03 de novembro 2018 às 7H30
Há uma proposta de reforma tributária em trâmite no Congresso Nacional, a emenda substitutiva global à PEC 293-A/2004 proposta pelo deputado Antônio Carlos de Mendes Thame (projeto de Bernard Appy), que propõe a unificação de todos os tributos incidentes sobre o consumo — ISS, ICMS, IPI, PIS e Cofins — em uma incidência única não cumulativa, veiculada por lei complementar federal.
Entretanto a supressão da competência estadual para instituir ICMS e da municipal para ISS implica agressão ao pacto federativo, como se pretende demonstrar.
Uma primeira observação consiste em salientar que não há um conceito geral de federação, aplicável a todos os países. Tudo depende do que dispuser a Constituição Federal de cada um1. Em nosso caso, concluiu o Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI 2.024 que “a forma federativa de Estado — elevado a princípio intangível por todas as Constituições da República — não pode ser conceituada a partir de um modelo ideal e apriorístico de Federação, mas, sim, daquele que o constituinte originário concretamente adotou (…)”2.
No desenho constitucional da federação do Brasil, a repartição de competências tributárias entre a União, os estados e os municípios3 é elemento nuclear. É o que decidiu o Supremo Tribunal Federal no RE 591.033, de relatoria da ministra Ellen Gracie: “A repartição de competências e de receitas tributárias configura um dos pilares da autonomia dos entes políticos”4.
Também em outros julgados, essa característica foi apontada. Assim, na ADI 4.628-DF, o relator ministro Luiz Fux, assinalou-se que “os imperativos constitucionais relativos ao ICMS se impõem como instrumentos de preservação da higidez do pacto federativo (…)”5 e na ADI 4.228-DF, relator ministro Alexandre de Moraes, que “as regras de distribuição de competências legislativas são alicerces do federalismo e consagram a fórmula de divisão de centros de poder em um Estado de Direito”6.
Parece claro que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é firme ao assentar dois pontos. O primeiro consiste em que os traços característicos de nossa federação são os previstos em nossa Constituição Federal. O segundo é que a discriminação de competências tributárias é elemento nuclear da federação.
Pois bem, assim assentadas essas premissas vale observar que o artigo 60, parágrafo 4º da Carta da República impede que sejam objeto sequer de deliberação propostas tendentes a abolir a federação. A expressão “tendentes” não deve ser entendida em caráter absoluto, para impedir a deliberação de emendas que visem eliminar por completo a forma federativa de Estado. Também aquelas que reduzem substancialmente a autonomia dos entes federados implicam amesquinhamento da federação, esbarrando na proibição do dispositivo constitucional.
A propósito de questão envolvendo imunidade recíproca dos entes federativos, o Supremo Tribunal Federal impediu seu afastamento ou suspensão “(…) porque, se o fizer, ofenderá o pacto federativo, enfraquecendo-o, pelo que é tendente a aboli-lo”7. No mesmo sentido, Roque Carrazza afirmou: “Logo, enquanto a atual Constituição estiver irradiando efeitos, é terminantemente proibida proposta de emenda constitucional que, ainda que por via transversa, colime suprimir ou modificar nossa federação”8.
Em linhas gerais, a reforma tributária proposta pelo deputado Antônio Carlos de Mendes Thame (projeto de Bernard Appy) prevê a unificação do IPI, ICMS, ISS, Cofins e PIS no IBS, que seria um imposto não cumulativo, com adoção de alíquota única para todos os bens e serviços a ser instituída por cada ente autonomamente. A alíquota do IBS seria uniforme para todos os bens e serviços tributados por aquele ente político. A competência legislativa dos estados e municípios ficaria adstrita à fixação de alíquotas. Uma lei complementar federal disciplinaria os aspectos gerais do fato gerador, sendo vedada a concessão de quaisquer incentivos fiscais.
Essa proposta de reforma tributária não permite que estados e municípios instituam impostos em substituição ao ICMS e ao ISS. Há evidente restrição de suas competências e, consequentemente, de suas autonomias.
É bem verdade que para contornar objeções como as que ora são feitas há previsão de alteração de alíquotas pelos estados e municípios. Todavia, será prevista uma alíquota de referência fixada pelo Senado Federal e pelo Tribunal de Contas da União, aplicável a todas as ordens parciais de governo. Variações introduzidas por uma unidade poderiam implicar perda de competitividade com as demais. Além disso, o fato de não permitir modificações aplicáveis a setores de atividade reduz significativamente a possibilidade de estabelecimento de políticas fiscais próprias.
Não se está a afirmar que nada sobra à competência dos entes periféricos nesta matéria. O que se sustenta é que há uma substancial restrição à sua autonomia em comparação com o que é atualmente previsto na Constituição Federal. Essa diminuição das autonomias locais implica tendência ao amesquinhamento da federação, o que não é possível em face do já citado artigo 60, parágrafo 4º.
Como afirmou o Supremo Tribunal Federal: “De nada adianta o zelo na partilha de competências constitucionais, entre os diferentes entes federativos, se essa repartição não é acompanhada da divisão de recursos próprios e suficientes para fazer frente às diversas tarefas que lhes foram conferidas pelo Poder Constituinte. As competências constitucionais esvaziam-se sem as condições materiais para o seu exercício”9.
O federalismo nos moldes da Constituição Federal pressupõe o equilíbrio da discriminação de rendas tributárias, que não pode ser alterado de modo desproporcional, pois implicaria tendência de abolir a federação vedada pelo artigo 60, parágrafo 4º da CF.
Nessas condições, o “IVA” seria tributo da União, pois a) a competência para instituí-lo seria da lei complementar federal; b) o processo administrativo seria regulado também por lei complementar federal; c) o julgamento em grau de recurso seria em órgão federal; e) a competência jurisdicional seria da Justiça Federal.
Em conclusão, o projeto de reforma tributária veiculado na emenda substitutiva global à PEC 293-A/2004 prejudicaria a autonomia dos estados e municípios, esbarrando na proibição do artigo 60, parágrafo 4, I da CF, no sentido de que nem emenda constitucional pode deliberar sobre matérias tendentes a abolir a federação.
1 SALDANHA, Nelson; REIS, Palhares Moreira; HORTA, Raul Machado. Formas simétrica e assimétrica do federalismo no estado moderno. In: SALDANHA, Nelson; REIS, Palhares Moreira. Estudos jurídicos, políticos e sociais em homenagem a Glaucio Veiga. Curitiba: Juruá, 2000. p. 260; SOUZA JUNIOR, Cezar Saldanha (coord.). Direito do estado: estudos sobre o federalismo. Porto Alegre: Doravante, 2007, p. 11.
2 STF, ADI 2024-DF, relator Sepúlveda Pertence, Tribunal Pleno, j. 3/5/2007, DJ 21/6/2007.
3 ATALIBA, Geraldo. Federação. Revista de Direito Público, n. 81, p. 172, Janeiro-Março/1987; CARVALHO, Paulo de Barros. Os tributos e a federação que deve ser. Revista de Direito Tributário, São Paulo, n. 119, p. 15, 2013; RIBEIRO, Ricardo Lodi. Pacto federativo e reforma tributária. In Revista de Direito Administrativo, n. 222, p. 87, out-dez 2000, p. 89; SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 16ª edição São Paulo: Malheiros, 1999, p. 69; DERZI, Misabel Abreu Machado. Federalismo, estado democrático de direito e imposto sobre o consumo. Revista de Direito Tributário, n. 75, p. 197, 1999; COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de direito tributário brasileiro. 7ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 58; FUCK, Luciano Felício. Estado Fiscal e Supremo Tribunal Federal. São Paulo: Saraiva, 2017, p.90; HORTA, Raul Machado. Estrutura da Federação. Revista de Direito Público, n. 81, p. 52, Jan-Mar/1987.
No sentido contrário, Luis Eduardo Schoueri entende que a discriminação de competências tributárias não é um requisito para o sistema federal (SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito tributário. São Paulo: Editora Saraiva, 2011, p. 260).
4 STF, RE 591.033, relatora ministra Ellen Gracie, Tribunal Pleno, j. 17/11/2010, DJ 24/2/2011.
5 STF, ADI 4.628-DF, relator ministro Luiz Fux, Tribunal Pleno, j. 17/9/2014, DJe 21/11/2014.
6 STF, ADI 4.228- DF, relator ministro Alexandre de Moraes, Tribunal Pleno, j. 1º/8/2018, DJ 10/8/2018.
7 STF, ADI 926-5, relator ministro Carlos Velloso, Tribunal Pleno, j. 1º/9/93, DJ 6/5/94.
8 CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de direito constitucional tributário: atualizada até a Emenda Constitucional 67/2010. 27. ed. São Paulo: Malheiros, 2011, pp. 173.
9 STF, ADO 25- DF, relator ministro Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, j. 30/11/2016, DJe 12/8/2017.
Hamilton Dias de Souza é sócio-fundador do Dias de Souza Advogados Associados, mestre e especialista em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).
Revista Consultor Jurídico, 03 de novembro de 2018 às 7h30
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