14 de junho 2021 às 10H30
Em abril o STF afastou o ICMS na transferência interestadual de mercadoria entre estabelecimentos da mesma empresa
Embora positiva para os contribuintes, a recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que afasta a incidência do ICMS na transferência interestadual de mercadorias entre estabelecimentos da mesma empresa tem levantado preocupações quanto ao seu alcance e implicações temporais.
De início, parecia uma simples confirmação da jurisprudência que já está pacificada nos tribunais superiores. Porém, segundo tributaristas consultados pelo JOTA, a decisão influencia no
planejamento das empresas e pode impactar na autonomia dos estabelecimentos e na utilização dos benefícios fiscais que são calculados sobre as transferências.
Em abril, a Corte declarou inconstitucionais dispositivos da Lei Kandir (Lei Complementar 87/1996) na Ação Declaratória de Constitucionalidade 49. Trata-se de uma ação de controle concentrado, na qual a eficácia não é restrita às partes do processo. Essas ações produzem efeitos para todo o país a partir da publicação da ata de julgamento no Diário Oficial e, em regra, quando uma lei é declarada inconstitucional, ela deixa de existir no ordenamento jurídico.
A ação foi levada ao STF pelo governo do Rio Grande do Norte, que buscava validar a cobrança do imposto. Porém, de forma unânime, os ministros afastaram os trechos que previam a incidência do ICMS “ainda que para outro estabelecimento do mesmo titular”. O entendimento foi que o simples deslocamento das mercadorias entre os estabelecimentos da mesma empresa
não é fato gerador do imposto.
“A transferência é entendida como um tipo de movimentação interna da empresa, em que não é caracterizada operação, circulação ou saída que, juridicamente, possa ensejar a cobrança ou mesmo o estorno do ICMS”, explica o advogado Daniel Corrêa Szelbracikowski, sócio da Advocacia Dias de Souza.
Estabelecimentos autônomos
A Corte também declarou inconstitucional o trecho que previa como “autônomo cada estabelecimento do mesmo titular”. Da forma como a decisão foi redigida, a inconstitucionalidade não é
especifica em relação às transferências interestaduais, mas abrange a autonomia de todos os estabelecimentos.
Segundo tributaristas, a autonomia é um fator relevante quando considerado que cada estabelecimento tem obrigações acessórias distintas. Para o advogado João Vitor Kanufre Xavier, do escritório Galvão Villani, Navarro e Zangiácomo Advogados, não é plausível que todo o grupo econômico responda pelas obrigações acessórias da filial de uma empresa, por exemplo.
“A inconstitucionalidade da autonomia dos estabelecimentos foi tratada como pressuposto para declarar inconstitucional a incidência do ICMS na transferência. Se não há estabelecimentos autônomos do ponto de vista jurídico essa transferência não é efetivamente uma saída tributável, e então não tem circulação de riqueza”, explica a advogada Ana Carolina Utimati, do Lefosse Advogados.
Para os advogados ouvidos pelo JOTA, o STF precisa esclarecer se é o caso de uma declaração parcial de inconstitucionalidade, sem redução de texto. Ou seja, a Corte precisa deixar claro que, no caso específico, a autonomia é inconstitucional quando se trata de transferências de mercadoria de estabelecimentos do mesmo dono.
O tema não passou despercebido pelo Estado do Rio Grande do Norte, que entrou com embargos de declaração para pedir esclarecimentos sobre o alcance da decisão quanto à autonomia. O governo também pediu a suspensão dos efeitos da decisão até análise dos embargos e a modulação a partir de 2022.
“Se o Supremo não definir isso, podemos ver no futuro o aumento do contencioso para questionar quem é o ente competente para tributar as operações realizadas por uma filial que esteja em uma unidade [da federação] diferente da matriz”, afirma Daniel Szelbracikowski.
Estorno dos créditos
O aproveitamento dos créditos de ICMS é um dos principais pontos de insegurança para os advogados. Como mostra artigo publicado no Jota, “na prática, os efeitos da ADC tornam incerto
o direito ao creditamento do ICMS nessas operações, tanto na origem como no destino, trazendo um verdadeiro efeito cumulativo de tributação para aqueles contribuintes que se valiam da dinâmica não cumulativa do imposto ao tributar tais operações”.
Nos embargos, o governo do Rio Grande do Norte afirma que a decisão terá impactos nas receitas tributárias entre entes federados e também aos próprios contribuintes. Segundo a ação, a não incidência do ICMS na saída acarretará o estorno dos créditos decorrentes da entrada da mercadoria. A base da argumentação está na previsão constitucional que dispõe que no caso de isenção ou não incidência haverá a anulação de créditos anteriores à operação (artigo 155, § 2º, II, “b”, da Constituição Federal).
A questão ainda não está clara e, para o advogado Igor Mauler Santiago, sócio do Mauler Advogados, a regra constitucional não se aplica no caso porque o crédito subsiste. “A remessa da mercadoria acontece no âmbito da mesma empresa, é uma mudança física, não sendo sequer uma operação, que dirá operação isenta. Portanto, o crédito que a pessoa jurídica tinha quando adquiriu o produto continuará ali mesmo que ela mude esse produto do estabelecimento A para o B. Não é uma operação isenta ou não tributada, que efetivamente determina a anulação do crédito. O crédito continua e não há tributo na saída”, afirma.
Daniel Szelbracikowski entende que o estorno dos créditos aproveitados pelo contribuinte na transferência de mercadorias “só poderá ocorrer se a lei que permite o estorno for declarada ineficaz”. Ele destaca a necessidade de atuação dos estados, que definem a forma de tratamento dos efeitos da decisão. “Só a partir do momento em que a lei estadual que prevê a incidência do ICMS nas transferências for revogada é que o estado poderá eventualmente impedir esse aproveitamento de créditos. Enquanto a lei estadual estiver vigente prevendo a incidência, o estado não pode estornar os créditos”, afirma.
Benefícios fiscais
Um dos argumentos dos embargos é justamente o de que se a decisão tiver um efeito retroativo, o contribuinte vai ter prejuízo nos incentivos fiscais que aproveitou no passado e que são calculados sobre a transferência.
Para a advogada Ana Carolina Utimati, sem a transferência, o benefício deixa de existir e, com isso, “toda a forma que as empresas se estruturaram e organizaram com os estados é impactada. Também se aumenta a carga tributária”.
O tributarista João Victor Kanufre Xavier aponta um exemplo prático. “Digamos que uma empresa tem a possibilidade de diferir [adiar] o pagamento do imposto na importação ou em uma entrada interna, desde que tenha a saída tributada. No entanto, a empresa não vai poder usufruir [dos créditos] se não tributar a saída de transferência, e como isso mudou, a empresa perderá o benefício do diferimento”.
Já Igor Mauler discorda dos argumentos dos embargos. O advogado relembra que o Supremo já decidiu em outra ocasião que os incentivos concedidos sem autorização do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz) não geram créditos no destino.
“O contribuinte já não tinha esse benefício no destino. O que o estabelecimento remetente economizou, por causa do benefício, o estado de destino recusou o crédito. Na prática, não tem prejuízo. O que se economizou numa ponta, pagou em outra. E vale lembrar que está tudo no âmbito de uma mesma empresa”.
Quanto aos incentivos fiscais, Mauler entende que, se a causa da perda do incentivo é o próprio afastamento do tributo sobre o qual ele incide, a empresa não perde. “Se a operação não é tributada, o contribuinte perde o incentivo que incidia sobre ela, mas o incentivo era a redução do tributo”, afirma.
Na avaliação dos advogados, não é possível antever se o STF vai ou não modular a decisão — ainda que a modulação de efeitos em matéria tributária venha se consolidando como praxe no tribunal.
Na exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e da Cofins, por exemplo, o STF decidiu que a decisão vale a partir de 15 de março de 2017, data do julgamento do mérito do processo. Por outro lado, no caso do diferencial de alíquota (difal) de ICMS, a Corte fixou a validade a partir de janeiro de 2022.
Vale registrar que o relator da ADC 49, ministro Luiz Edson Fachin, fez parte da corrente vencida no julgamento da exclusão do ICMS na base PIS/Cofins. Ele e os ministros Rosa Weber e Marco Aurélio Mello votaram contra a modulação para permitir que a decisão retroagisse. A modulação, disse Fachin, deve “ocorrer em situações excepcionais, ou seja, quando há alteração jurisprudencial à luz do interesse social e da segurança jurídica”.
Jota Info 14 de junho de 2021 às 05:13
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