24 de abril 2018 às 16H01
O caso da LC 157/16
Em junho de 2017 o Congresso Nacional derrubou o veto da Presidência da República ao art. 1º da Lei Complementar 157/2016, estabelecendo, a partir de então, uma mudança na cobrança do imposto sobre serviço (ISS) incidente sobre os serviços de administração de fundos de investimentos, consórcios, cartões de crédito/débito e congêneres, planos de saúde e arrendamento mercantil: o imposto, ao invés de ser pago ao Município onde efetivamente o serviço é prestado, passou a ser devido ao Município do domicílio do tomador ainda que no aludido território nenhum resquício de serviço houvesse.
A alteração foi impugnada no Supremo Tribunal Federal nas ADIs 5835, 5840, 5844, 5862 e na ADPF 499. É comum a essas ações o questionamento da modificação, por norma infraconstitucional, da estrutura da regra-matriz do imposto sobre serviços pressuposta pela Constituição Federal no inciso III do art. 156. Alega-se que a tributação da mera “tomada” de serviço em território no qual não haja qualquer vestígio de serviço implica a alteração dos critérios material, espacial e pessoal do imposto com a consequente usurpação da competência constitucionalmente deferida ao Município da prestação do serviço para a cobrança do tributo.
Há, porém, outro importante aspecto da discussão, que consiste em saber se uma norma precisa ter densidade normativa suficiente para ser considerada constitucional.
Essa questão apenas foi arguida pela CONSIF e CNSEg na ADI 5835. Alega-se que a indeterminação normativa do art. 1º da LC 157/16 impede sua aplicação segura e eficaz pelos contribuintes e Municípios, o que atrai a pecha da inconstitucionalidade.
O tema transcende a hipótese em exame. Afinal, é de interesse de toda comunidade jurídica saber se é possível validar constitucionalmente atos produzidos por qualquer um dos três Poderes que não se revistam da necessária densidade normativa.
O assunto não é frequente na jurisprudência, porém foi bem percebido pelo Exmo. Ministro Alexandre de Moraes, Relator das ações que questionam a LC 157/16. No último dia 23/03/2018, Sua Excelência deferiu o pedido de medida cautelar para suspender a LC 157/16 (e, por arrastamento, toda a legislação municipal editada com espeque na lei federal) por entender aplicável à espécie uma das poucas decisões do STF que bordejaram o tema da inconstitucionalidade de lei complementar por falta de determinação.
Trata-se da ADI 1600 no bojo da qual o STF apreciou a LC 87/96 relativamente às normas que previam a incidência de ICMS no transporte internacional de passageiros. Na ocasião o STF estabeleceu que “o legislador infraconstitucional tem a obrigação de produzir normas de solução de conflitos de competência entre as unidades federadas (CF, art. 146, I). Não o fez. Pelo contrário, disciplinou a matéria inviabilizando a aplicação das regras constitucionais” (p. 28, Voto Nelson Jobim – ADI 1600, DJ 26/06/2003)
No caso da LC 157/16 o legislador complementar foi silente em relação a diversos aspectos cujo esclarecimento era – e continua sendo – essencial para que os Municípios brasileiros pudessem instituir e cobrar o ISS depois da modificação relacionada ao aspecto espacial e pessoal da regra-matriz do imposto.
A falta de densidade normativa é verificada, por exemplo, a partir da constatação de que a LC 157/16 determinou a cobrança do ISS pelo Município do domicílio do tomador do serviço sem estabelecer (i) quem seria o tomador em cada serviço; (ii) qual seria o domicílio a ser considerado nos casos de operações realizadas pela internet, (iii) do exterior e (iv) nos casos em que o tomador possuísse múltiplos domicílios (cível, eleitoral, fiscal para fins de IR, fiscal para fins de IPTU, fiscal para fins de ISS). Também não (v) estabeleceu um sistema único de cadastro e recolhimento de ISS que permitisse padronizar o cumprimento das obrigações tributárias(principal e acessórias) nos 5.570 Municípios do País.
A insuficiência normativa da lei complementar relacionada a quem seria o tomador em cada serviço comprovadamente1 causou divergência – conflito – entre os Municípios que passaram a definir o tomador como sendo pessoas absolutamente distintas. A omissão da lei quanto às obrigações acessórias também gerou a edição de dezenas de leis Municipais que trataram do tema sem qualquer uniformidade, o que gerou insegurança jurídica, aumento dos custos de conformidade para as empresas e, como não poderia deixar de ser, a judicialização da temática.
O quadro de anomia provocado pela falta de densidade normativa da LC 157/16 era tão grave que as Associações dos próprios Municípios passaram a apoiar a padronização das obrigações acessórias mediante a edição de nova lei complementar, cujos projetos atualmente tramitam no Congresso Nacional (PLS 445/2017 e PLP 461/2017).
À luz desses fatos o Relator da ADI 5835 deferiu o pedido liminar e esclareceu que a “alteração[realizada pela LC 157/16] exigiria que a nova disciplina normativa apontasse com clareza o conceito de ‘tomador de serviços’, sob pena de grave insegurança jurídica e eventual possibilidade de dupla tributação, ou mesmo inocorrência de correta incidência tributária. A ausência dessa definição e a existência de diversas leis, decretos e atos normativos municipais antagônicos já vigentes ou prestes a entrar em vigência acabarão por gerar dificuldade na aplicação da Lei Complementar Federal, ampliando os conflitos de competência entre unidades federadas e gerando forte abalo no princípio constitucional da segurança jurídica, comprometendo, inclusive, a regularidade da atividade econômica, com consequente desrespeito à própria razão de existência do artigo 146 da Constituição Federal”.
De fato, a exigência de determinação das leis decorre diretamente do valor jurídico segurançaque, de acordo com Gustav Radbruch2, é um dos componentes universalmente válidos da noção de direito ao lado da ideia de justiça.
Do valor jurídico segurança decorre tanto a segurança do direito quanto a segurança jurídica. Segundo José Afonso da Silva3, a primeira diz respeito à exigência de positividade do direito, isto é, à inscrição das normas jurídicas em linguagem competente em consonância com seu fundamento de validade maior, a Constituição que“(…) condiciona, não só sua validade, mas também certas exigências a respeito de seu conteúdo, como as exigências de sua praticabilidade”4. A segunda refere-se à exigência de que os atos e fatos jurídicos tenham seus efeitos previstos pelos destinatários das normas e sejam respeitados pelo Poder Público.
Sob o ângulo da segurança as normas indeterminadas não apenas geram imprevisibilidade comportamental, mas, sobretudo, impedem o controle de legalidade, dificultam a aplicação do direito e tornam problemática a defesa do direito subjetivo dos destinatários legais. Por isso, normas desse jaez não podem ser consideradas constitucionais.
A propósito do tema, J.J. Canotilho assevera que “o principio da determinabilidade das leis reconduz-se, sob o ponto de vista intrínseco, às seguintes idéias: Exigência de clareza das normas legais, pois de uma lei obscura ou contraditória pode não ser possível, através a interpretação, obter um sentido inequívoco, capaz de alicerçar uma solução jurídica para o problema concreto. Exigência de densidade suficiente na regulamentação, pois um acto legislativo que não contém uma disciplina suficientemente concreta (= densa, determinada) não oferece uma medida jurídica capaz de: – alicerçar posições juridicamente protegidas dos cidadãos; – constituir uma norma de actuação para a administração; – possibilitar, como norma de controle, a fiscalização da legalidade e da defesa dos direitos e interesses dos cidadãos”(CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 4.ed., p. 257.)
Em suma, o princípio da determinabilidade das leis é decorrência do sobreprincípio5 da segurança, mais especificamente da segurança do direito e da segurança jurídica. Aquela impõe a positivação das regras em respeito ao conteúdo constitucional e às exigências de praticabilidade. Esta, em sua dimensão objetiva6, dirige-se aos três Poderes do Estado7 e impõe a cognoscibilidade e calculabilidade de normas gerais, legais ou regulamentares relativamente aos efeitos de atos ou fatos jurídicos praticados pelos indivíduos.
Nesse contexto, a insuficiente densidade normativa de lei editada pelo Poder Legislativo resulta na sua inconstitucionalidade por ofensa ao princípio da segurança jurídica e, consequentemente, à legalidade.
A inconstitucionalidade por ausência de determinação é agravada quando está em jogo norma de caráter geral, como é o caso de lei complementar em matéria tributária. Isso porque essa espécie normativa possui a relevante função de dispor e prevenir conflitos de competência entre os entes federativos (art. 146, I da CF), regular as limitações constitucionais ao poder de tributar (art. 146, II da CF) e estabelecer regras gerais em matéria tributária (art. 146, III da CF).
Diante dessas funções, de verdadeira complementação do sentido e alcance das regras constitucionais, a insuficiência de densidade normativa tem o condão de agredir a segurança jurídica com maior intensidade tanto para os contribuintes quanto para o Fisco. Os primeiros, porque podem ser impedidos de razoavelmente prever a exigência estatal; ficar sujeitos aos efeitos nefastos dos conflitos de competência, tais como a pluritributação, ou mesmo desprovidos da regulação de alguma limitação constitucional ao exercício do poder de tributar. O segundo, porque pode ser prejudicado no exercício de sua competência constitucionalmente atribuída de instituir e cobrar tributos em razão da existência de conflitos de competência e/ou da ausência de diretrizes gerais mínimas a respeito de elementos tributários essenciais.
Esse ângulo da matéria foi analisado por nós à luz da “norma antielisão” introduzida pela LC 104/01. Anotou-se que a exigência de determinação da lei complementar “(…) não é meramente formal. A adequada disciplina da matéria por lei complementar afigura-se essencial para a manutenção da coerência do sistema tributário e da harmonia entre as pessoas políticas. As leis tributárias federais, estaduais e municipais valem apenas no âmbito territorial reservado ao respectivo ente de direito público (CF, art. 24 c/c CTN, art. 102). Faltando critérios claros e uniformes na lei complementar, cada ente federativo deveria elaborar suas próprias leis ordinárias para estabelecer o procedimento a ser observado para a desconsideração dos atos e negócios praticados por seus jurisdicionados, ensejando a existência de disposições conflitantes ou, pior, que disciplinem somente aspectos processuais da questão, criando uma verdadeira ‘babel tributária’”8.
Em conclusão, o tema da inconstitucionalidade por insuficiência de densidade normativa, em geral e no contexto das leis complementares, é relevante e transcende o caso examinado. Trata-se, afinal, de uma questão de segurança jurídica. Nessa esteira, o julgamento de mérito da ADI 5835 oferecerá ao STF a possibilidade debruçar-se sobre o tema com maior profundidade.
Hamilton Dias de Souza – Advogado, sócio fundador da Advocacia Dias de Souza e da Dias de Souza Advogados Associados, mestre e especialista em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).
Daniel Corrêa Szelbracikowski – Advogado, sócio da Advocacia Dias de Souza, mestre em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET).
1 – Os Municípios de Osasco/SP, São Paulo/SP e Londrina/PR, por exemplo, definiram o “grupo de consórcio” como o tomador do serviço, a atrair a cobrança do imposto para o seu território;
2 – Os Municípios de Porto Alegre/RS e Jundiaí/SP, a ABRASF e a CNM estabeleceram, diferentemente, o “consorciado” como o tomador do serviço, a atrair a cobrança do imposto para o seu território.
Exemplo 2 – Serviço de administração de Fundos de Investimentos:
1 – Os Municípios São Paulo/SP, Rio de Janeiro/RJ e Osasco/SP definiram como tomador o “fundo de investimento”.
2 – Os Municípios de Porto Alegre/RS e Jundiaí/SP, a ABRASF e a CNM estabeleceram que o “cotista” é o tomador.
2 RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. Tradução Cabral de Moncada. V. I, p. 199.
3 “A segurança do direito, como visto, é um valor jurídico que exige a positividade do direito, enquanto a segurança jurídica é já uma garantia que decorre dessa positividade” (SILVA, José Afonso da. Constituição e Segurança Jurídica, p. 17)
4 Idem, p. 16.
5 De acordo com Paulo de Barros Carvalho, “há princípios e sobreprincípios, isto é, normas jurídicas que portam valores importantes e outras que aparecem pela conjunção das primeiras” (CARVALHO, Paulo de Barros. Princípio da Segurança Jurídica em Matéria Tributária. Revista Diálogo Jurídico. Salvador: DP, nº 16, maio/agosto, 2007, p. 84).
6 Em sua dimensão subjetiva o princípio da segurança jurídica “demanda a intangibilidade de situações subjetivas, com base no princípio da proteção da confiança” (STF – HC 127483, Rel. Min. Dias Toffoli, Tribunal Pleno, DJ 04-02-2016)
7 ‘O objeto da segurança jurídica normalmente é qualificado como abrangendo as consequências jurídicas de atos ou de fatos: há segurança jurídica quando o cidadão tem a capacidade de conhecer e de calcular os resultados que serão atribuídos pelo Direito aos seus atos. Essa é a constatação geral. Como o princípio da segurança jurídica se dirige aos três Poderes, a sua aplicação pode dizer respeito a uma norma geral, legal ou regulamentar, a um ato administrativo ou a uma decisão administrativa ou judicial. Nesse sentido, os ideais de confiabilidade e de calculabilidade, baseados na sua cognoscibilidade, vertem sobre cada um desses objetos’ (ÁVILA, Humberto Bergmann, Segurança jurídica: entre permanência, mudança e realização no direito tributário. 2. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2012. p. 144).
8 SOUZA, Hamilton Dias de; FUNARO, Hugo. A insuficiência de densidade normativa da “norma antielisão” (art. 116, parágrafo único, do Código Tributário Nacional). Revista Dialética de Direito Tributário. São Paulo, n.146, p.61. nov/2007.
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