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12 de junho 2025 às 16H00

Ainda existe coisa julgada no Brasil? – Parte 2

ARTIGO POR JOTA

Autor: Daniel Corrêa Szelbracikowski

Publicado em: 12 de junho de 2025

Link para a matéria original: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/ainda-existe-coisa-julgada-no-brasil-parte-2


Na primeira parte deste artigo, analisamos a decisão proferida pelo STF na QO da AR 2876 e destacamos a fragilidade procedimental do julgamento, a relativização da coisa julgada, a usurpação de competência legislativa pela possibilidade de criação casuística de novas hipóteses de rescisão, o alcance prospectivo da decisão e suas possibilidades hermenêuticas.

Agora, passaremos ao exame das teses 2 e 3 abaixo:

2. Na ausência de manifestação expressa, os efeitos retroativos de eventual rescisão não excederão 5 anos da data do ajuizamento da ação rescisória, a qual deverá ser proposta no prazo decadencial de 2 anos, contados do trânsito em julgado da decisão do STF;

3. O interessado poderá apresentar a arguição de inexigibilidade do título executivo judicial, amparado em norma jurídica ou interpretação jurisdicional considerada inconstitucional pelo STF, se a decisão do STF anterior ou posterior ao trânsito em julgado da decisão exequenda, salvo preclusão (CPC, arts. 525, caput e 535, caput)”.

Limitação de cinco anos e vedação ao retrocesso

A tese de que os efeitos da rescisão, na ausência de modulação, não excederão cinco anos da data de ajuizamento da ação incorre, de um lado, no mesmo problema de invasão de competência do Congresso, ofensa à separação dos poderes e ao princípio democrático, conforme comentamos na primeira parte deste exame.

De outro lado, o mérito (político) da decisão pode ser positivo, a depender do caso concreto, pois se buscou preservar o “passado remoto” da coisa julgada.

Assim, se a relação não for de trato sucessivo e a coisa julgada se reportar a eventos ocorridos há mais de cinco anos, exsurge da tese do STF que nada colherá de eventual rescisória, o que preserva a segurança jurídica.

Assim, por exemplo, se o título transitar em julgado em 2018, se reportar a evento ocorrido em 2005, o pronunciamento do STF ocorrer 2020 e a rescisória for ajuizada em 2022, apenas os eventos de 2017 para frente poderiam ser, em tese, invalidados. Como, no caso, o evento terá sido anterior a 2017 (vg.: um recebimento ou um dano ocorrido em 2005), a rescisória terá de ser julgada improcedente, por não ser possível alcançar-se aqueles eventos, salvo indicação do tribunal em sentido diverso, conforme a tese 1, comentada na primeira parte deste artigo.

Se a relação for de trato sucessivo, será preciso cautela para não piorar a situação do jurisdicionado em relação ao que o próprio STF definiu nos temas 881 e 885, em que a coisa julgada perderia sua eficácia, automaticamente, a partir do trânsito em julgado da decisão vinculante do STF, respeitados, ainda, os princípios da irretroatividade e anterioridade.

De fato, no caso do primeiro exemplo acima (coisa julgada formada em 2018, pronunciamento vinculante em 2020 e ajuizamento da rescisória em 2022), de acordo com os temas 881 e 885, ficariam preservados os fatos ocorridos até 2020.

No caso da propositura de ação rescisória, tendo em vista o definido na tese 2, o jurisdicionado perderia três anos adicionais de eficácia da coisa julgada em relação ao que fora definido nos temas 881 e 885 (2017 a 2020). A única forma de evitar um (vedado) retrocesso em relação ao definido no tema 881 e 885 seria aplicar o novo entendimento apenas para os títulos judiciais que viessem a ser proferidos muito posteriormente ao pronunciamento do STF.

Por exemplo, se a decisão vinculante do STF fosse de 2020, o título transitasse em julgado em 2025 e a rescisória fosse proposta em 2027, a rescisão do julgado albergaria os eventos havidos de 2022 para frente. Apenas neste caso é que seria possível aplicar a tese 2 sem retrocesso em relação à jurisprudência do próprio STF nos temas 881 e 885.

A arguição de inexigibilidade do título: violação à não surpresa e à preclusão

A terceira tese fixada permite a alegação de inexigibilidade com base em precedente do STF posterior ao trânsito em julgado do título, desde que não haja preclusão. Para tanto, o Tribunal declarou, de ofício, sem debate, a inconstitucionalidade dos §§14 e 7º dos arts. 525 e 535 do CPC, que limitavam essa possibilidade. A ausência de debate público sobre esses dispositivos, que sequer eram objeto da AR 2876, configura violação aos princípios do contraditório, da não-surpresa, da transparência, da publicidade e da democracia.

Sobre a tese em si, ela inova em relação às causas em geral, submetidas ao CPC, pois o Tribunal precisou declarar a inconstitucionalidade dos §§ 14 do art. 525 e 7º do art. 535, os quais somente permitiam tal instrumento se a decisão do STF fosse anterior à formação da coisa julgada.

Como houve inovação, o tribunal estabeleceu que essa tese se aplicaria apenas para frente (ex nunc), o que significa que se aplica apenas para coisas julgadas formadas posteriormente a 25/04/2025 (data da ata julgamento). As execuções de decisões transitadas em julgado anteriormente não podem ser impugnadas dessa forma e devem ser submeter ao regime vigente por ocasião do trânsito em julgado.

Se o trânsito em julgado tiver ocorrido na vigência do CPC/1973, caberá alegar a inexequibilidade prevista no art. 741 daquele mesmo CPC/73, o qual supõe que o título seja posterior ao pronunciamento vinculante do STF. Se o título for anterior ao pronunciamento vinculante do STF, o interessado deverá propor rescisória, se ainda for cabível, conforme assentado pelo STF no tema 360/RG, o qual não foi revogado durante o julgamento da QO na AR 28767.

Se o trânsito em julgado tiver ocorrido na vigência do CPC/15, porém antes de 25/04/2025, a impugnação será realizada de acordo com a redação originária dos arts. 525 e 535, os quais também só permitiam esse veículo de desconstituição da decisão se ela fosse posterior ao precedente.

A tese apenas não inovou e, portanto, aparentemente não precisa observar a irretroatividade, em relação aos casos submetidos ao juizado especial (Tema 100). É que, em relação a esses casos, já havia construção jurisprudencial do STF que permitia a alegação de inexequibilidade, seja a decisão anterior ou posterior ao pronunciamento do STF, diante do fato de que, no procedimento de jurisdição especial, não há previsão de ação rescisória.

Ainda assim, mesmo naqueles casos, o STF estabeleceu que a alegação de inexequibilidade do título teria de ser arguida no prazo de dois anos da decisão vinculante.

Embora a tese 3 não estabeleça o prazo de dois anos para a apresentação da petição, mas apenas aluda à necessidade de que não haja preclusão, parece-nos que o prazo geral de dois anos deva ser observado. Primeiro, porque a jurisprudência do Tribunal precisa ser interpretada como romance em cadeia[1], não isoladamente, sendo que esse prazo foi estabelecido pelo próprio tribunal no Tema 100. Além disso, o prazo de dois anos não deixa de ser uma fórmula de preclusão, o que deve ser observado (“salvo preclusão”).

Ao se referir à preclusão, o tribunal ainda mencionou o caput dos arts. 525 e 535 do CPC, que contêm normas que dizem respeito à petição de impugnação ao cumprimento de sentença. Isso significa que, se o executado não alegar a inexigibilidade por ocasião da apresentação da impugnação, isso ficará precluso, o que também ocorrerá nos casos em que tiver havido a propositura de ação rescisória e esta for definitivamente julgada improcedente, por força da preclusão máxima decorrente do fenômeno da coisa “soberanamente julgada”.

Conclusão

A decisão na AR 2876, proferida mediante procedimento questionável, inaugura um novo regime que amplia as possibilidades de revisão da coisa julgada, o que supõe interpretação cuidadosa de cada situação para evitar retrocessos. A coisa julgada ainda existe no país, continua sendo uma cláusula pétrea (arts. 5º, XXXVI e 60, § 4º, IV da CF), mas não há dúvida de que vem sendo enfraquecida pela jurisprudência do STF.

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