17 de dezembro 2020 às 11H43
Ao longo de sua história, o STF nunca julgou tantas questões tributárias como em 2020, paradoxalmente um ano de seríssima pandemia. De acordo com estatísticas oficiais apuradas até segunda-feira (14/12) [1], o Pleno apreciou mais de 1.113 processos no ano, dos quais ao menos 223 — ou, aproximadamente, 20% — abordaram matéria tributária. Relativamente às causas tributárias, 32 foram apreciadas em meio presencial, entre as quais duas repercussões gerais, e outras 191 foram julgadas em ambiente 100% virtual, incluindo 42 repercussões gerais.
É humanamente impossível julgar tantos processos em apenas um ano, de sorte que os números acima apenas foram atingidos com a utilização reiterada do Plenário 100% virtual. Embora válido e útil para o julgamento de causas repetitivas com jurisprudência consolidada, esse ambiente não parece adequado para a apreciação de leading cases que veiculem temas inéditos ou controversos. Afinal, por tratar de mera soma de votos lançados individualmente, por cada ministro, no sistema do tribunal, o julgamento virtual dificulta a transparência e dialogicidade inerente aos julgamentos colegiados, bem como o exercício dos direitos de defesa e do contraditório. De fato, nesse sistema: 1) não há possibilidade de debates entre os ministros, em tempo real e sob o escrutínio público da TV Justiça a respeito das razões de decidir de cada julgador; 2) não há garantia de que serão assistidos os “videomemoriais” gravados pelos advogados em substituição às sustentações orais; e 3) não há possibilidade de interferência no julgamento pelos advogados, seja para esclarecer fatos ou suscitar questões de ordem em tempo real.
Em razão das deficiências acima, nossa hipótese é que a utilização excessiva do ambiente virtual, em especial no julgamento de leading cases, afetou a qualidade dos julgados, em especial quanto à fixação da ratio decidendi.
Temos insistido que a garantia de segurança jurídica, estabilidade e previsibilidade da jurisprudência não decorre meramente da parte dispositiva das decisões, e, sim, dos fundamentos (ratio decidendi) compartilhados por um conjunto de decisões do qual resulte uma doutrina clara do tribunal a respeito dos princípios legais interpretados nos casos submetidos a julgamento. Se o tribunal não estabelece os fundamentos teóricos de suas decisões, a orientação jurisprudencial pode ser facilmente alterada, a depender, por exemplo, da mera alteração na composição do colegiado. Essa modificação de jurisprudência contraria a doutrina do stare decisis que, incorporada pelo Direito brasileiro pelo artigo 926 [2] do CPC, impõe aos tribunais o dever de obediência aos seus precedentes. E guinadas jurisprudenciais não atingem apenas a segurança no Direito, mas afeta outros sistemas [3], tais como o político e econômico, a exemplo da elevação do custo (ou risco) Brasil em razão de modificação de um padrão decisório consolidado [4].
Vejamos alguns julgamentos tributários a partir dos quais é possível destacar problemas havidos relativamente à ratio decidendi e alteração jurisprudencial. Outros casos poderiam ser examinados, porém, em função dos limites de espaço, abordaremos apenas alguns exemplos:
IPTU — Progressividade de alíquotas
Em maio, o STF estabeleceu que “são constitucionais as leis municipais anteriores à Emenda Constitucional nº 29/2000, que instituíram alíquotas diferenciadas de IPTU para imóveis edificados e não edificados, residenciais e não residenciais” (RE 666.156). A leitura do voto condutor, da lavra do ministro Roberto Barroso, revela a existência de quase uma dezena de julgados das turmas cujas ementas apontariam para a constitucionalidade da instituição de alíquotas diferenciadas em razão da utilização do imóvel, mesmo antes da EC 29/00. Seguindo-se esse conjunto de julgados, a proposta de voto fora no sentido de reiterar a jurisprudência.
No entanto, do exame dos inteiros teores de todos os julgados citados (AI 772.064, AgR AI 457.057, AgR AI 582.467, AgR AI 642.412, AgR RE 432.989, AgR AI 470.555, AgR RE 469.360, AgR RE 457.982, AgR 422.592 AgR), exsurge a inexistência de qualquer fundamento jurídico determinante (princípio, norma expressa ou valor axiológico) para a discriminação tributária em função da utilização dos imóveis (residenciais ou não residenciais). Alguns desses julgados (AI 772.064 e AI 457.057, por exemplo) nem sequer trataram do tema relacionado ao uso do imóvel, mas apenas da situação relacionada à existência de edificação ou não. Além disso, todos os acórdãos que apreciaram especificamente processos que discutiam a distinção na utilização do imóvel adotaram, como razões de decidir, o RE 229.233. Ocorre que esse julgado original tratou apenas da situação de imóveis edificados e não edificados, não aquela relacionado aos imóveis residenciais x comerciais. Ou seja, o único “precedente” que deu origem a todos os demais acórdãos do STF sobre o tema relacionado à diferenciação de alíquotas em razão da destinação do imóvel não tratou dessa situação. O diagnóstico revela um problema na identificação da ratio decidendi dos precedentes. O fato merece atenção não apenas porque em jogo a apreciação de leading case de repercussão geral e pelo fato de o precedente “mãe” não ter abordado o tema específico sub judice, mas também porque o fundamento jurídico determinante daquele precedente seria, na realidade, favorável à tese do contribuinte relativamente à impossibilidade de distinção de alíquotas de IPTU em razão da mera destinação do imóvel. Afinal, no RE 229.233, apenas se possibilitou a diferenciação de alíquotas, antes da EC 29/00, porque ali estava em jogo o “critério constitucional relativo à função social da propriedade. O terreno vazio, inútil, assim mantido para fins exclusivamente especulativos, são apenados, o que é legítimo, legal e moral”. Porém, a permissão para a imposição de “alíquotas diferentes de acordo com a localização e o uso do imóvel” (inciso II do § 1º do artigo 156 da CF/88), fato efetivamente em debate na repercussão geral, apenas foi possibilitada constitucionalmente a partir da edição da EC 29/00 que acrescentou o referido inciso II ao §1º do artigo 156 da Carta Maior.
ISS — Taxatividade da lista de serviços anexa à LC
Em junho, o STF julgou constitucional a interpretação extensiva da lista de serviços anexa à lei complementar 116/03: “É taxativa a lista de serviços sujeitos ao ISS a que se refere o artigo 156, III, da Constituição Federal, admitindo-se, contudo, a incidência do tributo sobre as atividades inerentes aos serviços elencados em lei em razão da interpretação extensiva” (RE 784.439, julgado em 29/6/2020).
O julgamento demonstrou disparidade de entendimentos na fixação da ratio decidendi do tribunal. Afinal, conquanto os ministros Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e Celso de Mello tenham concordado com o dispositivo do voto da relatora, ministra Rosa Weber (pelo desprovimento do recurso do contribuinte), tais julgadores discordaram da supracitada tese e dos fundamentos do voto condutor, pois a viabilização de interpretação extensiva, sem a definição de que isso somente seria possível naqueles serviços em que a própria lista ofertasse “abertura textual” (tais como nos que contêm os termos “congêneres”, “qualquer”, “quaisquer”, “outros” etc.), resultaria no esvaziamento da própria taxatividade da lista. Realmente, da forma como a tese fora fixada, na prática houve contrariedade à jurisprudência histórica [5] do tribunal quanto à taxatividade da lista de serviços, possibilitando conflitos de competência com os Estados nos casos dos serviços mistos e dúvidas tendo em vista a inexistência de fronteira clara entre as interpretações extensiva e por analogia.
Contribuição previdenciária sobre o terço constitucional de férias gozadas
Em agosto, o STF julgou que “é legítima a incidência de contribuição social sobre o valor satisfeito a título de terço constitucional de férias” (RE 1.072.485) “ante a habitualidade e o caráter remuneratório da totalidade do que percebido no mês de gozo das férias” (voto condutor ministro Marco Aurélio). O resultado enseja reflexões. Primeiro, porque não houve qualquer consideração da corrente majoritária em relação aos precedentes específicos do próprio STF que assentaram a não incidência da contribuição na hipótese, tal como os destacados pelo voto vencido do ministro Edson Fachin (AgRg no RE 587.941, relator ministro Celso de Mello, 2ª Turma, DJ 22/11/2018), ou mesmo o caráter infraconstitucional do tema. Isso revela uma fragilização do princípio da colegialidade. Segundo, porque esse tema já estava pacificado pelo STJ, desde 2014, em sede de recurso especial repetitivo, no sentido de que “tal importância possui natureza indenizatória/compensatória, e não constitui ganho habitual do empregado, razão pela qual sobre ela não é possível a incidência de contribuição previdenciária” (REsp 1.230.957, relator ministro Mauro Campbell, DJ 18/3/2014). Embora não se cuide de modificação de jurisprudência do próprio tribunal, a Corte Suprema não pode descuidar de entendimentos de outros tribunais superiores especialmente quando em jogo a interpretação de legislação infraconstitucional realizada em julgamento repetitivo. Terceiro, porque o próprio reconhecimento da repercussão geral dessa tese foi problemático. Com efeito, em 2016, o Plenário virtual do STF, por maioria de votos e vencido apenas o ministro Gilmar Mendes, reconhecera a ausência de repercussão geral da discussão da natureza jurídica de parcelas pagas ao empregado (se remuneratória ou indenizatória) para fins de enquadramento, ou não, na base de cálculo da contribuição previdenciária (RE-RG 892.238, relator ministro Luiz Fux, DJ 13/9/2016). A partir de então, diversos julgados reafirmaram essa posição, inclusive quanto à verba relativa ao terço constitucional de férias (v.g. ARE 956.190 AgR, relator ministro Roberto Barroso, 1ª Turma, DJ 3/11/2016; RE 100.9131 AgR, relator ministro Edson Fachin, 2ª Turma, DJ 23/5/2017; RE 1110555 AgR, relatora ministra Rosa Weber, 1ª Turma, DJ 25/9/2018). Sob a ótica do contribuinte e do Fisco, o tema parecia pacificado nas cortes superiores: o STJ com decisão de mérito pela não incidência e o STF com decisão pela inexistência de repercussão geral. Porém, em 2018, o pleno virtual do STF reconheceu, por maioria apertada (5 x 4) e com ausência de dois ministros, a existência da repercussão geral, o que não apenas alterou a jurisprudência até então consolidada que assentava o caráter infraconstitucional da discussão como propiciou esse cenário de insegurança confirmado com o julgamento de mérito, anos depois, em sentido oposto ao que havia sido estabelecido pelo STJ desde 2014. Em suma, o STF não apenas ignorou a sua própria jurisprudência como superou o entendimento repetitivo do STJ a respeito de um mesmo tema, o que não é desejável para a integridade do ordenamento jurídico que supõe coerência e estabilidade jurisprudencial.
Contribuições sociais: taxatividade do rol do artigo 146 da CF
Em setembro, o STF assentou a constitucionalidade das contribuições ao Sebrae, à Apex e à ABDI ao fundamento de que “deve o elenco da atual redação do artigo 149, §2º, III ser lido com a tônica exemplificativa e não exaustiva, não taxativa” (voto vencedor ministro Alexandre de Moraes, RE 603.624). Trata-se de desconsideração dos fundamentos jurídicos fixados pelo STF, em 2013 (RE 559.937), sobre o mesmo tema de fundo (taxatividade do rol do artigo 149 da CF), conforme bem demonstrou a relatora, ministra Rosa Weber, vencida no julgamento. De fato, ao julgar o RE 559.937, o STF expressamente assentou que “com o advento da EC 33/01, contudo, a enunciação das bases econômicas a serem tributadas passou a figurar como critério quase que onipresente nas normas de competência relativas a contribuições. Isso porque o § 2º, III, do artigo 149 fez com que a possibilidade de instituição de quaisquer contribuições sociais ou interventivas ficasse circunscrita a determinadas bases ou materialidades” (voto ministra Ellen Gracie) e que “o rol do artigo 149, inciso III, alínea a, é um rol taxativo (…) E não é possível, como notou também o ministro Luiz Fux, que a lei ordinária amplie este rol taxativo, consignado na Constituição”. A inobservância da doutrina da corte, tal como realizado neste caso, gera insegurança jurídica.
Algo a celebrar
Por fim, e como seria injusto apenas tecer críticas à Corte Suprema, o STF andou bem em alguns julgamentos, tais como os que reconheceram: 1) a imunidade das exportações realizadas por contribuintes optantes do Simples (RE 598.468, red. p/ acórdão ministro Edson Fachin, DJe 9/12/2020); 2) a inconstitucionalidade da incidência da contribuição previdenciária sobre o salário maternidade; 3) a não incidência de IPVA sobre veículo automotor adquirido, mediante alienação fiduciária, por pessoa jurídica de Direito público (RE 727.851, relator ministro Marco Aurélio, DJe 17/7/2020); 4) a constitucionalidade da restituição da diferença das contribuições PIS/Cofins recolhidas a mais, em substituição tributária, se a base de cálculo efetiva for inferior à presumida (RE 596.832, relator ministro Marco Aurélio, DJ 21/10/2020); 5) a revogação da Súmula 584/STF (RE 159.180, relator ministro Marco Aurélio, DJ 17/8/2020); e 6) a incidência de ISS sobre medicamentos preparados por farmácias de manipulação sob encomenda e de ICMS sobre as venda de medicamentos ofertados em prateleira (RE 605.552, relator ministro Dias Toffoli, DJ 6/10/2020).
Em suma, não há como esquecer o ano de 2020. Em que pese o elevado número de causas tributárias apreciadas pelo STF, o que poderia ser comemorado do ponto de vista quantitativo, sob o prisma qualitativo observaram-se problemas no estabelecimento das razões de decidir que foram muitas vezes incoerentes com posicionamentos anteriores da corte. Isso provavelmente tem a ver com a utilização massiva do Plenário 100% virtual que possui deficiências relacionadas à concreção do princípio da colegialidade (e da dialogicidade a ele inerente) e ao exercício do direito de defesa/contraditório.
[1] <https://transparencia.stf.
[2] Artigo 926: “Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente”.
[3] LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Trad. Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983, p. 42-132 (A Formação do Direito: bases de uma teoria sociológica).
[4] GOLDBERG, Daniel. As abelhas e as leis em tempos de Covid-19. Jota, 15.04.2020.
[5] RE 87.931, relator ministro Xavier de Albuquerque, DJ 23/3/1979; RE 91.737, relator ministro Décio Miranda, DJ 27/3/1981; RE 361.829, relator ministro Carlos Velloso, DJ 24/2/2006; RE 450.342 – AgR, DJ 3/8/2007, relator ministro Celso de Mello.
Hamilton Dias de Souza é fundador dos escritórios Dias de Souza Advogados Associados (SP) e Advocacia Dias de Souza (DF), especialista e mestre em Direito Tributário pela USP.
Daniel Corrêa Szelbracikowski é sócio do escritório Advocacia Dias de Souza, mestre em Direito Constitucional pelo IDP e especialista em Direito Tributário pelo Ibet.
Revista Consultor Jurídico, 17 de dezembro de 2020, 10h05
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