08 de novembro 2019 às 10H12
Tanto a Câmara quanto o Senado têm se debruçado sobre projetos de reforma tributária que se limitam à tributação do consumo. Propõe-se criar Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e Imposto Seletivo (IS), este último para desestimular o consumo de itens geradores de “externalidades negativas”. O momento político do país, no entanto, é singular, pois o até então consenso quanto à necessidade de mudanças se tornou condição necessária para a superação do cenário de desaceleração persistente, a exigir que várias inconsistências sejam eliminadas. Diante dessa oportunidade única, remodelar apenas os gravames sobre o consumo não é suficiente. O esforço inerente à aprovação de emenda constitucional deve ser melhor aproveitado no bojo de reforma ampla, que solucione, na maior extensão possível, os inúmeros problemas do sistema tributário.
Esta série de artigos refere-se àquilo que o Brasil precisa a título de reforma tributária. Nesta primeira parte, serão tecidas considerações sobre as premissas equivocadas da PEC 45/2019 e da PEC 110/2019, principais projetos em discussão. Na segunda parte, o que se examinará é se e como seria possível introduzir-se em nosso país um IVA dual como o aventado no Substitutivo à PEC 110/2019 apresentado pela CCJ do Senado. E, na terceira parte, serão apontadas questões a serem enfrentadas em sede de reforma constitucional ampla do sistema tributário.
Pois bem, por que dizer não às principais propostas em discussão?
O mito da alíquota única
Um dos pilares de sustentação das propostas discutidas, sobretudo da PEC 45/2019 (Câmara), é a ideia de que tributar o consumo via alíquota única para todos os bens e serviços seria mais justo, na linha de suposta prática internacional. Tal afirmação não é correta. Dados da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) mostram que a maioria dos países tributa o consumo com duas ou mais alíquotas, havendo, ainda, desoneração total para itens essenciais, como alimentos básicos, saúde e educação[1]-[2]. De 169 países pesquisados, 154 encampam esse modelo, isto é, 91%. E, dos 36 membros da OCDE, 34 também o fazem, o que equivale a 94% do mundo desenvolvido. Apenas Chile e Japão têm alíquotas únicas. Diante desses números, pergunta-se: a que “prática internacional” os defensores da alíquota única se referem?
Portanto, a alíquota única não reflete a prática internacional. E isso se explica. A tributação sobre o consumo é regressiva por natureza. Somente faixas de alíquotas em número razoável (três, por exemplo) permitem minimizar esse problema, evitando iniquidades óbvias, como a incidência do mesmo percentual sobre itens da cesta básica e joias. Assim, é recomendável abandonar-se a ideia de alíquota única e concentrar o debate na definição de faixas razoáveis de tributação. A escolha deverá considerar, de um lado, as necessidades arrecadatórias dos entes tributantes e, de outro, as peculiaridades econômicas de cada setor, além, é claro, do imperativo de desonerar itens essenciais, sob pena de prejuízo às populações carentes.
Note-se, a propósito, que, por ser regressiva, a alíquota única não se compatibiliza com mandamentos nucleares do sistema constitucional tributário em vigor, como o da isonomia. Afinal, isso faz com que consumidores com perfis de consumo e disponibilidades econômicas distintas sejam tributados na mesma intensidade, o que também contraria o princípio da capacidade contributiva.
Sobre o que acima se disse, o quadro 1, elaborado a partir de dados do IBGE do biênio 2017-2018, mostra que, considerando o rendimento médio mensal das famílias brasileiras (R$ 3.764,51), as despesas com habitação, alimentação, transporte e saúde correspondem a 80% de seus ganhos. Tal constatação é surpreendente, pois mostra que as reformas discutidas, especialmente a da PEC 45/2019 (alíquota única), causarão elevação substancial de carga tributária para tais itens. Alimentos básicos deixarão de ser desonerados. Saúde, educação e transporte também serão altamente tributados.
O problema federativo
Outro pilar das propostas discutidas é a fusão dos atuais ICMS, IPI, ISS, PIS e Cofins na forma de imposto único sobre bens e serviços. A hipótese não é absurda sob a ótica econômica, mas esbarra na proibição a emendas constitucionais que reduzam a autonomia dos entes federativos. Afinal, ela concentra 41,5% das verbas tributárias da União (IPI/PIS/Cofins)[3], 88% das receitas dos estados (ICMS) [4] e 43% da arrecadação municipal (ISS)[5] em um só tributo, que, nos termos da PEC 45/2019, ficará nas mãos da União. Já na fórmula da PEC 110/2019, o tributo ficará sob o poder de um comitê gestor integrado apenas pelos estados, sem participação da União e sem regras de partilha, representatividade e liderança definidas. Aqui, a grande questão é de praticabilidade e viabilidade política. Imagine-se como ele funcionaria na prática, sem que a União, de alguma forma, mediasse os interesses envolvidos.
Se a fusão do IPI, PIS e Cofins com o ICMS e o ISS esbarra em problema federativo[6]-[7], nada impede (e até se recomenda) que haja a unificação dos tributos federais sobre o consumo (IPI, PIS, Cofins) entre si, de um lado, e do IRPJ e CSSL, de outro. Os primeiros incidem sobre bases econômicas semelhantes e que, em essência, equivalem ao faturamento das pessoas jurídicas. Da mesma forma, os últimos gravam o lucro das empresas. Em ambos os casos, há superposição de obrigações acessórias que cria custos desnecessários para o contribuinte. As unificações aventadas são opções vantajosas para racionalização e redução de complexidade do sistema. Afinal, dados do Banco Mundial mostram que os contribuintes brasileiros perdem, em média, 1.950 horas por ano para cumprir obrigações fiscais. Isso é mais que 12 vezes a média dos países da OCDE e quase seis vezes a média de nossos vizinhos da América Latina (330 horas/ano)[8].
De outro lado, também não há óbice federativo para que se promovam reestruturações que envolvam a tributação estadual e municipal sobre o consumo. Pode-se pensar, inclusive, em transferir aos estados parte da competência para a tributação dos serviços hoje detida pelos municípios, desde que se preserve a autonomia destes para gravar serviços de interesse prevalentemente local e para fazer política fiscal[9].
A ausência de limites à instituição do Imposto Seletivo (IS)
Outro aspecto comum e controverso das propostas em debate é que, além da criação do IBS, também se pretende introduzir Imposto Seletivo, sob a justificativa de que determinados itens (por exemplo, cigarros e bebidas) devam sofrer tributação adicional. A esse respeito, as maiores preocupações residem na PEC 45/2019, cujos termos não fornecem limites conceituais claros, como fato gerador, base de cálculo, contribuintes, nem parâmetros de elegibilidade dos setores e produtos a serem atingidos. Já a PEC 110/2019 indica quais itens poderão ser gravados (petróleo, combustíveis, energia, telecomunicações etc.). Curiosamente, em sua justificação, a PEC 110/2019 afirma que caberá à lei complementar definir “quais os produtos e serviços estarão incluídos” no Seletivo e que “sobre os demais produtos incidirá o IBS”, embora não haja nas normas do projeto nenhum elemento que garanta essa estrutura. Enfim, ao que tudo indica, em ambas as PECs a União poderá exigir Imposto Seletivo sobre bases idênticas às do IBS.
A propósito da PEC 45/2019, note-se que a maioria absoluta dos bens e serviços em circulação geram “externalidades negativas” em alguma medida. Álcool e fumo são os exemplos mais elementares, daí terem sido citados nas propostas discutidas. Porém, o mesmo critério poderia ser adotado para justificar exigências adicionais sobre grande número de atividades e setores, muitos deles estratégicos, como energia elétrica.
O que acima se disse mostra que é fundamental definir o escopo do Imposto Seletivo, segundo o critério da essencialidade, exigindo-se lei complementar para indicar itens passíveis de sua incidência, além de delimitar o fato gerador e a forma de cálculo do tributo. Ainda, sua arrecadação deverá ser partilhada com os demais entes, como ocorre com outros impostos federais.
Conclusão
Diante da inadequação das propostas acima referidas, seja pelo caráter regressivo, desigual e antifederativo do IBS nelas previsto, seja pela ausência de contornos satisfatórios para o Imposto Seletivo, é preciso pensar em soluções alternativas, para compatibilizar a necessidade de reforma com as diversas limitações constitucionais e fáticas (político-econômicas) incidentes. Esse tema será examinado na Parte II desta série de artigos, a ser publicada nos próximos dias.
[1] Cf. OECD – Organization for Economic Co-operation and Development. VAT/GST: standard and any reduced rates (2019). Disponível em: http://www.oecd.org/tax/tax-policy/tax-database/ .
[2] Cf. OECD – Organization for Economic Co-operation and Development. Consumption Tax Trends 2018: VAT/GST and Excise Rates, Trends and Policy Issues. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1787/ctt-2016-en .
[3] Cf. RFB. Análise da arrecadação das receitas federais, dezembro/2017. P. 40. Disponível em: http://receita.economia.gov.br/dados/receitadata/arrecadacao/relatorios-do-resultado-da-arrecadacao/arrecadacao-2017/dezembro2017/analise-mensal-dez-2017.pdf.
[4] Confiram-se os dados do Tesouro Nacional citados no Parecer pela admissibilidade da PEC n. 45/2019 apresentado na CCJ da Câmara.
[5] Idem.
[6] Confiram-se, dentre outros, os seguintes artigos: SOUZA, Hamilton Dias de. Reforma tributária: a PEC 45/19 afronta o pacto federativo. Jota, 03.07.2019. Disponível em https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/reforma-tributaria-a-pec-45-19-afronta-o-pacto-federativo-03072019; MACIEL, Everardo; SOUZA, Hamilton Dias de; e ÁVILA, Humberto; MARTINS, Ives Gandra; HARADA, Kiyoshi e CARRAZZA, Roque. Onerar mais não é o caminho O Estado de S. Paulo, 26 julho 2019. Disponível em https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,onerar-mais-nao-e-o-caminho,70002939251.
[7] O Supremo Tribunal Federal reconhece que o Pacto Federativo em vigor inclui a cláusula de autonomia dos entes descentralizados, a qual supõe repartição de competências e receitas de tributos. Tais divisões são consideradas pela Corte Suprema “pilares da autonomia dos entes políticos” (STF, RE 591.033, min. Ellen Gracie), porque “consagram a fórmula de divisão de centros de poder em um Estado de Direito” (STF, ADI 4.228, min. Alexandre de Moraes) e permitem que Estados e Municípios realizem suas incumbências constitucionais. Logo, “não pode emenda constitucional suspendê-la[s] ou afastá-la[s], porque, se o fizer, ofenderá o pacto federativo, enfraquecendo-o, pelo que é tendente a aboli-lo” (STF, ADI-MC 926-5, voto do ministro Carlos Velloso, Tribunal Pleno, DJ 6/5/94).
[8] Cf. Banco Mundial. Doing business in Brazil. Disponível em https://portugues.doingbusiness.org/pt/data/exploreeconomies/brazil#DB_tax
[9] Cf. artigo 24 da Constituição Federal.
Hamilton Dias de Souza é fundador dos escritórios Dias de Souza Advogados Associados (SP) e Advocacia Dias de Souza (DF), especialista e mestre em Direito Tributário pela USP.
Humberto Ávila é fundador do escritório Humberto Ávila Advocacia e professor-titular de Direito Tributário na Faculdade de Direito da USP.
Roque Antônio Carrazza é é fundador do escritório Roque Carrazza Advogados Associados e professor-titular de Direito Tributário da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Revista Consultor Jurídico, 08 de novembro de 2019 às 10h12
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