26 de julho 2018 às 9H39
De acordo com Nassim Nicholas Taleb[1], o contrário de frágil não é robusto, mas, sim, antifrágil. Frágil é algo que rompe, deforma ou quebra quando em contato com agentes estressores. Antifrágeis, por sua vez, são as coisas, pessoas, sistemas ou nações que se beneficiam dos estressores, não apenas para resistir, mas para crescer e se desenvolver. Exemplo de antifrágil pode ser buscado na mitologia grega, na figura da Hidra de Lerna. Esta ficava mais forte ao ter uma de suas cabeças cortadas. A mutilação gerava o nascimento de duas novas cabeças. O conceito também pode ser compreendido com o exemplo da musculação. O músculo cresce em razão das microlesões (agressões) celulares impostas pelos exercícios de força e resistência[2]. Tanto a Hidra quanto os músculos são considerados antifrágeis. O mesmo conceito pode ser aplicado aos sistemas.
Para que um sistema seja antifrágil, a maioria de suas partes precisa ser frágil, ou seja, estar submetida a processos de tentativa, erro e aprendizado. Os erros cometidos pelas partes geram o fortalecimento do sistema mediante processos de aprendizado. A sequência de tentativas, erros e aprendizados é o que forja, portanto, a antifragilidade do sistema.
E o que isso tem a ver com o Direito, mais especificamente com a responsabilidade civil do Estado e de seus agentes no campo tributário?
Como se sabe, a segurança é um fim a ser buscado com a estabilização contrafática das expectativas dos indivíduos. A previsibilidade como sinônimo de segurança é um dos componentes universalmente válidos da noção de Direito ao lado da ideia de justiça[3]. Também a estrutura do Direito envolve noções de complexidade e contingência[4]. Quanto maior for a complexidade da sociedade, maiores serão também as contingências, que se traduzem na possibilidade de os comportamentos dos outros serem diferentes daqueles esperados. A tarefa do Direito é tentar estabilizar as expectativas dos indivíduos. Paradoxalmente, porém, isso só ocorre em função da imprevisibilidade dos eventos que obrigam o Direito a dar respostas por meio da atividade legislativa ou jurisdicional.
Nesse contexto, a antifragilidade do sistema do Direito parece consistir na sua capacidade de lidar com situações inesperadas a partir do aprendizado decorrente de problemas ocorridos do passado. Esse aprendizado possibilita antever riscos futuros, criando-se um sistema que não se rompe na presença de estressores. A formação da jurisprudência é um exemplo disso. Situações inesperadas no mundo da vida geram disputas, processos e decisões judiciais. O conjunto de decisões judiciais forma e informa a jurisprudência, que, se estabilizada[5], possibilita um maior gerenciamento de riscos e, consequentemente, a antifragilidade do sistema. Ainda que a situação inesperada do futuro não seja idêntica àquelas que geraram os precedentes que constituem a jurisprudência, esta permite — em tese — que soluções sejam racionalmente previstas.
Mas a antifragilidade vai além disso. Considerando que todo sistema aprende com os erros, uma das asserções de Taleb para a assimilação do conceito de antifragilidade é a de “colocar a própria pele no jogo”. De acordo com o autor, se, por exemplo, houvesse maior responsabilização dos agentes que praticam graves erros em negócios financeiros ou governamentais, tais pessoas teriam muito mais cuidado e profissionalismo na realização de seus trabalhos, contribuindo para a criação de sistemas e nações antifrágeis. Um projeto, sistema ou país antifrágil precisa, portanto, de gestores responsáveis por seus atos. A tolerância à irresponsabilidade caracteriza a fragilidade do sistema, camufla sua vulnerabilidade e impede seu desenvolvimento.
Por isso, talvez um dos maiores equívocos da prática jurídica brasileira esteja centrado na cultura de não responsabilização do Estado por atos danosos causados aos cidadãos. De fato, fragiliza o sistema a retirada de qualquer risco para, por exemplo, auditores que autuam empresas contra a lei e a jurisprudência[6], procuradores que acusam sem provas e políticos que desvirtuam sua atuação pública em causa própria, provocando danos os mais variados às pessoas e empresas.
No campo tributário, é raro o ajuizamento de ações de reparação em face do Estado por danos decorrentes de autuações fiscais ilegítimas. Mais rara ainda é a responsabilização pessoal dos agentes públicos encarregados dos atos administrativos danosos ao contribuinte. Isso fragiliza o sistema do Direito e a própria administração pública. De acordo com Taleb, sem a fragilidade das partes — que vem acompanhada de maior compromisso, atenção, engajamento e responsabilidade —, não se estabelece a antifragilidade do todo.
Diante disso, não só o Estado pode — e deve — ser responsabilizado em decorrência de danos causados com a imposição de autos de infração declaradamente ilegítimos como também os agentes fiscais responsáveis pela lavratura desse tipo de imposição fiscal precisam ser responsabilizados pessoalmente em casos de atuação culposa, dolosa ou fraudelenta. Vejamos:
Nos termos do artigo 37, parágrafo 6º da Constituição[7], o Estado responde objetivamente independentemente da licitude ou ilicitude de seus atos. A ativação da norma de responsabilidade depende, porém, da confluência dos seguintes fatores: (i) ato estatal oficial, (ii) dano ao particular, (iii) demonstração do nexo de causalidade entre o dano e o ato estatal, (iv) ausência de causa excludente da responsabilidade e (v) alteridade do dano[8].
Assim, se uma autuação fiscal, posteriormente declarada ilegítima (pela própria administração ou pelo Judiciário), causar dano anormal e especial sobre a esfera jurídica do contribuinte, este poderá pleitear a recomposição do prejuízo com fundamento na supracitada norma constitucional.
Isso não significa que apenas atos ilícitos possam ensejar indenizações. Não é a licitude ou ilicitude do ato que configura a responsabilidade estatal, mas, sim, a ocorrência de dano lesivo à esfera jurídica de terceiro (alteridade do dano), tais como a propriedade, dignidade ou imagem do contribuinte (artigos 1º, III c/c 5º, caput, X, XXII, parágrafo 1º da CF/88)[9]. Porém, no caso específico das autuações fiscais, se estas forem consideradas legítimas, não haverá que se falar em alteridade de eventual dano. Realmente, se a exigência estatal apenas cumprir a lei, o ato — vinculado e obrigatório, nos termos do parágrafo único do artigo 142 do CTN — será absolutamente lícito. A conduta do contribuinte é que, ao contrário, possivelmente será considerada ilícita. Nessas circunstâncias, custos ordinários do contribuinte com sua defesa ou outras depreciações concernentes ao nome/imagem/valor de mercado decorrentes do aumento do passivo tributário não poderão ser juridicamente qualificados como dano. Havendo ato ilícito do contribuinte, a inexistência do auto de infração poderia, ao revés, implicar o enriquecimento ilícito daquele às custas do Estado.
No entanto, tratando-se de ato estatal ilegítimo e causador de dano anormal e especial (devidamente comprovados), o contribuinte poderá pleitear a responsabilização do Estado por tais danos.
Além disso, se for constatada a existência de culpa, dolo ou fraude do funcionário público autor do ato administrativo anulado, também ele deverá ser responsabilizado com fundamento no artigo 186 do Código Civil[10].
Não se desconhece a jurisprudência dos tribunais, segundo a qual “somente as pessoas jurídicas de direito público, ou as pessoas jurídicas de direito privado que prestem serviços públicos, é que poderão responder, objetivamente, pela reparação de danos a terceiros. Isto por ato ou omissão dos respectivos agentes, agindo estes na qualidade de agentes públicos, e não como pessoas comuns” (RE 327.904, rel. min. Ayres Britto)[11]. Na situação em exame, porém, a responsabilidade será subjetiva do agente[12] e objetiva do Estado. Havendo prova do ato culposo ou doloso do agente público, este também responderá pelos danos causados.
Tratando-se de situação na qual o agente público poderá responder até mesmo na esfera criminal, por excesso de exação (artigo 316, parágrafo 1º do CP)[13], não faz sentido que o sistema do Direito dificulte sua responsabilização na esfera civil. Dado que o ordenamento jurídico organiza-se a partir da imposição de sanções (atos coercitivos estatais)[14]condicionadas[15] à realização de condutas prescritas em lei, a cultura de irresponsabilidade dos agentes estatais contribui para a manutenção de condutas indesejadas pelo sistema, tais como a lavratura de autos de infração em contrariedade aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade e eficiência (artigo 37, caput, da Constituição Federal).
Em suma, a criação de um costume de responsabilização do Estado e de seus agentes por danos decorrentes de autuações fiscais ilegítimas parece favorecer a estruturação de um sistema de Direito e de uma administração pública antifrágeis. No caso desta, porque “uma Administração Pública Antifrágil é uma Administração que respeita a Constituição, o devido processo legal, a inexistência da verdade sabida, o direito de ampla defesa, [e] as garantias fundamentais de qualquer cidadão (…)”[16]. Quanto àquele, porque “o que não se concebe é que, diante da normatividade da matéria, fique a Administração Pública, na hipótese de equivoco — que, afinal, para ela implicou inegável vantagem — deixe de indenizar aquele que sofreu o correspondente prejuízo”[17].
[1] TALEB, Nassim Nicholas, Antifrágil: coisas que se beneficiam com o caos, 2012.
[2] CLARKSON, P.M. e TREMBLAY, I. Exercise-induced muscle damage, repair, and adaptation in humans. J. Appl. Physiol.. , p. 1-6, 1988.
[3] RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. Tradução Cabral de Moncada. V. I, 1947, p. 199.
[4] LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Trad. Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983, p. 42-132 (A Formação do Direito: bases de uma teoria sociológica).
[5] Nesse sentido são as diversas normas do Código de Processo Civil (artigos 489, parágrafo 1º, VI; 926, 927 da Lei 13.105/2015) e da LINDB (artigos 24, caput e parágrafo único e 30 do Decreto-Lei 4657/42) que orientam as esferas administrativa, controladora e judicial a respeitarem a jurisprudência em homenagem à segurança jurídica.
[6] A interpretação conjunta dos artigos 24 e 30 da LINDB c/c artigos 100, parágrafo único e 146 do CTN veda a autuação fiscal em decorrência de ato praticado pelo contribuinte de acordo com a jurisprudência, administrativa ou judicial, existente à época do ato.
[7] Constituição Federal de 1988: Art. 37. (…) § 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.
[8] “(…) A teoria do risco administrativo, consagrada em sucessivos documentos constitucionais brasileiros desde a Carta Política de 1946, confere fundamento doutrinário à responsabilidade civil objetiva do Poder Público pelos danos a que os agentes públicos houverem dado causa, por ação ou por omissão. Essa concepção teórica, que informa o princípio constitucional da responsabilidade civil objetiva do Poder Público, faz emergir, da mera ocorrência de ato lesivo causado à vítima pelo Estado, o dever de indenizá-la pelo dano pessoal e/ou patrimonial sofrido, independentemente de caracterização de culpa dos agentes estatais ou de demonstração de falta do serviço público. – Os elementos que compõem a estrutura e delineiam o perfil da responsabilidade civil objetiva do Poder Público compreendem (a) a alteridade do dano, (b) a causalidade material entre o eventus damni e o comportamento positivo (ação) ou negativo (omissão) do agente público, (c) a oficialidade da atividade causal e lesiva, imputável a agente do Poder Público, que tenha, nessa condição funcional, incidido em conduta comissiva ou omissiva, independentemente da licitude, ou não, do comportamento funcional (RTJ 140/636) e (d) a ausência de causa excludente da responsabilidade estatal (RTJ 55/503 – RTJ 71/99 – RTJ 91/377 – RTJ 99/1155 – RTJ 131/417)” (STF – 1ª Turma – RE n. 109615, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 02/08/1996 – destacamos)
[9] MELLO, Celso Antônio Bandeira de, Curso de Direito Administrativo, 32 ª Ed., Malheiros, 2015, 678/679.
[10] Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
[11] No mesmo sentido: ARE 991086 AgR, Rel. Min. Rosa Weber, 1ªTurma, DJe 21-03-2018.
[12] Hugo de Britto Machado defende a responsabilização subjetiva do agente público em casos de culpa ou dolo, nos seguintes termos:
“2ª) A indenização pode ser cobrada diretamente do agente público causador do dano, em ação promovida contra ele e contra o ente público, com pedido de condenação dos dois por serem solidariamente responsáveis, e com pedido subsidiário de condenação do ente público para o caso de não ser reconhecida a presença do elemento subjetivo.
3ª) A ação contra o agente público tem a virtude de fazer valer o efeito punitivo da indenização, contribuinte para prevenir as práticas abusivas hoje tão em voga contra o contribuinte. Além disto, a execução da sentença condenatória não dependerá de precatório, sendo provável, aliás, que o réu faça o pagamento da indenização para evitar o constrangimento da execução.
4ª) A ação contra o agente público, porém, só deve ser proposta nos casos em que o causador do dano esteja plenamente identificado, e seja fácil a demonstração do elemento subjetivo, vale dizer, do dolo ou da culpa.” (MACHADO, Hugo de Brito, Responsabilidade Pessoal do Agente Público por Danos ao Contribuinte, Revista Dialética de Direito Tributário nº. 95, p. 95)
[13] Excesso de exação
§ 1º – Se o funcionário exige tributo ou contribuição social que sabe ou deveria saber indevido, ou, quando devido, emprega na cobrança meio vexatório ou gravoso, que a lei não autoriza:
Pena – reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa.
[14] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito: Introdução à problemática científica do direito. 5. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. Tradução de J. Cretella Jr. e Agnes Cretella, p. 69-70.
[15] “Normas jurídicas são, pois, imperativos sancionadores. Ademais, são também imperativos condicionais, posto que a prescrição da sanção impera sob a condição do comportamento ao qual ela é imputada.” (FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: Técnica, decisão, dominação. São Paulo: Editora Atlas, 1988, p. 115)
[16] CASTRO, Rodrigo Pironti Aguirre de, Gestão Pública Antifrágil: Um novo paradigma para o avanço da Administração Pública in Controle Externo. Coletânea de artigos nas diversas áreas da Administração Pública, 2016, pp. 267/268.
[17] RE 131.741, Rel. Min. Marco Aurélio Mello, DJ 24/05/1996.
Daniel Corrêa Szelbracikowski é advogado, mestre em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), especialista em Direito Tributário e sócio da Advocacia Dias de Souza.
*Veículo:* Conjur, 26 de julho de 2018 às 9h39
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