O artigo 174 da Carta Maior, permite múltiplas leituras, conforme a ideologia que, pressupostamente, o dispositivo tenha adotado. De qualquer forma, o fato é que o Supremo Tribunal Federal, mais na linha da doutrina nacional representada por José Afonso da Silva[12], Eros Grau[13], Fábio Konder Comparato[14]e menos numa linha ostensivamente liberal, entendeu que o Estado, enquanto agente normativo e regulador da atividade econômica, também pode exercer as funções de fiscalizador, de estimulador e de planejador da atividade econômica, sendo este planejamento apenas indicativo para o setor privado.

Portanto, domínio econômico é aquele reservado à iniciativa privada e a intervenção pode dar-se com fundamento no caput do artigo 173, no § 4º do mesmo artigo 173 e com base no artigo 174 da Constituição Federal de 1988.[15]

As considerações sobre a ordem econômica levam, ainda, ao exame do artigo 163 da Constituição de 1967, na redação dada pela Emenda Constitucional nº 01/69, porque, parece-nos, tinha conteúdo normativo similar ao dos artigos 173 e  174 da Constituição atual. A despeito de tanta tinta que correu sobre a nova ordem econômica, pensamos que na verdade pouco mudou, ressalvada, obviamente, a ideologia ostensivamente estatizante, presente na Emenda Constitucional nº 1, de 1969.

Efetivamente, o artigo 163 da Constituição de 1967 permitia a intervenção e o monopólio de determinada indústria ou atividade “mediante lei federal, quando indispensável por motivo de segurança nacional ou para setor que não possa ser desenvolvido com eficácia no regime de competição e de liberdade de iniciativa, assegurados os direitos e garantias individuais” .

Ora, à letra dos dispositivos, por que hoje se admite a intervenção do Estado no domínio econômico? A intervenção direta do artigo 173 da Carta atual, quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, pode, perfeitamente, ser compreendida no conteúdo do antes citado artigo 163 da CF-67/69. Por outro lado, quando há um setor que não funciona bem em regime de competição, até porque pode haver uma empresa ou um grupo de empresas que têm o domínio completo deste mercado, pode haver uma intervenção regulatória nos termos do § 4º do artigo 173 da CF-88, a exemplo do que autorizava o referido artigo 163 da CF-67/69. E, quando um determinado setor precisa de fomento, porque não funciona, normal ou regularmente, num regime de livre competição, possibilita-se a intervenção do artigo 174 da CF-88. Por que – já dando aqui uma indicação do que se verá adiante – a contribuição de intervenção no domínio econômico de antes é diferente da contribuição de intervenção no domínio econômico de hoje, quando a jurisprudência que causou mais debates sobre o tema foi a relativa ao adicional ao frete para a renovação de marinha mercante – AFRMM[16], que surgiu antes da Constituição atual ?

A definição destes campos leva à conclusão de que a intervenção no domínio econômico de hoje tem pontos em comum com a intervenção no domínio econômico existente sob a égide da Constituição anterior; que domínio econômico é aquele reservado à iniciativa privada; que a intervenção no domínio econômico pode dar-se com fundamento no caput do artigo 173, no parágrafo 4º do mesmo artigo 173 e com base no artigo 174 da Constituição Federal de 1998 e que não há necessidade de instituição de contribuições de intervenção no domínio econômico por lei complementar, pois nada mudou  e o Supremo já julgou constitucionais contribuições que não foram criadas por este veículo legislativo.

Remanesce para exame questão relevante: haveria possibilidade de intervenção em campo constitucionalmente reservado à União? Assim não parece. A intervenção, logicamente, só pode ocorrer em campo de atuação distinto daquele que cabe ao interventor. Portanto, a União só pode atuar no setor privado ou em campo que, embora originariamente reservado ao Estado, passe a pertencer à iniciativa privada por força de autorização, concessão ou permissão.

Assim, atividades como a exploração de portos marítimos, fluviais e lacustres (art. 21, inciso XII), enquanto exercidas pela União, e aquelas previstas no art. 177 da CF/88, que sempre são por ela exercidas, não poderiam ensejar intervenção. E, não havendo intervenção, logicamente não há se cogitar do instrumento  – contribuição – que a poderia viabilizar.

Mas não só por essa razão seria injustificada a contribuição na hipótese cogitada. Se é ela meio através do qual a União pode atuar, qual seria a razão de sua instituição, caso optasse por atuar através da exploração direta da atividade econômica?

Este ponto é fundamental em tema de contribuições de intervenção. Se a contribuição há de ser instrumento da atuação da União em uma determinada área, como explicitamente indicava a redação da Carta pretérita e nos precisos termos do art. 149 da CF/88, é claro que não pode ela atuar nesta área, diretamente, cobrando preço, e cumulativamente arrecadar recursos mediante contribuição. Se assim fizesse estaria atuando por duas vias e, pior, estaria tendo dupla fonte de custeio. Ora, tal contraria o princípio da eficiência (art. 37 da CF/88) e o da proporcionalidade.

Com efeito, explorar é tirar vantagem ou proveito de algum empreendimento”[17]. A União, quando atua diretamente tira proveito econômico de sua atuação, mediante a cobrança de preço, cuja dimensão deverá ser suficiente para a manutenção e também para a expansão da atividade. Admitir a possibilidade de o Estado, concorrendo com a atividade privada, explorar determinada atividade econômica e, ao mesmo tempo, instituir contribuição de intervenção como instrumento para essa exploração, implica perigoso alargamento da competência impositiva da União, porque a autoriza a, a pretexto de melhorar, investir, reaparelhar ou conservar a sua rede toda de serviço público, ou de serviços de interesse público a que se refere o artigo 21, criar as contribuições que bem entender. A par de explorar determinadas atividades e receber o respectivo preço, receberá de outra fonte, o que não faz sentido. Nessa hipótese, não teríamos contribuição, assim entendida aquela que se caracteriza como instrumento de atuação do Estado em determinada área, mas preços, em contrapartida à atuação estatal. A contribuição seria meio de financiar o Estado independentemente da atuação estatal referida ao contribuinte, o que é incompatível com a figura. Nesse caso estaríamos diante de tributo não vinculado.

Além disso, como foi referido, a instituição de contribuição quando a União já pode cobrar preço por sua atuação fere claramente o princípio da proporcionalidade, em virtude do qual a ação do Estado só se justifica se for (i) necessária, (ii) adequada e (iii) razoável (proporcionalidade em sentido estrito)[18]. Ora, se se pode cobrar preço não é (i) necessária a instituição de contribuição para financiar a mesma atividade; (ii) nem adequada, pois a empresa pública deve atuar com os mesmos instrumentos das do setor privado, o que não se coaduna com fonte externa de recursos a serem canalizados exatamente para viabilizar ou impulsionar suas atividades; (iii) nem tampouco razoável, pois, contando a ação estatal com meio próprio que a financia (preços) não é razoável possa ela contar, também, com recursos compulsoriamente arrecadados dos particulares.

Do que, contudo, parece impossível fugir é da enorme dificuldade de apoiar as decisões do plenário do STF em tema de contribuição de intervenção no domínio econômico, no que respeita à possibilidade de sua instituição quando se trata de exploração direta de atividade econômica pelo Estado, em áreas ou setores a ele reservados, não delegadas aos particulares. Realmente, nesta hipótese, não há intervenção, mas mera atuação do Estado, em campo que lhe é constitucionalmente reservado e para o que já recebe o devido e justificado preço.

Em síntese, a instituição de contribuição de intervenção é possível quando haja (i) efetiva intervenção do Estado no domínio econômico,  nos limites das possibilidades constitucionalmente previstas para tanto, (ii) em atividade originariamente reservada ao setor privado ou que tenha a esta sido transferida por autorização, concessão ou permissão, (iii) e que cause um gasto excepcional do Estado ou benefício especial a determinado grupo de indivíduos, componentes do setor objeto da intervenção efetuada.

Aquilo que foge a estes requisitos não pode ser contribuição de intervenção no domínio econômico, tal qual pretendida pelo constituinte, mas coisa diversa, que se presta a financiar, indevida e inconstitucionalmente, as atividades gerais do Estado.

Ora, interpretação que conduza à negação dos limites antes referidos e que justifique a instituição de contribuições apenas e tão somente com fundamento na finalidade constitucionalmente prevista, abre à União a possibilidade de criar tributo novo, rotulado de contribuição, mas que na verdade tem todas as características de imposto,  o que interfere com o sistema federativo, como se passa a demonstrar.

 

4. A Federação

 

O sistema federativo tem, seguramente, alguns alicerces fundamentais. Não há dúvida que para haver uma tributação deve haver um ente dotado de personalidade jurídica própria e com capacidade de organização. A par disso, é traço característico da Federação que o ente federado tenha fontes próprias de recursos. Enfim, ninguém tem autonomia com o chapéu na mão. A doutrina parece que não discrepa ao estabelecer que dentre os elementos invulneráveis que compõem a forma federativa do Estado brasileiro encontra-se “a enumeração dos poderes tributários da União, dos Estados e dos Municípios”.[19]

Portanto, o tema da tributação e da partilha do produto da arrecadação dos tributos, no ordenamento jurídico pátrio, não pode ser feito sem ter como pressuposto o traçado constitucional da Federação, para o que a Constituição brasileira vale-se de princípios e regras.

Ambos – princípios e regras – são conteúdo de normas constitucionais. Teoricamente podemos dizer que princípios são pautas de segundo grau que presidem a elaboração de regras de primeiro grau. Isto é, princípios são prescrições genéricas, que se especificam em regras. Esta distinção, formulada em tese, não é fácil, porém, de ser sustentada na análise do texto constitucional. A terminologia, mesmo teoricamente, não é pacífica. Isto exige, pois, um esclarecimento terminológico[20].

Embora a distinção entre princípio e regra não seja fácil de ser sustentada teoricamente, pode-se propor os seguintes critérios que ajudam o intérprete[21]:

1.     os princípios não exigem um comportamento específico, isto é, estabelecem ou pontos de partida ou metas genéricas; as regras, ao contrário, são específicas em suas pautas;

2.     os princípios não são aplicáveis à maneira de um “tudo ou nada”, pois enunciam uma ou algumas razões para decidir em determinado sentido sem obrigar a uma decisão particular; já as regras enunciam pautas dicotômicas, isto é, estabelecem condições que tornam necessária sua aplicação (conseqüências que se seguem automaticamente);

3.     os princípios têm um peso ou importância relativa, ao passo que as regras têm uma imponibilidade mais estrita; assim, princípios comportam avaliação sem que a substituição de um por outro de maior peso signifique exclusão do primeiro; já as regras, embora admitam exceções, quando contraditadas provocam a exclusão do dispositivo colidente;

4.     o conceito de validade cabe bem para as regras (que ou são válidas ou não o são), mas não para os princípios, que, por serem submetidos a avaliação de importância, mais bem se encaixam no conceito de legitimidade.

Uma das técnicas fundamentais da hermenêutica constitucional exige que o intérprete postule a unidade da constituição. Esta regra da unidade nos obriga a vê-la como um articulado de sentido. Tal articulado na sua dimensão analítica, é dominado por uma lógica interna que se projeta na forma de uma organização hierárquica. Ou seja, uma constituição, da mesma forma que o ordenamento em geral, também conhece, do ângulo hermenêutico, a estrutura da ordem escalonada. O escalonamento é para a dogmática jurídica condição da unidade que, por sua vez, garante ao ato interpretativo o respeito aos valores da segurança e da certeza. Conforme a tradição constitucionalista, sem esta unidade a constituição corre o risco de se tornar instrumento de arbítrio.

A noção de hierarquia, sobretudo numa época em que as constituições perdem o caráter de conjunto de normas genéricas, para adquirir o caráter e a complexidade quantitativa e qualitativa de disposições de toda ordem, passa a ser um importante pressuposto hermenêutico[22]. Hierarquia significa que as disposições constitucionais não estão todas postas horizontalmente umas ao lado das outras, mas também verticalmente. Falamos, assim, em sistema escalonado, isto é, disposições coordenadas e inter-relacionadas que se condicionam reciprocamente em escalões sucessivos. Assim, por exemplo, é de se reconhecer, no complexo constitucional, a presença do cerne fixo material representado pelos direitos fundamentais e sua prevalência sobre as demais normas, bem como a diferença entre normas que agasalhamprincípios, normas que instituem princípios, normas que pressupõem princípios, normas que têm mero sentido técnico de organização, que instauram vedações, estatuem objetivos, estabelecem condições etc…

Distinções formais, contudo, não são suficientes para compreender o sistema constitucional. Existem aí aspectos econômicos, sociológicos, jurídicos e filosóficos que não podem ser reduzidos a mera forma. Neste sentido, diz-nos Pinto Ferreira[23] que o “edifício” constitucional possui vários andares: “em baixo, a infra-estrutura das relações econômicas, a técnica de produção e de trabalho, como símbolo de uma economia individualista ou capitalista; logo em seguida as representações coletivas da sociedade, os sentimentos e instituições dominantes da comunidade humana, como reflexo da consciência comunal; depois, o sistema de normas jurídicas que, se inspirando nos antecedentes econômicos e histórico-sociais, corporificam-no em uma carta política; e, acima de tudo, os princípios de justiça, direito natural e segurança coletiva, como o ideal do regime constitucional perfeito”. Esta dimensão material, exemplificada neste texto de Pinto Ferreira, mostra que o sistema e sua unidade comportam complicações maiores que a simples ordem analítica e formal.

Tendo em vista, portanto, a complexidade formal e material do sistema constitucional e, simultaneamente, a exigência hermenêutica da unidade do sistema, deve-se concluir, numa primeira aproximação do problema, que:

a.     toda constituição contém, necessariamente, princípios; e que

b.     no contexto infra-sistemático da constituição, os próprios princípios, em face  da estrutura hierárquica, não têm o mesmo peso nem a mesma função. Donde se segue que a observação dos princípios comporta análise e discriminação.

O. Bachof[24], ao discorrer sobre a tese doutrinária da existência de normas constitucionais inconstitucionais, distingue entre princípios de caráter puramente positivo e princípios de caráter extrapositivo. A distinção não significa, porém, uma discriminação entre princípios inscritos e não inscritos num texto constitucional, mas aponta para a diferença entre princípios estatuídos e princípios reconhecidos pelo constituinte. Não é o caso de aprofundar esta distinção. Não obstante, ela assinala a existência de princípios – os reconhecidos – cuja universalidade, em tese, ultrapassa os limites das constituições estatuídas. Nestes termos, é conhecido o disposto no artigo 16 da Declaração francesa de 1789: “toda sociedade na qual não está assegurada a garantia dos direitos nem determinada a separação dos poderes, não tem Constituição”. A própria Constituição Federal  determina que os direitos e garantias nela expressos “não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”(artigo 5o, § 2o).

Sem entrar no mérito da universalidade dos princípios – o da proteção da dignidade da pessoa humana em face do poder, decorrente da declaração dos direitos individuais e garantias constitucionais ou o da separação dos poderes –  é importante mostrar que a distinção de Bachof nos permite encontrar um primeiro significado para a expressão princípio constitucional. Trata-se, pelos exemplos, de pautas primárias de uma Constituição que, por pressuposto, dão sentido à principialidade do ato constituinte. Assim, se o ato constituinte é um ato inaugural (principialidade), a liberdade (como espontaneidade principial do ser humano) há de ser, necessariamente, um de seus atributos fundamentais. Em conseqüência, princípio constitucional não é apenas uma pauta inicial, não se confunde com um mero começo, mas é pauta que dá sentido ao que se segue em decorrência.

Nesse primeiro sentido, princípios fundamentais de uma Constituição são aqueles que lhe dão sentido de primeira norma. É o caso, por exemplo, do princípio da supremacia das normas constitucionais. Sem eles não há constituição, sem eles a principialidade do ato constituinte não ocorre.

A Constituição brasileira de 1988 declara estes princípios no seu Título I : “Dos princípios fundamentais”. Este título contém, por assim dizer, o traçado do ato principal do poder constituinte originário. É assim que ele se instaura. Deste modo, alterar o que consta dos artigos 1°, 2°, 3° e 4° é principiar outra constituição. Aqueles princípios, que ali se chamam “fundamentais”, “objetivos fundamentais” e “princípios”, são a base da principialidade constituinte originária: neles está a supremacia de uma ordem nova. Isto o poder constituinte derivado não pode alterar, pois seu poder constituinte ali se principia como ali se principia o próprio poder constituinte originário. Por este seu caráter de fundamentos da própria principialidade, estes princípios devem ser chamados de fundamentais. Tais princípios estão ali com o ato constituinte.

Por seu caráter originário destaca-se, inicialmente, no artigo 1º, o que se poderia chamar de princípio congênito do exercício do poder: só o povo é suporte de qualquer poder, inclusive o constituinte. Este princípio do ato constituinte se desdobra, analiticamente, no princípio da soberania popular, da cidadania como o direito de ter direitos[25], da dignidade da pessoa humana (base para os direitos fundamentais), do caráter social e livre da atividade econômica (trabalho e livre iniciativa), do pluralismo político e da tripartição dos poderes. Com base nestes princípios originários, a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito que é sua fórmula-síntese. A partir desses princípios originários, o poder constituinte instaura a República Federativa.

República e Federação são regime de governo e forma de Estado que têm por base o princípio republicano e o princípio federativo. Estes já têm caráter estatuído. Também eles são fundamentais, mas não são originários no sentido de imanentes à própria principialidade do exercício do poder constituinte. São uma opção fundamental do poder constituinte. Por seu caráter podemos chamá-los de fundamentais instituídos. Sem os primeiros, o poder constituinte não se constitui. Os segundos decorrem do seu exercício.

Há princípios, também fundamentais, que são reconhecidos pelo poder constituinte no momento em que este se exerce, mas que delineiam  o poder constituinte em face de outros poderes igualmente constituintes. São os princípios que regem as relações internacionais. Estes, por seu caráter, são princípios fundamentais de reconhecimento mútuo. Por fim, o artigo 3° traça objetivos fundamentais da República. A palavra princípio cabe aqui no sentido de finalidade, meta[26]. Tais princípios dão o sentido de orientação da República Federativa, regulando-lhe a atividade, impondo-lhe um telos do qual não deve desviar-se. Por seu caráter, são princípios fundamentais teleológicos.

Os princípios fundamentais originários, instituídos, de reconhecimento mútuo e teleológicos constituem o núcleo sensível da Constituição Federal, de tal modo que o constituinte derivado neles encontra a condição fundamental de seu exercício. Neste sentido, eles são intocáveis, pois alterá-los é colocar-se como constituinte originário. Do ângulo da hermenêutica constitucional, dir-se-ia que tais princípios não admitem interpretação restritiva, desdobrando-se numa série de direitos, garantias e deveres que deles decorrem. Com base neste fundamento, ademais, o constituinte originário procede, assim, à positivação de certas normas que impõem limites ao poder constituinte derivado (artigo 60, § 4°) e outras que disciplinam a intervenção da União nos Estados (artigo 34) bem como de Estados em Municípios (artigo 35) ou da União em Municípios do Distrito Federal (artigo 35). As normas do artigo 60, § 4°, não estatuem princípios, mas reportam-se a eles para limitar o poder constituinte derivado.

 

4.1. A Federação e a limitação imposta ao poder constituinte derivado no artigo 60, § 4º, da CF-88

 

No artigo 60, § 4o, a,a Constituição Federal veda que seja objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir a forma federativa de Estado. O poder constituinte originário, na verdade, ao instituir o princípio federativo, já delineia a federação, estabelecendo-lhe, por sua vez, outros princípios, princípios comuns de organização. Se uma federação é uma repartição de competência, a Constituição Federal distingue entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios (artigo 18) conforme um princípio de autonomia política (auto-organização, autogoverno, auto-administração)[27], que faz parte do princípio federativo.

A instauração de tais ordens jurídicas coexistentes é uma opção do constituinte que exige, no entanto, compatibilidade e conformidade de suas regras. Para efeito desta exigência é que se estabelecem os princípios de organização. Dentre eles mencionem-se os constantes do artigo 37, referentes à Administração Pública dos quatro entes políticos da Federação e comuns a eles, os do artigo 93 referentes à magistratura, os princípios gerais do sistema tributário nacional da Seção I do Capítulo I do Título VI.

Os princípios comuns de organização são, em geral, específicos a certa classe ou assunto especial. Ora se referem à administração, ora à magistratura, ora aos servidores, ora à ordem tributária e orçamentária. Já por essa razão têm um peso menor que os princípios fundamentais, que afetam a estrutura inaugural (principialidade) da Constituição. Sua importância, porém, é decisiva quando se observa o mandamento que veda deliberação sobre proposta tendente a abolir a forma federativa.

Por fim, há de se lembrar, a propósito, que a Constituição contém também os chamados princípios estabelecidos, que, na verdade, são vedações expressas ao poder constituinte derivado, o que nos levaria a falar antes em regras. Assim, por exemplo, o artigo 19 contém regras que vedam à União, Estados, Distrito Federal e Municípios, expressamente, certos comportamentos normativos (por exemplo, recusar fé a documentos públicos, criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si etc.). Outras disciplinam a competência legislativa comum, concorrente e suplementar (artigo 22, § único, artigo 23 e artigo 24). Os §§  1° ao 4° do artigo 24 contêm regras para a disciplina das competências suplementar e concorrente. A distribuição de competências, por meio de regras, contém, porém, a contrario sensu, vedações para o constituinte derivado. Em outros casos, ainda, a Constituição Federal estende, compulsoriamente, aos Estados certas regras, como é o caso do artigo 27, § 1°, em que se manda aplicar as regras desta Constituição sobre sistema eleitoral, inviolabilidade, imunidades, remuneração, perda de mandato, licença, impedimentos e incorporação às Forças Armadas.

Isto posto, resta ainda falar do sentido da expressão “tendente a abolir”. Em primeiro lugar, devemos reconhecer que para observar princípios, o constituinte derivado não se escusa se simplesmente repete um princípio, embora nada impeça de fazê-lo. Observar um princípio significa assim abster-se de emitir regras com conteúdos incompatíveis ou, positivamente, emitir regras constitucionais compatíveis. Não se cumpre um princípio repetindo o seu teor, mas emitindo regras que compõem um conjunto hierarquicamente harmônico. Como os princípios não exigem um comportamento específico, nem são aplicáveis à maneira de um tudo ou nada, observá-los significa seguir-lhes a orientação ao estabelecerem-se derivadamente regras constitucionais. Isto confere ao constituinte derivado uma certa flexibilidade legitimante que faz de sua competência um poder condicionado, mas não limitado. Embora condicionado, o poder derivado não deixa de ser constituinte. E nisto ele é diferente do poder legislativo. Ele não é limitado no sentido de que pode estender ou restringir normas constitucionais. Mas é condicionado porque a inobservância de princípios gera uma ilegitimidade das regras por ele constituídas, cuja conseqüência é a desconsideração do poder constituinte derivado. Nesse sentido, significa que ele não pode sequer deliberar sobre proposta tendente a abolir a forma federativa. E tendea abolir se o princípio federativo é atingido, o que se constata pela violação de princípios organizacionais da federação e de regras decorrentes. Abolir, nestes termos, significa desestruturar a forma federativa, por violar-lhe os princípios e  regras.

Admitindo-se que os princípios fundamentais constituem primariamente o ato constituinte e o princípio federativo é um deles, deixar de observá-lo é negar-se como poder constituinte. Atos tendentes a abolir o princípio federativo são atos normativos inexistentes quanto à sua eficácia e anticonstitucionais quanto à normatividade. Não são propriamente inconstitucionais, mas contra a constituição, isto é, emanados fora do âmbito de legitimidade constituído originariamente. A força de alguns destes princípios é tal que o próprio constituinte originário estabelece, para sua violação, regras sancionadoras que autorizam a intervenção da União nos Estados e destes em Municípios[28]. Aliás, só assim se explica, no seio de uma federação, esta fórmula esdrúxula da intervenção que, aparentemente, fere a idéia de federação, como faz ver, entre outros, Hans Kelsen.[29]

No que se refere à observância dos princípios de organização da federação que, em grande parte, são princípios estabelecidos, por sua estrutura dicotômica (sim/não) próximos de regras, a sua inobservância acarreta a inconstitucionalidade da norma constituinte derivada, isto é, seus efeitos devem ser considerados nulos (mas não inexistentes), cabendo ao STF sobre isto se pronunciar. Isto vale tanto para os princípios da organização quanto para as regras decorrentes. Nesse sentido, o § 1o do artigo 102 da Constituição Federal fala em argüição de descumprimento de preceito fundamental  decorrente da Constituição, conceito que inclui os princípios fundamentais originários, mas também os instituídos, dentre os quais, o princípio federativo[30].

Esta questão parece importante para o tema do sistema tributário nacional em face da forma federativa de Estado.

Como antes referido, o Sistema Tributário Nacional é estruturado como meio organizacional da própria Federação. E nele se insere a classificação dos tributos, a partir do que é feita a partilha da competência impositiva.

A discriminação constitucional de competências em matéria de exações qualificadas condicionalmente (impostos, taxas, contribuição de melhoria) especifica a materialidade a partir da qual poderão ser instituídas exações compulsórias, havendo ainda uma cláusula constitucional genérica para o campo residual (artigo 154, I, da CF), exercendo a relevante função de atribuir a cada pessoa política uma fração do universo possível de incidências. Já em matéria de contribuições, na atribuição de competência, a Constituição adota o critério de instituição de finalidades. Em termos de sistema tributário constitucional, não se trata, pois, de mera classificação (teórica), mas de princípio constitucional de organização, próprio da federação, que, como tal, prevalece perante a legislação infra-constitucional.

Prevaleceria também em face do poder constituinte derivado?

A Federação brasileira resultou de um movimento histórico de contrifugação[31]. O País não nasceu federativo. As antigas províncias, entidades preponderantemente administrativas, transformaram-se imediata e diretamente em Estados. Não houve, entre nós, um processo centrípeto, de agregação, com a decisão de entidades independentes de se associarem politicamente. O poder central, preexistente, é que assumiu a forma federativa. Assim, enquanto nos casos de agregação, a distribuição das competências é, analiticamente, controvertida, no Brasil deve-se partir, historicamente, de uma hegemonia do todo para a constitucionalização das competências parciais.

Este processo de federalização, não obstante, mostra uma passagem progressiva de uma tônica segregacionista, com a insistência na autonomia das unidades parciais, para um federalismo orgânico, com a tônica da cooperação. Assim, já a partir dos anos 30, são normatizadas as relações intergovernamentais, reconhecendo-se o papel da União no custeio, na direção técnica e administrativa das zonas em que as grandes endemias nacionais excediam as possibilidades dos governos locais. Mas é sobretudo na discriminação de rendas que se percebe a nítida tendência para um federalismo solidário[32] – a identidade de destinos, pela comunicação fecunda de recursos: federalismo cooperativo -, espelhado mormente na cooperação financeira por meio de regras capazes de regular o inter-relacionamento resultante do exercício da competência tributária de uma entidade no de outra, conforme três modalidades básicas[33]: a participação em impostos de decretação de uma entidade e percepção por outras ( C.F., arts. 157, I, e 158, I), a participação em impostos de receita partilhada segundo a capacidade da entidade beneficiada (C.F. art. 158, II, III, IV e seu parágrafo único) e a participação em fundos (C.F. art. 159). O federalismo cooperativo exige essa discriminação de rendas, mas num certo sentido a transcende.

Pertinente e aguda, nesse sentido, a observação do Min. Celso de Mello[34]:

“O legislador constituinte, ao reafirmar sua histórica opção pela forma federativa de Estado, pronunciou uma decisão política fundamental cuja essencialidade, na caracterização da fisionomia institucional do modelo consagrado pela Carta da República, levou-o a eleger o princípio da Federação como um dos núcleos imutáveis do nosso sistema constitucional (CF, art. 60, par. 4o , I).

A Constituição do Brasil, ao institucionalizar o modelo federal de Estado, perfilhou, a partir das múltiplas tendências já positivadas na experiência constitucional comparada, o sistema do federalismo de equilíbrio, cujas bases repousam na necessária igualdade político-jurídica entre as unidades que compõem o Estado Federal.

Desse vínculo isonômico, que parifica as pessoas estatais dotadas de capacidade política, deriva, como uma de suas conseqüências mais expressivas, a vedação – dirigida a cada um dos entes federados – de instituição de imposto sobre o patrimônio, a renda e os serviços, uns dos outros”.

Nessa linha de raciocínio, esclarece o Ministro que sendo opoder reformador um poder derivado e subordinado às prescrições jurídicas condicionantes estabelecidas com absoluta supremacia pela Lei Fundamental, “não assiste ao Congresso Nacional qualquer poder de rever ou de reapreciar o sistema de valores essenciais consagrados pela Constituição, dentre os quais avultam, por sua indiscutível relevância, o postulado da Federação e o princípio tutelar dos direitos e garantias individuais, inclusive aqueles de índole jurídico-tributária”[35] (negrito no original).

No texto, o Ministro fazia menção à imunidade recíprocadentre outras conseqüências do princípio federativo. Portanto, em sede de sistema tributário constitucional, certamente há outras, não menos relevantes.

Rubens Gomes de Souza[36] já dizia que o Direito Tributário brasileiro, à época em que escrevia, além dos problemas econômicos e financeiros, apresentava outros, de natureza jurídica, decorrentes do regime financeiro da Constituição. Dentre esses, os principais estavam na possibilidade de caracterização dos impostos privativos, ensejando infrações à discriminação de rendas e às proibições constitucionais em matéria tributária. Finalmente, um grave defeito era apontado no fato de que, na legislação positiva, problemas regidos pelos mesmos princípios recebiam de leis diferentes um tratamento jurídico diverso e, muitas vezes, contraditório. Daí, segundo ele, a necessidade de uma lei que fixasse determinados princípios gerais, a serem observados pelas leis tributárias federais, estaduais e municipais. O projeto de um Código Tributário Nacional originou-se do reconhecimento dessa necessidade.

Na Constituição atual, a atribuição à lei complementar de estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre a definição de tributos e de suas espécies, bem como em relação aos impostos discriminados nela, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes (artigo 146, “a”), reporta-se a uma sistematização de tributos discriminados na própria Constituição. Menção especial merecem, nesse sentido, os artigos 145, 148, 149.

A sistematização de tributos, na própria Constituição, decorre de princípios. Não se trata de sua definição, atribuída à Lei Complementar, mas de seu condicionamento principiológico. Este condicionamento ora tem a ver com direitos e garantias individuais “de índole jurídico-tributária”, ora com conseqüências derivadas do “sistema do federalismo de equilíbrio”.

Comecemos por aquelas, para mostrar como se interpenetram com essas.

José Afonso da Silva[37], ao discorrer sobre as garantias constitucionais individuais e tratar da segurança jurídica (direito à segurança) nela inclui a segurança em matéria tributária, que se realiza nas garantias consubstanciadas no artigo 150: nenhum tributo será exigido nem aumentado, senão em virtude de lei (inciso I), princípio da legalidade tributária, princípios da anterioridade e da irretroatividade (inciso III), proibição do confisco por via da tributação (inciso IV).

O princípio da legalidade, reserva absoluta de lei, fere o tema da segurança no sentido de que, onde o direito é claro e limitado, criam-se condições de certeza e igualdade que habilitam o contribuinte a sentir-se senhor dos seus atos e dos atos de terceiros. A certeza obtém-se pela exigência de ações-tipo (tipificação), ou conforme a materialidade de fatos geradores ou conforme finalidades constitucionais para a atuação do Estado. A igualdade tem a ver com o destinatário das normas, donde a isonomia e proibição de discriminação.

Da segurança em termos de legalidade decorre uma exigência de sistematização material e formal, entre as quais há uma complementaridade[38]. Pela sistematização material, assegura-se a racionalidade e unidade de conteúdos[39], cuidando a própria Constituição de discriminar entre impostos, taxas, contribuições de melhoria, contribuições sociais, de intervenção no domínio econômico, de interesse das categorias profissionais e econômicas, dos servidores. A unidade está no caráter de tributo, a racionalização na distinção entre tributos sem (sobre impostos, v. artigo 167-IV da CF) e com afetação – artigo 145-II, III, artigo 149 d

Revista dos Tribunais, 01 de março de 2002 às 11h29

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