07 de junho 2016 às 13H47
A Receita Federal do Brasil editou, em 23 de maio, “Perguntas e Respostas” com o objetivo de sanar dúvidas sobre o Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária – RERCT. Todavia, não esclareceu suficientemente qual seria o valor a ser declarado em 31 de dezembro de 2014 por pessoa física que tem ativos financeiros no exterior.
Isso porque a resposta à questão nº 25 é expressa no sentido de que deva ser declarado “o saldo existente em 31 de dezembro de 2014, conforme documento disponibilizado pela instituição financeira custodiante”. Todavia, a resposta de nº 39 afirma que: “Quem desejar estender integralmente os efeitos da lei aos bens e às condutas a eles relacionadas, deverá informar tanto a parte do bem remanescente em 31/12/2014 como a parte consumida”.
Ao que tudo indica, para que o contribuinte fique a salvo de qualquer exigência tributária adicional, deve declarar, segundo a RFB, “o montante consumido” anteriormente a 31 de dezembro de 2014. Tal entendimento, entretanto, conflita com o sentido literal da Lei n. 13.254/16, bem como com a sua sistemática e a sua finalidade, como se pretende demonstrar.
O art. 4º da referida lei determina que, para fins de adesão ao RERCT, o interessado deva declarar os ativos “de que seja titular em 31/12/14”. O §8º do mesmo dispositivo determina que a declaração será realizada pelos “valores de mercado”, “presumindo-se como tal”, para os ativos financeiros, “o saldo existente em 31/12/14”. A Instrução Normativa n. 1627/16 repete o disposto na lei.
Por sua vez, o art. 6º é claro no sentido de que o montante dos ativos acima referidos “será considerado acréscimo patrimonial adquirido em 31 de dezembro de 2014”. A expressão “presumindo-se” do §8º do art. 4º, combinada com “será considerado” do art. 6º, leva à conclusão de que se trata de presunção legal absoluta de ganho patrimonial auferido em 31 de dezembro de 2014 e, como tal, passível de IR e multa nos termos ali previstos.
Acentue-se que, justamente por isso, e por se tratar de lei especial, não se pode considerar, para os seus efeitos, critérios de apuração de valores diversos dos indicados no próprio diploma. Dito de outra forma, a lei não comporta interpretação extensiva, mas estrita. Além disso, também não se pode alcançar o que nela não esteja previsto, por força dos princípios da tipicidade e da legalidade em matéria tributária.
O §4º do art. 6º estabelece que a adesão ao RERCT implica remissão dos créditos tributários e multas relacionados aos ativos em questão, no que se refere a todos “os fatos geradores ocorridos até 31 de dezembro de 2014”. É dizer: todos os tributos federais devidos até essa data (isto é, IR, CSLL, PIS, Cofins, IOF etc.) são exonerados como efeito da regularização.
O até aqui exposto evidencia que a literalidade da lei não admite a interpretação pretendida pela RFB.
A análise sistemática conduz à mesma conclusão. De fato, o art. 4º, §8º, inciso III, estabelece que o titular de participação em pessoa jurídica estrangeira deva declarar “o valor de patrimônio líquido apurado em 31 de dezembro de 2014, conforme balanço patrimonial levantado nessa data”. Nessa hipótese, não seria materialmente possível que nesse balanço fossem considerados valores anteriores. E não teria sentido houvesse tratamento diverso entre pessoas físicas e jurídicas, sabendo-se que muitos utilizam estas como veículo para seus investimentos no exterior.
O inciso II do §8º do art. 4º, por sua vez, estabelece que, para as operações de empréstimo para pessoa física ou jurídica, deva ser declarado “o saldo credor remanescente em 31 de dezembro de 2014, conforme contrato entre as partes”. Não abrange os créditos imediatamente anteriores que tenham sido saldados. Tudo a indicar que a lei foi estruturada de forma a considerar apenas o existente na data tantas vezes referida. Quer dizer, não teria sentido que, relativamente a esse tópico, não se considerassem créditos anteriormente saldados e, para os ativos financeiros, fossem a eles adicionados valores anteriormente consumidos.
Alega-se que essa interpretação possa produzir injustiça, na hipótese de alguém ter, no início do exercício, US$ 300 mil, gasto US$ 270 mil em jogos de azar e terminado o ano com apenas US$ 30 mil, sujeitando-se ao tributo e multa somente sobre esse valor. Todavia, pode acontecer o contrário: a pessoa pode ter em 31 de dezembro de 2014 US$ 300 mil, perder US$ 270 mil em 5 de janeiro de 2015 e ter de pagar o tributo sobre o primeiro valor.
Por fim, a principal finalidade da lei é permitir a regularização do patrimônio enviado ao exterior por variadas razões, dentre as quais a instabilidade existente à época dos planos econômicos (Cruzado I e II, Bresser, Verão, Collor I e II e Real), a teor de sua Exposição de Motivos.
Idênticas medidas foram adotadas em outros países e são estimuladas pela OCDE, como transição para um modelo de transparência fiscal internacional. Em outras palavras, o momento demanda pacificar-se uma situação conflituosa que a ninguém interessa.
Além de tudo, o país enfrenta grave crise financeira.
A Lei nº 13.254/16 também objetiva incrementar a arrecadação de tributos. Ainda que a projeção inicial tenha sido exagerada (algo entre R$ 100 e R$ 150 bilhões), os valores envolvidos certamente não são desprezíveis.
É por tais razões que melhor faria a RFB se reformulasse a resposta nº 39, para evitar que exigências adicionais, a par de ilegais, inibam a adesão ao programa, frustrando o objetivo de, nos termos da sua Exposição de Motivos, “estimular brasileiros que possuam bens não declarados no exterior a reinvestir esses valores internamente”, no momento em que o país mais precisa.
Hamilton Dias de Souza é sócio-fundador da Dias de Souza Advogados Associados, mestre e especialista em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).
E-mail: hamilton.souza@dsa.com.br
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