23 de dezembro 2019 às 14H22
O ano de 2019 transcorreu no contexto dos debates sobre a reforma tributária. Em textos publicados na Conjur[1] apontamos os principais problemas que carecem de solução e equívocos contidos nos projetos de reforma em tramitação no Congresso. O que precisa ficar claro para a sociedade é que alteração de conceitos quase sempre resulta em insegurança jurídica. Por isso, a reforma deve ser pontual para resolver os problemas existentes e, ao mesmo tempo, preservar conceitos que, ao longo dos anos, foram interpretados pela jurisprudência. Esse é o cenário que permeará a nossa.
Em 13 de fevereiro a 1ª Seção do STJ assentou que (i) se o mandado de segurança (MS) buscar a declaração do direito à compensação, sem discussão sobre valores, não é necessário juntar todos os comprovantes de recolhimento indevido e (ii) se o MS visar a obtenção de juízo especifico sobre determinada compensação, então é necessária a prova da existência de crédito/débito (REsp’s 1.365.095, 1.715.294 e 1.715.256, Rel. Min. Napoleão Maia Filho). O STJ andou bem. Na hipótese em que o contribuinte busca apenas declarar o direito à compensação, basta a comprovação de que é sujeito passivo do tributo, sob pena de transformar o MS em ação de cobrança em contrariedade à Súmula 269/STF.
Em 28 de fevereiro o STF esclareceu que a ratio decidendi do julgamento que declarou a constitucionalidade da incidência do ISS sobre as atividades prestadas pelos operadores de planos de saúde partiu do conceito civilista de serviço consistente em obrigação de fazer (em contraposição às obrigações de dar), mantendo-se hígido o entendimento plasmado no Recurso Extraordinário 116.121 e na Súmula Vinculante 31. Contudo, o Relator, Min. Luiz Fux, fez um “alerta de que poderá ocorrer uma possível mudança no entendimento da Corte em relação ao assunto, pois não tardará para que este Tribunal se manifeste acerca das novas atividades tecnológicas que tem surgido” (ED-RE 651.703). O julgamento é bom exemplo de indicação dos fundamentos da decisão do Colegiado. Isso contribui para o estabelecimento de uma “doutrina” do Tribunal, como temos defendido ao longo dos últimos anos[2].
Em 25 de março o Min. Luiz Fux concedeu liminar para suspender a eficácia de sentença que determinou novo julgamento de recurso no âmbito do CARF sem que fosse observado o chamado o voto de qualidade. Ao deferir a suspensão de segurança 5282, o Ministro assentou o potencial abalo à ordem pública e o possível impacto à economia pública que o cumprimento da decisão de 1ª instância poderia causar. Trata-se de exemplo do fenômeno do “monocratismo” que se observa no STF. Além da relevância da discussão posta, não havia na espécie risco de lesão à ordem ou à economia pública apta a justificar a suspensão monocrática da sentença, uma vez que não estava em jogo a anulação do crédito tributário, mas tão somente normas aplicáveis ao processo administrativo federal. Quanto ao tema de fundo, entendemos que o voto de qualidade atribuído exclusivamente a representantes do Fisco viola o dever de imparcialidade dos agentes públicos, o que deve ser corrigido na esfera legislativa por um sistema de alternância equilibrada do voto de qualidade entre representantes do Fisco e Contribuinte que contribua com a estabilização da jurisprudência administrativa.
Em 24 de abril o Plenário do STF, por maioria, fixou a tese de que “é inconstitucional lei municipal que estabelece impeditivos à submissão de sociedades profissionais de advogados ao regime de tributação fixa em bases anuais na forma estabelecida por lei nacional” (RE 940.769 RG – tema 918). Prevaleceu o voto do Relator, Min. Edson Fachin, segundo o qual há reserva de lei complementar para dispor sobre a base de cálculo do ISS. O Min. Ricardo Lewandowski acompanhou a solução, porém afirmou que “estamos necessitando urgentemente de uma reforma fiscal no plano federativo, porque, como nós sabemos, desde 1891, desde a Proclamação da República, os municípios e estados não têm sido adequadamente contemplados com as rendas necessárias para cumprirem com as suas extensíssimas competências, que, a cada vez que crescem e a cada vez que se altera a Constituição, ficam mais alargadas”. De fato, o crescimento de contribuições sociais da União , cujo produto da arrecadação não é repartido com os demais entes federados, redundou na diminuição percentual da participação de Estados (especialmente destes) e Municípios sobre a totalidade das receitas tributárias do País. Trata-se de importante questão que deveria ser solucionada nas propostas de reforma tributária .
Em 10 de abril a 1ª Seção do STJ julgou que “os valores de ICMS não integram a base de cálculo da Contribuição Previdenciária sobre a Receita Bruta (CPRB), instituída pela MP n. 540/2011″ (REsp’s repetitivos 1.624.297, 1.638.772 e 1.629.001). Prevaleceu o voto da Relatora, Min. Regina Helena, segundo o qual a base de cálculo de um tributo não pode conter elementos estranhos à sua materialidade . O entendimento é coerente com o já decidido pelo STF (RE 570.706- RG – PIS/COFINS sobre ICMS) e deve seguir de exemplo para que novos impostos previstos nos projetos de reforma tributária não incidam sobre eles mesmos.
Em 25 de abril o STF fixou o entendimento de que “há direito ao creditamento de IPI na entrada de insumos, matéria-prima e material de embalagem adquiridos junto à Zona Franca de Manaus, sob o regime da isenção, considerada a previsão de incentivos regionais constante do art. 43 §2º, III, da CF/88 c/c art. 40 do ADCT”. (Tema 322 – RREE 596.614 e 592.891, Relatores Ministros Marco Aurélio e Rosa Weber, respectivamente). O tratamento diferenciado à Zona Franca de Manaus é garantido constitucionalmente no interesse da Federação, razão por que o direito de crédito deve ser interpretado à luz dessa finalidade. A PEC 110/19 (projeto de reforma tributária) está alinhada a esse entendimento ao prever “crédito presumido do imposto sobre operações com bens e serviços fixado de forma a manter o diferencial de competitividade conferido (…).” (art. 15, caput e parágrafo único, da proposta).
Em 08 de maio a 1ª Seção do STJ (REsp 1.201.993, Rel. Min. Herman Benjamin, Repetitivo) fixou que (i) o prazo de cinco anos para o redirecionamento da Execução Fiscal, contados da citação da pessoa jurídica, é aplicável quando o ato ilícito previsto no art. 135, III, do CTN, for anterior à citação; (ii) a citação do devedor original não inicia o prazo prescricional quando o ato de dissolução irregular for a ela posterior. Nessa hipótese, o termo inicial do prazo prescricional para a cobrança em face dos sócios-gerentes infratores será a data da prática de ato que indique o intuito de inviabilizar a satisfação do crédito tributário, o que deverá ser demonstrado pelo Fisco nos termos do art. 593 do CPC/73 c/c art. 185 do CTN; e (iii) em qualquer hipótese, a decretação da prescrição para o redirecionamento impõe seja demonstrada a inércia da Fazenda após a citação da empresa originalmente devedora/ocorrência do ato ilícito. O julgamento, que rendeu quase oito anos de debate, propicia segurança jurídica ao Fisco e ao contribuinte ao estabelecer diretrizes claras para a decretação da prescrição para o redirecionamento da execução fiscal.
Ainda em 08 de maio a 1ª Seção do STJ estabeleceu que não cabe ação rescisória com base em precedente posterior ao trânsito em julgado da decisão questionada, ainda que a pacificação da controvérsia tenha sido realizada sob a sistemática repetitiva e em sentido diverso daquele constante da coisa julgada material. O julgamento foi proferido na AR 4.443 e reafirmou a higidez da Súmula 343/STF, inclusive quando em jogo algum ângulo constitucional do tema. Entendemos que a posição do STJ prestigia a segurança jurídica e mantém a confiança dos cidadãos na estabilidade das sentenças transitadas em julgado.
Em 27 de junho o STF declarou a constitucionalidade da limitação do direito de compensação de prejuízos fiscais do IRPJ e da base de cálculo negativa da CSLL, em 30%, tal como previsto nos artigos 42 e 58 da Lei nº 8.981/95, 15 e 16 da Lei nº 9.065/95 (RE 591.340 – tema 117 de repercussão geral), reiterando entendimento anterior do Tribunal. Houve esclarecimento expresso de que a limitação à compensação para pessoas jurídicas extintas não estava em debate no processo, podendo ser oportunamente decidida.
Em linha com o esclarecimento prestado pelo STF, a 1ª Turma do STJ iniciou a análise do mesmo tema à luz da legislação infraconstitucional (REsp 1.805.925). O Relator, Min. Napoleão Maia Filho, julgou ilegal vedar ao contribuinte o direito à compensação integral dos prejuízos no último período de apuração e foi acompanhado pela Min. Regina Helena. Divergiram desse entendimento os Ministros Gurgel de Faria e Sérgio Kukina e o julgamento foi interrompido para a prolação de voto de desempate pelo Min. Benedito Gonçalves. Entendemos deva prevalecer a posição do Relator, pois a vedação à compensação integral dos prejuízos implica tributação de patrimônio e não de renda/lucro das empresas extintas.
Em 03 de outubro o STF, sob a sistemática da repercussão geral (RE 870.947), finalizou o julgamento que declarou a inconstitucionalidade da TR como índice de correção monetária das dívidas do Poder Público e estabeleceu a aplicação do IPCAe para a correção das dívidas a partir de julho de 2009. O STF andou bem ao negar a modulação de decisão que não alterou, mas apenas reiterou jurisprudência existente no Tribunal desde 1992, conforme voto divergente apresentado pelo Min. Alexandre de Moraes.
Em 06 de novembro o STF iniciou o julgamento do RE 576.967/PR que debate a constitucionalidade da inclusão do valor referente ao salário-maternidade na base de cálculo da Contribuição Previdenciária. Após quatro votos a três pela inconstitucionalidade da exação o julgamento foi interrompido por pedido de vista do Min. Marco Aurélio. Entendemos deva prevalecer o entendimento do Relator, Min. Roberto Barroso, pois o salário maternidade constitui verba indenizatória.
Em 04 de dezembro o STF declarou constitucional o compartilhamento, mediante procedimento formal, de dados da Unidade de Inteligência Financeira e da Receita Federal com os órgãos de persecução penal sem prévia autorização judicial. O entendimento é razoável, em especial no que tange às informações fornecidas pela RFB no âmbito da representação fiscal para fins penais. Porém, o STF perdeu a oportunidade de fixar como teses de repercussão geral que (i) não cabe à RFB investigar e compartilhar dados, sem o crivo do Judiciário, para a apuração de supostos ilícitos não tributários e (ii) que “o caminho inverso, todavia, não é legítimo: o Ministério Público requisitar à Receita Federal, de ofício, informações protegidas pelo sigilo fiscal. Nesse caso, sim, impõe-se a prévia autorização judicial” (item IV do voto do Min. Roberto Barroso). Isso foi abordado em votos de diversos Ministros, porém não integrou as teses finais estabelecidas, o que teria sido importante para evitar que a polícia ou o MP utilizem a RFB/UIF como se fossem seus agentes de investigação em claro desvio de finalidade.
Em 18 de dezembro o STF, por maioria, julgou que “o contribuinte que, de forma contumaz, e com dolo de apropriação, deixa de recolher ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço, incide no tipo penal do art. 2º, II, da Lei 8.137″ (RHC 163.334, Rel. Min. Roberto Barroso). Embora positivo quanto à mensagem à sociedade de que o Judiciário não tolerará a figura dos chamados devedores contumazes, o julgamento gera perplexidade, pois apenas os devedores eventuais e reiterados, que desenvolvem atividades lícitas, é que serão alvo de ações criminais fundadas em “apropriação indébita” de ICMS. Isso porque os devedores contumazes, que são os verdadeiros criminosos travestidos de empresários, excluem o ICMS do preço de venda dos seus produtos, o que impede seja o tributo “descontado ou cobrado” de quem quer que seja, tornando a sua conduta atípica.
Esperamos que os conceitos jurídico-tributários definidos pela jurisprudência sejam levados em consideração pelo Congresso Nacional nos debates em torno da reforma tributária que dominará a pauta do vindouro ano de 2020.
[1]https://www.conjur.com.br/2019-nov-08/opiniao-reforma-tributaria-brasil-parte; https://www.conjur.com.br/2019-nov-09/opiniao-reforma-tributaria-brasil-parte-ii; https://www.conjur.com.br/2019-nov-10/opiniao-reforma-tributaria-brasil-parte-iii
[2]https://www.conjur.com.br/2018-jan-01/area-tributaria-stf-buscou-manter-estabilidade-precedentes; https://www.conjur.com.br/2015-dez-24/retrospectiva-2015-carf-apesar-zelotes-stf-julgaram-temas-tributarios-relevantes
Hamilton Dias de Souza é fundador dos escritórios Dias de Souza Advogados Associados (SP) e Advocacia Dias de Souza (DF), especialista e mestre em Direito Tributário pela USP.
Daniel Corrêa Szelbracikowski é sócio da Advocacia Dias de Souza, mestre em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e especialista em Direito Tributário.
Revista Consultor Jurídico , 23 de dezembro de 2019, 7h00
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