16 de agosto 2002 às 11H18
1) SOBRE A CONCEPÇÃO DE FRAUDE FISCAL:
(I) De que forma se conceitua a fraude fiscal?
A expressão “fraude fiscal” pode, teoricamente, ter dois conceitos: (i) a fraude estudada pelo direito penal, realizada com a intenção de propiciar um não recolhimento de tributo, e (ii) uma fraude de natureza não penal, também com o objetivo de propiciar o não recolhimento de tributo. Semelhantes no objetivo, eles divergem em outros pontos. Devemos examinar esse dois conceitos para verificar se ambos estão presentes no direito brasileiro.
O vocábulo “fraude”, disse-o De Plácido e Silva, é derivado “(…) do latim fraus, fraudis(engano, má-fé, logro), entende-se geralmente como o engano maliciosoou a ação astuciosa, promovidos de má-fé, para ocultação da verdadeou fuga ao cumprimento do dever”. E completa: “Nestas condições, a fraudetraz consigo o sentido do engano, (…) mas o engano ocultopara furtar-se o fraudulento ao cumprimento do que é de sua obrigação ou para logro de terceiros. É a intenção de causar prejuízo a terceiros”[1].
Especificamente sobre a fraude penal, explica o jurista: “Neste sentido, a fraude apresenta-se sob vários aspectos, seja como a falsificaçãode documentos ou papéis, a contrafaçãode marcas ou de produtos, a adulteraçãoou falsificaçãode mercadorias, bem assim outros manejosou maquinaçõesurdidos como de má-fé em prejuízo de terceiros ou da coletividade”[2].
No Capítulo VI do Título a propósito dos crimes contra o patrimônio, o Código Penal traz os tipos penais relacionados ao estelionato e outras fraudes. Assim, nos termos do artigo 171, seria estelionato: “Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento”. Os demais dispositivos tratam dos outros tipos de fraude: disposição de coisa alheia como própria, alienação ou oneração fraudulenta de coisa própria, defraudação do penhor, fraude na entrega de coisa, fraude para recebimento de indenização ou valor de seguro, fraude no pagamento por meio de cheque, duplicata simulada, abuso de incapazes, induzimento à especulação, fraude no comércio (enganar, no exercício de atividade comercial, o adquirente ou consumidor), outras fraudes (tomar refeição em restaurante, alojar-se em hotel, ou utilizar-se de meio de transporte sem dispor de recursos, para efetuar o pagamento), fraudes e abusos na fundação ou administração de sociedade por ações, emissão irregular de conhecimento de depósito ou “warrant” e fraude à execução.
Logo, a fraude fiscal, estudada pelo direito penal, seria uma ilicitude, objeto de regramento pelo direito penal, consistente no ardil, artifício, embuste praticado pelo sujeito passivo de má-fé com a finalidade de enganar a Administração Fiscal e, com isso, deixar de recolher o tributo devido. Ela abrange atividades variadas, como falsificação e simulação[3], tendo todas em comum a intenção de enganar, procurando-se forjar, esconder a realidade.
São, portanto, os atos previstos na maioria dos incisos dos artigos 1º e 2º da Lei nº 8.137/90:
“Art. 1º Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas:
I – omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias;
II – fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo operação de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal;
III – falsificar ou alterar nota fiscal, fatura, duplicata, nota de venda, ou qualquer outro documento relativo à operação tributável;
IV – elaborar, distribuir, fornecer, emitir ou utilizar documento que saiba ou deva saber falso ou inexato;
(…)
Art. 2º Constitui crime da mesma natureza:
I – fazer declaração falsa ou omitir declaração sobre rendas, bens ou fatos, ou empregar outra fraude, para eximir-se, total ou parcialmente, de pagamento de tributo;
(…)”.
Essa seria a fraude fiscal que é objeto do direito penal, já que sua prática configura um crime, como se verifica na Lei nº 8.137/90.
Essa mesma fraude penal gera efeitos no direito tributário, em razão do artigo 72 da Lei nº 4.502/64, que pode levar à aplicação da multa qualificada de 150% quando do não recolhimento de tributos federais: “Fraude é toda ação ou omissão dolosa tendente a impedir ou retardar, total ou parcialmente, a ocorrência do fato gerador da obrigação tributária principal, ou a excluir ou modificar as suas características essenciais, de modo a reduzir o montante do imposto devido, ou a evitar ou diferir seu pagamento”.
A interpretação que nos parece mais apropriada para o dispositivo é a de Gilberto de Ulhôa Canto, segundo a qual a ação ou omissão dolosa que visa impedir ou retardar, total ou parcialmente, a ocorrência do fato gerador, de modo a reduzir o montante do tributo devido ou diferir seu pagamento, “(…) há que ser entendida como dizendo respeito a um fato gerador lógico, natural, necessário e conseqüente de premissas inarredáveis, já ocorridas, (…)”. Ademais, a conduta do contribuinte deveria ser dolosa, “(…) não apenas com o sentido de mera volição, mas, sim, com a característica de ilicitude da conduta”[4], o que leva a configurar essa fraude como a fraude regulamentada pelo direito penal.
Cabe agora analisar a existência no direito tributário brasileiro de uma outra fraude fiscal, que não a penal.
Diversos países possuem regras que prevêem esse outro tipo de fraude fiscal, que não a penal, adotando uma nomenclatura variada para condená-la (abuso de direito, abuso de formas jurídicas, fraude à lei tributária). Por meio dessas regras, é afirmado que não seriam oponíveis à Administração Fiscal procedimentos de contribuintes que, na tentativa de evitar o ônus fiscal, se caracterizassem como abusivos ou em fraude à lei tributária. Comum a todas essas regras, está presente a intenção de impossibilitar práticas de contribuintes que evitem normas fiscais que incidiriam, não fosse a forma de disposição dos negócios adotada, frustrando a intenção legal de colher aquela manifestação econômica.
Percebe-se que os atos praticados pelo contribuinte não são vedados pelo ordenamento jurídico, ou seja, não se pratica nenhuma ilicitude. Os atos são também verdadeiros, realmente praticados pelo contribuinte, não existindo uma simulação. Não há, então, uma fraude cuidada pelo direito penal.
Na realidade, ocorre que, a despeito de o contribuinte não ter praticado o fato gerador do tributo previsto na norma de incidência tributária, ele estará submetido ao ônus fiscal, por ter praticado um ato que apresenta a mesma manifestação econômica do fato gerador abstrato, previsto na norma, e considerado abusivo ou fraudador da lei tributária.
Há, portanto, uma tributação por analogia: onera-se um fato da vida real, não previsto na norma fiscal, mas que é análogo a esse, por possuir a mesma manifestação econômica. Ainda que o ato praticado seja abusivo ou realizado em fraude à lei, ele não será o fato gerador previsto na norma, mas sim um outro, daí a tributação por analogia.
Como a norma tributária só incide quando se realiza o fato gerador nela previsto[5], é inicialmente necessária a existência de uma outra norma, que preveja e possibilite a obrigação tributária, quando não ocorre o fato gerador previsto. É por essa razão que os países, que combatem a elisão fiscal, geralmente possuem uma norma geral anti-elisão, justamente prevendo a incidência da norma criadora da obrigação tributária, mesmo em casos em que não há a realização do fato gerador, mas há manifestação econômica idêntica a ele, somada à prática abusiva ou em fraude à lei tributária. Permite-se nesses casos, desse modo, a tributação por analogia.
Essa é a opinião, inclusive, de especialistas de países que adotam uma norma geral anti-elisão. Brandão Machado dá notícia nesse sentido:
“Ainda que possam ter justificação nos princípios da igualdade e da capacidade contributiva, como tem argumentado insistentemente a doutrina estrangeira, sobretudo alemã e suíça, nem todo sistema jurídico suporta a aplicação do critério econômico e o instituto do abuso de formas de direito privado. É que a sua aplicação tem exigido a concomitante aplicação da analogia, como constatou desde logo o próprio Hensel, em seu estudo de 1922. Outros tributaristas também concluíram que a aplicação do critério econômico e da regra do abuso de formas leva lógica e inevitavelmente ao emprego da analogia. Assim Rudolf Adam, Klaus Tipke, Joachim Lang. Georg Crezelius mostra, com argumentação irreplicável, que a regra do § 42 do Código Tributário é um caso de analogia legalmente permitida.”[6]
Se para combater eficazmente a elisão tributária que ocorre com o abuso de direito, com o abuso de formas jurídicas, ou com a fraude à lei tributária, é necessário apelar para a analogia na aplicação da norma, vê-se que o problema conduz à possibilidade ou não de um dado sistema jurídico-tributário permitir a tributação por analogia. Esta é a opinião de Victor Uckmar, segundo informou Brandão Machado:
“Há sistemas jurídicos que, na verdade, não suportam o emprego do critério econômico, nem a figura do abuso de forma para a interpretação da lei tributária e dos fatos que geram tributos. Victor Uckmar, como relator geral do Congresso da International Fiscal Association, realizado em Veneza em 1983, cujo primeiro tema foi a elusão e evasão fiscal, esclareceu, em sua exposição, que ‘muitos países desenvolveram uma teoria econômica segundo a qual os fatos têm de ser apreciados de acordo com a substância em oposição ao seu conteúdo formal. Em alguns países (Alemanha, Áustria e Luxemburgo), essa medida tomou a forma de normas legais, ou em outros países, a de princípios gerais de interpretação (Holanda e Noruega), as quais são com efeito uma orientação legal para os tribunais aplicarem as normas tributárias’. E continua Uckmar:
‘Essa solução põe limite à proibição da analogia no campo do direito tributário (pelo menos em relação aos assuntos e objetos de tributação); esta proibição é assim suprimida por um preceito legal que dispõe sobre interpretação.
A proibição da analogia é um dos principais pontos que têm impedido a introdução de normas legais semelhantes na Bélgica, México, Grécia, Itália e Brasil’.”[7]
Dessa forma, o fato de diversos países atualmente adotarem normas anti-elisão não significa a possibilidade de sua adoção no Brasil, no quadro jurídico atual. Deve ser feito um exame criterioso do tema frente às peculiaridades do nosso sistema constitucional tributário.
A Constituição Federal de 1988, ao prever no inciso II do seu artigo 5º que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”, veda expressamente a exigência ou o aumento de tributos sem lei que o estabeleça (art. 150, I). Essa repetição da necessidade de previsão da obrigação tributária na lei tem um sentido, sendo sua intenção expressar a importância dada à segurança jurídica na questão tributária e instituir uma reserva absoluta de lei ou estrita legalidade, também chamada de tipicidade fechada. Assim, não haverá a instituição de obrigação tributária sem que uma lei preveja exatamente em que situações isto ocorrerá, vale dizer, qual fato a gerará.
A instituição de uma reserva absoluta de lei ou tipicidade fechada implica não bastar a previsão em lei geral e abstrata da instituição da obrigação tributária, na hipótese de o fato nela previsto se realizar. É imprescindível também que o tipo tributário – o fato gerador descrito abstratamente – contenha em si os elementos necessários e suficientes para a subsunção da norma ao fato. A norma tributária deve bastar em si própria para possibilitar a tributação, não carecendo, nem tolerando o recurso a elementos estranhos ao tipo.
Um sistema constitucional tributário como esse não admite a tributação por analogia, nem mesmo se existir uma norma geral que preveja em que casos e como se daria a integração analógica, já que inevitavelmente haveria recurso a elementos estranhos ao tipo. Note-se que uma norma geral anti-elisão não prevê um elemento determinado que simplesmente complementa o fato gerador previsto. Essa espécie de norma cria um tipo aberto, não fechado, em que a tributação ocorrerá não somente na situação especificamente prevista na lei, mas também em indeterminável número de outras situações em que o aplicador da norma tributária entenda estarem presentes a mesma manifestação econômica, legalmente visada, e a ocorrência de prática abusiva ou em fraude à lei.
A reserva absoluta de lei prescrita pela Constituição Federal estabelece uma verdadeira proibição, aplicável de imediato, sem necessidade de normas infraconstitucionais: não é possível a tributação fora do fato gerador expressamente previsto na regra fiscal, que deve conter todos os elementos necessários e suficientes para sua aplicação.
Alguns estudiosos no Brasil têm se levantado contra esse entendimento, procurando fundamentar-se, basicamente, em princípios constitucionais, como a solidariedade e a capacidade contributiva, ao qual é dado um efeito positivo. Essa posição possui equívocos que a condenam. Para verificá-los, deve-se ter bem presente a diferenciação entre regras e princípios.
Os princípios, diferentemente das regras, são pautas genéricas, não exigem um comportamento específico, por isso, não seguem a lógica do tudo ou nada[8], comportando uma avaliação em que a substituição ou limitação de um por outro não significa a exclusão do primeiro. Já as regras são bem mais específicas em sua determinação e sua aplicação obedece a uma lógica dicotômica: ou são aplicáveis ou não o são. Ademais, um princípio não basta por si próprio, para estabelecer a obrigatoriedade de uma conduta, sendo necessária uma outra norma, criando uma regra que, ao mesmo tempo, obedeça o princípio, buscando sua maior eficiência possível[9], e traga uma maior especificação da pauta genérica, exigindo um comportamento mais determinado do cidadão. Em suma, pode-se dizer que princípios são pautas genéricas que presidem a elaboração das regras; são prescrições genéricas que se especificam em regras.
Aqueles que defendem a existência de uma fraude fiscal por abuso de direito, abuso de forma jurídica ou fraude à lei tributária, procuram afastar a regra de tributação, ou, melhor dizendo, afastar seus limites, para alargá-los, melhor aplicando um princípio. Assim procedem por entenderem que, de outro modo, a capacidade contributiva e a solidariedade não estariam sendo realizadas. Ao fazê-lo, no entanto, arredam um outro princípio, o da segurança jurídica, que é realizado por meio da legalidade e da tipicidade.
Parece existir uma falha inicial nesse raciocínio, que é o de tentar trazer a lógica do tudo ou nada aos princípios da capacidade contributiva e da solidariedade, de tal maneira que, se fosse aceita como legítima a economia fiscal desacompanhada de um outro objetivo econômico, elas não estariam sendo realizadas de modo algum. Isso não é verdade, pois a capacidade contributiva e a solidariedade (esta inclusive no campo fiscal) poderão estar sendo concretizadas de outras formas.
No entanto, além dessa falha inicial, há outra. Diferentemente do que ocorreu com os princípios da capacidade contributiva e da solidariedade, em que a Constituição não chega a especificar um modo específico de realizá-los, no que se refere ao princípio da segurança jurídica, a própria Constituição, zelosa que foi com esse valor, já tratou de especificá-lo em seu próprio texto.
Realmente, o Constituinte não se limitou a adotar a segurança jurídica como princípio, deixando ao legislador infraconstitucional uma pauta genérica e uma discricionariedade de escolha, quanto, como e em que limite realizá-la. Mais que isso, ele já estabeleceu também uma forma para a sua concretização: por meio da legalidade, segundo a qual somente a lei poderá exigir tributos, e por meio da tipicidade fechada (estrita legalidade ou reserva absoluta de lei), obrigando a que todos os elementos necessários para exigência tributária estejam previstos na lei. Esta atitude, a par de denotar a elevada preocupação com o valor da segurança jurídica, termina, como antes dito, por vedar a tributação por analogia[10].
Não é o caminho correto, por conseqüência, pretender limitar a discussão do tema de elisão fiscal a um confronto de valores constitucionais e a uma ponderação entre eles, a serem decididos pelo hermeneuta da Constituição, guiando-se pelo princípio da razoabilidade. O próprio Texto Constitucional já estabelece que os princípios da segurança jurídica, de um lado, e da capacidade contributiva e da solidariedade, de outro, devem conviver, mas dentro da legalidade e da tipicidade fechada, que não admitem a tributação por analogia.
Essa conclusão torna o Estado incapaz de enfrentar a questão da elisão fiscal, algumas vezes muito prejudicial ao Erário? Penso que não. O Estado tem condições de combatê-la dentro da legalidade e da tipicidade.
Além da adoção da tributação por analogia, para combater a elisão fiscal realizada em fraude à lei tributária, com abuso de direito ou com abuso de forma jurídica, também é possível ao legislador instituir normas de equiparação. Por meio delas, atua o legislador prevendo um catálogo de atos do contribuinte que representam elisões fiscais condenáveis, por frustrarem a capacidade contributiva visada na criação da norma fiscal e por minarem a arrecadação de tributos. Com tais normas de equiparação, possibilita-se a aplicação da norma fiscal em casos mais específicos e correntes de elisão fiscal. Com isso, não são ofendidas nem a legalidade, nem a tipicidade fechada, e a segurança jurídica é mantida íntegra, pois a norma de equiparação é prevista em lei. Por isso, essa forma de combater a elisão fiscal abusiva é aceitável no sistema jurídico brasileiro.
Entretanto, convém alertar que não é possível haver uma norma de equiparação geral, que não se refira a fatos específicos, pois somente é possível equiparar fatos com um mínimo de especificidade. Uma regra equiparadora geral terminaria por representar uma tributação por analogia, inadmissível.
Ressalte-se também que essa solução não é restrita ao direito tributário. A despeito de existir áreas do direito que prevêem o ato abusivo como um ilícito de uma maneira aberta, não discriminada em casos tipificados, há também o direito penal – muito próximo ao direito tributário nas preocupações quanto à segurança e à certeza jurídicas – em que o abuso de direito não é previsto como uma infração, sem que haja a especificação de cada conduta abusiva. Assim, por exemplo, a previsão do crime de abuso na fundação ou administração de sociedades por ações, em que não há referência simples a essa figura, mas sim uma lista (catálogo) de casos em que ocorre essa espécie de abuso. Era necessário especificar cada ato tido como abusivo e não fazer uma referência genérica ao abuso na fundação e administração de S/A’s. Vê-se, então, que um catálogo fechado de atos abusivos, aqui proposto, não é algo inusitado em nosso ordenamento.
A alteração proferida pela Lei Complementar nº 104/2001 no Código Tributário Nacional, criando um parágrafo único ao artigo 116, deve ser entendida como inserida neste contexto. É útil transcrever sua redação: “A autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária”.
Sob pena de ser considerado inconstitucional, esse dispositivo não pode ser interpretado como uma norma permissiva da tributação por analogia. Ao mesmo tempo, entender que ele simplesmente condena a simulação, o que já era ilícito antes da Lei Complementar nº 104/2001, seria contrariar regra básica de hermenêutica: não se presumem palavras inúteis na lei.
O parágrafo único do artigo 116, portanto, deve ser compreendido como um dispositivo que traz uma nova regra sobre o tema da elisão fiscal, procurando possibilitar que o legislador disponha de melhores armas para combatê-la, mas dentro da legalidade e da tipicidade. Ou seja, esse dispositivo vem permitir, como lei complementar à Constituição (referida no art. 146), que a União, os estados e os municípios aprovem leis ordinárias, equiparando ao fato gerador um catálogo de atos do contribuinte que signifiquem elisão fiscal por meio de abuso de direito, abuso de formas jurídicas ou fraude à lei tributária.
Como lei complementar à Constituição, a qual cabe dispor sobre conflitos de competência em matéria tributária e estabelecer normas gerais de legislação tributária, especialmente sobre definição de tributos e de suas espécies, o novo dispositivo não escapa de sua área de atuação. Isto possibilita, inclusive, evitar que se incorra no problema de, ao trazer uma regra de equiparação, o legislador exceder sua competência tributária, já que essa passa a alcançar também os atos abusivos ou em fraude à lei, com objetivo elisivo, expressamente listados em lei ordinária.
Essa a razão, inclusive, para a referência à observância dos procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária. Essa deverá não só estabelecer procedimentos formais, indicando quem, quando e de que maneira a desconsideração será realizada, mas também que atos ou negócios poderão ser desconsiderados. Serão leis ordinárias de cada ente da federação que irão estabelecer um verdadeiro catálogo de situações elisivas, realizadas de forma abusiva ou em fraude à lei tributária, passíveis de serem desconsideradas pela Administração Fiscal, por serem equiparadas ao fato gerador. Tal catálogo, é certo, deverá ser fechado, não admitindo que a Administração Fiscal, por exegese, insira outros atos além daqueles expressamente previstos.
Em conclusão de todo o exposto e respondendo mais diretamente a questão posta, entendemos existirem duas formas de fraude fiscal no direito tributário brasileiro atual: a fraude regulada pelo direito penal e aquela prevista pelo novo parágrafo único do artigo 116, criado pela Lei Complementar nº 104/01. Aquela pode ser conceituada como a ilicitude objeto de regramento pelo direito penal, consistente no ardil praticado pelo sujeito passivo de má-fé, com a finalidade de enganar a Administração Fiscal, escondendo a realidade, com o objetivo de deixar de recolher o tributo devido em razão da incidência da norma criadora da obrigação fiscal. Já a fraude fiscal de caráter não penal passou a existir, a partir da Lei Complementar nº 104/01 e consiste em atos elisivos praticados pelo sujeito passivo com adoção de abuso de direito, ou abuso de formas jurídicas, ou fraude à lei tributária que estejam expressamente catalogados em lei ordinária da União, dos estados e dos municípios.
(II) É aplicável, no direito tributário, a figura da desconsideração do ato jurídico, como técnica corrente, pela administração tributária?
(III) Feriria, tal procedimento, a segurança nas relações entre fisco e contribuinte?
Essas duas questões não podem deixar de ser enfrentadas juntas.
Sempre se entendeu (com algumas poucas opiniões em contrário, que não encontraram eco nas jurisprudências judicial e administrativa) que a desconsideração seria possível nos casos de simulação, em que o ato jurídico verdadeiro não é o aparente, mas sim um outro, dissimulado, escondido. A Administração precisa “levantar o véu” da mera aparência, desconsiderando-a, por não ser o verdadeiro ato jurídico, para só então encontrar o fato oculto, verdadeiro, que, por ter sido realmente praticado, já teria sofrido a infalível e automática incidência da norma tributária.
Trata-se, portanto, muito mais da correta aplicação da norma tributária, já que não ocorre uma requalificação de um fato jurídico, mas sim de um desprezo da aparência, para encontrar a verdade jurídica.
Assim, a desconsideração pela Administração dos atos aparentes, existentes em simulações praticadas pelo contribuinte, é admissível[11].
Afora esses casos, a possibilidade de a Administração Fiscal desconsiderar um ato jurídico, praticado pelo contribuinte, significa, não há dúvida, uma redução no grau de segurança jurídica. Por essa razão, não pode a Administração desconsiderar atos, senão quando expressamente autorizada por lei e, assim mesmo, para qualificar o ato como outro, que lhe é equivalente. Este entendimento provém de outros parâmetros jurídicos básicos, como a da permissão de a Administração somente fazer o que a lei lhe autoriza. Assim, a desconsideração é possível apenas nas hipóteses previstas em lei.
Com a aprovação da Lei Complementar nº 104/01, criando o parágrafo único do artigo 116, nosso ordenamento passa a prever uma outra hipótese de desconsideração de atos pela Administração Pública. Tal desconsideração será admissível, nos termos da exegese apresentada na resposta à indagação anterior.
Assim, o ato jurídico praticado pelo contribuinte que objetivar uma economia fiscal e se caracterizar como abusivo ou em fraude à lei tributária, poderá ser desconsiderado pela Administração Fiscal, que a ele aplicará o tratamento tributário reservado a outro ato, desde que uma lei ordinária preveja a equiparação daquele a este. Em tais casos a desconsideração poderá ser aceita, mas somente neles (além dos casos de simulação) e não como uma técnica corrente e indiscriminada, simplesmente em razão de o integrante da Administração Fiscal concluir que ato praticado é elisivo da tributação, abusivo ou em fraude à lei tributária.
Limitada a desconsideração de atos jurídicos aos casos expressos em lei ordinária, que os equipara aos fatos geradores, não se dá a agressão à segurança jurídica entre o Fisco e o contribuinte. Este saberá, previamente, que o ato por ele praticado poderá ser desconsiderado pela Administração Fiscal, que o equiparará ao fato gerador.
Lembra Alberto Xavier que, segundo a doutrina alemã, a essência da segurança jurídica reside na “(…) suscetibilidade de previsão objetiva, por parte dos particulares, das suas situações jurídicas (Vorhersehbarkeite Vorausberechenbarkeit), de tal modo que estes possam ter uma expectativa precisa dos seus direitos e deveres, dos benefícios que lhe serão concedidos ou dos encargos que hajam de suportar. Daqui resulta que a idéia geral de segurança jurídica se analise – como observam Löhlein e Jaenke – num conteúdo formal, que é a estabilidade do Direito e num conteúdo material, que consiste na chamada ‘proteção de confiança’ (Vertrauensschutz)”[12].
Ora, existindo um catálogo de atos jurídicos, previsto na lei ordinária, equiparados aos fatos geradores, haverá a requerida suscetibilidade de previsão objetiva por parte dos particulares (eles saberão que estarão sujeitos ao ônus tributário), necessária para se afirmar plenamente existente a segurança jurídica. De modo contrário, se o novo parágrafo único do artigo 116 do CTN for entendido como uma norma anti-elisão, suficiente por si só e não carecendo de uma lei ordinária, não haveria dúvida de que a segurança nas relações entre Fisco e contribuintes seria sensivelmente diminuída.
Em conclusão, respondemos diretamente às indagações: a desconsideração dos atos jurídicos pela Administração Fiscal pode ser realizada em casos de simulação e quando praticados atos abusivos ou em fraude à lei tributária que estejam expressamente indicados em lei ordinária, expedida com fundamento no novo parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional, na redação dada pela Lei Complementar nº 104/01. Se restrita a tais casos, a segurança jurídica nas relações entre Fisco e contribuinte é mantida íntegra.
(IV) Contribuiria para a elevação do nível de corrupção, arbitrariedades e inibição do desenvolvimento?
Na verdade, qualquer aumento de poder concedido à Administração pode acarretar uma elevação do nível de corrupção, arbitrariedades e, em situações gravíssimas, uma inibição do desenvolvimento. No entanto, certos poderes, por concederem uma elevada dose de discricionariedade aos integrantes da Administração, abrem campos particularmente férteis para a corrupção e para arbitrariedades.
A hipotética criação de uma norma anti-elisão geral, que se limitasse a estabelecer a inoponibilidade à Administração Fiscal dos atos abusivos ou em fraude à lei tributária, praticados por contribuintes, justamente concederia um amplo poder discricionário ao integrante da Administração encarregado de fiscalizar os particulares. Abriria um grande flanco à corrupção e às arbitrariedades.
A existência de um processo administrativo e de um processo judicial, que poderiam corrigir distorções eventualmente existentes, não resolvem o problema, quando se tem conhecimento de suas deficiências: quanto ao processo administrativo, a constante ameaça à relativa independência do contencioso administrativo e à criação de dificuldades de acesso, quanto ao processo judicial, a falta de especialização no trato da matéria tributária.
Não se argumente que a mesma ameaça de corrupção e de arbitrariedades existe em todos os outros países que adotam leis gerais anti-elisão abertas, sem ter criado um verdadeiro problema. Tais países possuem tradição no trato da matéria que dificulta o agravamento de tais vícios, o que não existe no Brasil.
Por outro lado, se a desconsideração de atos pela Administração estiver restrita, como proposto, à aplicação do novo parágrafo único do artigo 116 do CTN e de lei ordinária que estabelecer o catálogo de atos do contribuinte que seriam equiparados a fatos geradores tributários, não haverá espaço para uma elevação sensível do nível de corrupção e de arbitrariedades. Com efeito, a decisão quanto à desconsideração e equiparação do caso será tomada em abstrato pelo legislador e não frente ao caso concreto, pelo integrante da Administração. Esse limitar-se-á a aplicar a lei criada, sem espaço, portanto, para corrupção ou arbitrariedades em nível superior ao existente hoje.
Logo, adotando-se o entendimento exposto nas questões precedentes, o nível de corrupção e de arbitrariedades não será elevado em função da possibilidade de desconsideração dos atos dos contribuintes pela Administração, pois essa limitar-se-á a aplicar as normas gerais e abstratas de equiparação. Inversamente, na hipótese de se entender existente no Brasil uma norma que vede a prática de atos dos contribuintes, com o fito exclusivo de obter economia fiscal, haverá, sem dúvida, um crescimento de tais problemas.
2) SOBRE A SANÇÃO NA FRAUDE FISCAL:
(I) A punição da fraude fiscal mediante a aplicação de pena pecuniária, é mais efetiva que a da perda da liberdade?
Entendemos, inicialmente, que a “fraude fiscal” referida nessa indagação é aquela regulada pelo direito penal, pois só em relação a ela faz sentido a referência a uma punição com perda de liberdade. Em casos em que não há uma fraude de caráter criminal, mas somente a outra espécie de fraude fiscal, antes referida (consistente na elisão fiscal por meio de ato abusivo ou em fraude à lei tributária constante de catálogo aprovado por meio de lei ordinária), não cabe falar em pena privativa de liberdade.
Ora, a escolha do tipo de punição para uma infração, particularmente uma infração de caráter criminal, é uma decisão delicada. Comporta ela até mesmo uma discussão quanto à função da pena, se é a de punir, a de reeducar, a de proteger a sociedade de um elemento potencialmente perigoso, ou a de servir de elemento dissuasório para outros possíveis delinqüentes. De qualquer modo, a decisão de considerar que o crime de fraude fiscal prejudica a sociedade, ao ponto de essa ter julgado, por intermédio de seus representantes, que ele deveria ser entendido como uma infração de caráter criminal, não deve levar necessariamente à pena de perda de liberdade. Há outras alternativas de punição, entre as quais a pecuniária. De todas elas, inegavelmente, a privativa de liberdade é a mais grave.
Impõe-se, assim, para escolha da pena mais adequada, um juízo de proporcionalidade. Nenhuma pena deve ser excessiva, deve ir além do necessário, para repreender adequadamente a infração. Assim, deve-se indagar se uma pena pecuniária não bastaria para adequadamente punir a fraude fiscal de caráter penal.
A resposta a essa indagação não pode ser absoluta ou em tese. Ela só pode ser respondida frente ao caso concreto, em razão de suas peculiaridades. Se a pena pecuniária for suficiente para repreender o crime, ela bastará e, em atenção à proporcionalidade, não deve ser imposta a perda da liberdade. Em outros casos, pode ser conveniente a privação de liberdade (até porque, em algumas situações, tal pena pode ser exemplar para o restante da sociedade).
A legislação, portanto, deve prever as duas possibilidades de pena, assim como outras alternativas (prestação de serviços à comunidade, p. ex., fazendo com que a punição reverta em benefício da própria sociedade prejudicada com a falta de recolhimento do tributo devido[13]). A decisão quanto a qual pena aplicar, deve ficar a cargo do prudente critério do juiz criminal da causa, que tradicionalmente já tem o encargo de efetuar a dosimetria da pena.
Portanto, em resposta direta à questão posta, ambas as possibilidades de pena referidas devem estar previstas na legislação ordinária, sendo que a decisão por uma delas só pode ser tomada, em função da maior efetividade de uma ou de outra, frente ao caso concreto, pelo juiz da causa.
Além desse ponto, gostaríamos de aproveitar para acrescentar um comentário, quanto à multa majorada de 150%, prevista no artigo 44, II, da Lei nº 9.430/96, e aplicável “(…) nos casos de evidente intuito de fraude, definido nos arts. 71, 72 e 73 da Lei nº 4.502, de 1964, independentemente de outras penalidades administrativas e criminais cabíveis”.
Uma fraude fiscal de caráter penal tem por objetivo reduzir ou evitar o pagamento de um tributo, mas não se limita a ele, como já foi visto. À falta de pagamento do tributo se soma outra, consistente na ação fraudulenta, punível criminalmente, por meio da qual se tenta ludibriar, enganar a Administração, fazendo-a acreditar que o fato gerador não foi realizado. Ou seja, para se atingir o fim de evitar o pagamento do tributo, utiliza-se um meio que, isoladamente considerado, já é uma infração. É este meio que configura uma fraude, um procedimento contrário ao ordenamento jurídico em si, desvinculado do não recolhimento do tributo.
Assim, pratica-se uma fraude criminal como um instrumento, para não pagar tributos, de tal maneira que, independentemente do resultado – tendo êxito ou não o não-recolhimento do tributo – haverá infração[14].
Por isso, a legislação cuida de distinguir e tratar diferentemente os contribuintes que deixam de recolher tributos pelos mais diversos motivos, daqueles contribuintes que se utilizam de meios ilícitos, fraudulentos, para tentarem se esquivar do cumprimento das obrigações tributárias. E a multa qualificada pune, conseqüentemente, não o resultado atingido – não recolhimento de tributo, – mas sim a forma de se alcançar tal intento.
Deve estar claro, assim, que a prática de uma fraude fiscal não significa não pagamento de tributo, mas sim a constatação de meio ilícito para o não cumprimento da obrigação tributária. O contribuinte pode até ter a clara intenção de não pagar tributo, mas isso, por si só, não implicará a prática de uma fraude. Intenção de não pagar tributo e intenção fraudulenta não se confundem, nos estritos termos da lei.
Tal afirmação é corroborada pela jurisprudência do Conselho de Contribuintes, que aplica a multa agravada de 150% para casos como os de expedição de notas fiscais frias (104-16151, 102-20.033/83, CSRF 01-0.529/85, 105-1.444/85), ou paralelas (104-17246, 101-85.896/93 e 101-85.902/93), ou adulteradas (104-18640), ou calçadas (103-06.377, 101-74.233, 103-9.638/89) e também para casos de conta bancária fictícia (103-12.178/92, 101-92.245/98), contas-correntes fantasmas (102-40.853/96), CPF falso (101-91.891/98) e empresas fantasmas (107-233/93). Veja-se que, em todos esses casos, restou comprovado que os agentes pretendiam fraudar o Fisco, utilizando-se de práticas criminosas, com consciência de que a forma adotada era uma conduta contrária ao Direito, ou seja, com o comprovado dolo específico de realizar uma fraude.
Como demonstram os exemplos acima, se não restar comprovada a intenção do contribuinte de praticar atos, isoladamente considerados, contrários ao ordenamento jurídico, além do simples não recolhimento de um tributo devido, não se estará diante da fraude de caráter criminal.
Tais considerações nos parecem relevantes, porque se assiste hoje no Brasil a uma incorreta criminalização do direito tributário. Contribuintes que, ao ver da Fiscalização, teriam deixado de recolher tributos, estão sendo tratados como criminosos, com punição majorada administrativamente e denúncias criminais do Ministério Público ao Poder Judiciário. Em vários casos, a própria exigência fiscal é improcedente ou, no mínimo, discutível, não se podendo cogitar de fraude penal, mas de simples infração pelo não recolhimento do tributo, muitas vezes com o amparo de interpretação razoável do ordenamento jurídico.
A ameaça de uma denúncia penal, com todos os malefícios e incômodos daí advindos, está sendo utilizada, por vezes, como forma de pressão para o recolhimento do tributo, mesmo em casos em que o particular o entenda indevido, o que agride o princípio da moralidade e contraria o que garante o devido processo legal.
Ensina o Professor Celso Antônio Bandeira de Mello: “Segundo os cânones da lealdade e boa fé, a Administração haverá de proceder em relação aos administrados com sinceridade e lhaneza, sendo-lhe interdito qualquer comportamento astucioso, eivado de malícia, produzido de maneira a confundir, dificultar ou minimizar o exercício de direitos por parte dos cidadãos”[15]. O Judiciário já vem aplicando esse princípio. Consta, por exemplo, de decisão tomada pelo Superior Tribunal de Justiça: “É lícito ao Poder Judiciário examinar o ato administrativo, sob o aspecto da moralidade e do desvio de poder. Com o princípio inscrito no art. 37, a Constituição Federal cobra do Administrador, além de uma conduta legal, comportamento ético”[16].
Ora, utilizar a ameaça de um processo penal como forma de pressão para o recolhimento de tributos, como muitas vezes se percebe que vem ocorrendo, é adotar um comportamento astucioso, eivado de malícia, dificultando ou minimizando o exercício de direitos por parte dos cidadãos. O aplicador da norma – seja um membro do Fisco, seja um integrante do Ministério Público – abandona, assim, o comportamento ético, prescrito pela Constituição.
(II) Pode a Administração Tributária recorrer a presunções para a configuração da fraude fiscal?
Quando se deseja saber se um evento, no qual não se teve participação, ocorreu no passado, recorre-se a provas de sua existência, que podem ser diretas ou indiretas, essas também chamadas de indícios, que são aqueles elementos que não dizem respeito diretamente ao fato a ser provado[17]. “Indício é o fato conhecido do qual se parte para o desconhecido, ou seja o fato conhecido em que se funda o raciocínio do juiz para chegar ao fato desconhecido. Indica o fato probando, não representa; nele se assenta o raciocínio que conduz ao fato por provar. (…) Do indício, como ponto de partida, por inferência se chega a estabelecer uma presunção”[18].
Vale dizer, o indício não é uma prova diretamente relacionada ao fato que se deseja provar. O indício representa um outro fato, mas que, por intermédio de um raciocínio, indicaria a ocorrência do fato que se deseja provar. Daí que, quando se tem presente um indício e não uma prova direta, o procedimento de comprovação dos fatos divide-se em duas partes: a comprovação da existência do fato indicial e a demonstração da presunção de que ele efetivamente indicaria o fato que se deseja provar, segundo o que comumente acontece (“quod plerumque fit”). Ambas as partes são de igual importância.
Explica a doutrina processual que um indício e a presunção nele baseada só seriam capazes de comprovar a ocorrência de um outro fato, quando reunirem os requisitos de gravidade, precisão e concordância. Moacyr Amaral Santos, apoiado em vasta doutrina, explica esses conceitos:
“A gravidade diz respeito ao convencimento que as presunções infundem. Segundo LESSONA e COPPOLA, que aproveitam conceito formulado por uma decisão, as presunções são gravesquando capazes de causar impressão a uma pessoa razoável, para CONIGLIO e LAURENT consistem nas que não induzem simples probabilidade, mas probabilidade com a eficácia lógica de seguro convencimento; RAMPONI considera-as graves quando, pelo grau de probabilidade, infundem ao juiz certeza moral. “As presunções são graves – escreve LAROMBIÈRE – quando as relações do fato conhecido com o fato desconhecido são tais que a existência de um estabelece, por uma forte indução, a existência do outro. Não exige a lei que entre eles haja relações de uma necessidade absoluta; basta que elas estabeleçam, segundo a natureza ordinária das coisas e para todo o homem razoável e sensato, ser impossível que o fato seja diverso e que necessariamente ele existe, na acepção relativa desta palavra, tal como se tinha afirmado e se devia provar”.
Precisas– considera LESSONA – são as presunções inequívocas, isto é, quando delas não se pode deduzir mais que determinadas conseqüências. Mais claro CONIGLIO: as que se não prestam a dúvidas ou a contradições lógicas. Excelente a conceituação de LOROMBIÈRE: – “As presunções são precisasquando as induções, que de fato conhecido resultam, tendem a determinar, direta e particularmente, o fato desconhecido e contestado. Se fosse igualmente possível dele tirar conseqüências diferentes e até contrárias, inferir a existência de fatos diversos e contraditórios, as presunções nenhum caráter de precisão teriam e só fariam nascer a dúvida e a incerteza”.
São concordantesquando todas convergem para o mesmo objeto, isto é, quando todas convergem para o mesmo resultado. Ainda aqui excelente é o ensinamento de LAROMBIÈRE: – “As presunções são, enfim, concordantesquando, tendo todas uma origem comum ou diferente, tendem, por seu conjunto e acordo, a estabelecer o fato que se trata de provar. Prestam-se mutuamente então uma força recíproca e a sua conjunção tem um poder que, separadamente, nenhuma delas tem. Se, em contraposição, elas se contradizem, se contrabalançam e se neutralizam, deixam de ser concordes e no espírito do magistrado só pode entrar a dúvida”.”[19]
Portanto, para que um indício seja passível de consideração deve ter as seguintes características:
1 – propiciar um convencimento seguro, isto é, que não comporte dúvida razoável;
2 – não permitir que se extraia mais de uma conseqüência possível, isto é, impossibilidade de existir alternativa; e
3 – apontar diretamente para o fato desconhecido de forma a não ser possível alcançar qualquer outro fato.
Vê-se, então, que a prova por indícios e por presunções simples (também chamada hominis, de homem, ou comum), por não ser direta, demanda zelosa cautela. Logo, um indício pode ser utilizado como meio de prova, dando origem a uma presunção, quando indício e presunção geram a convicção de que não existe nenhuma outra alternativa razoável que não aquela indicada pelo indício. Qualquer outra hipótese, que não essa, não teria qualquer razoabilidade.
O quanto vai sendo exposto, é válido para o direito em geral (a obra de Moacyr Amaral Santos diz respeito à prova no direito privado), mas particularmente para o direito tributário e o direito penal, nos quais a questão da segurança, da certeza e da verdade é extremamente importante.
Essa maior importância, porém, não torna as presunções simples (hominis) impossíveis de serem utilizadas, para demonstrar a ocorrência de uma fraude. Elas tornam o processo de conhecimento da verdade mais delicado, mas isso não significa que elas não possam gerar certeza. Se o processo de investigação da realidade for encaminhado com zelo e obediência a seus parâmetros, gerando a convicção no examinador, a despeito de sua complexidade e delicadeza, a presunção simples será plenamente admissível para configurar a fraude penal.
Ademais, não se pode deixar de observar que o conhecimento da ocorrência de determinados fatos praticamente só pode ser alcançado por intermédio de presunções. É o caso, por exemplo, das simulações[20] e de determinados tipos de fraudes, nos quais as presunções simples são indispensáveis em certos casos[21].
Essas considerações são válidas para as presunções simples (ou hominis). Já para as presunções chamadas legais, a questão é diferente.
Tais presunções configuram uma generalização daquilo que comumente acontece (quod plerumque fit). Elas surgem quando o legislador, analisando a realidade, observa que, na maior parte dos casos, sempre que estiver presente um certo indício, isso significa a ocorrência de um outro fato – o fato desconhecido. Por essa razão, é aprovada uma norma legal, como tal, geral, prescrevendo: sempre que aquele indício estiver presente, considerar-se-á que ocorreu um outro fato, a menos que exista uma prova em sentido oposto (de que o fato presumido não ocorreu).
A presunção legal pode ser muito útil em várias áreas do direito, oferecendo inclusive maior segurança, na medida em que se sabe que o intérprete e aplicador da norma irá adotar essa presunção e não alguma outra, eventualmente possível.
Deve-se ter consciência, porém, de que ela, como normalmente se afirma, representa uma inversão do ônus da prova[22]. Sua adoção na esfera penal significaria praticamente uma negação da norma de que todos são inocentes, até que seja provado o contrário – a presunção de inocência, que no direito brasileiro é norma constitucional pétrea (“ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, art. 5º, LVII). Caso fosse adotada uma presunção legal de fraude criminal, para conseguir livrar-se da presunção de criminoso a pessoa deveria, então, realizar a prova negativa – conhecida por diabólica – de que não é culpado, de que não praticou o crime. Isso, em muitos casos, beira o impossível.
Assim, não nos parece adequado adotar uma presunção legal de prática de fraude criminal que afirme a culpa de um contribuinte – mesmo concedendo-lhe a possibilidade da prova em contrário – mediante a demonstração pela Administração de um outro fato, que não aquele que se deseje provar. Não se diga que o mesmo ocorre com a presunção simples, pois nessa o aplicador da norma está atento a todas as peculiaridades do caso concreto e delas em conjunto, ponderando-as, partirá para a presunção, se for o caso. Na presunção legal, diversamente, arredam-se todas as peculiaridades do caso concreto, pois a norma geral prevê simplesmente que, na presença de uma circunstância, o fato presumido será tomado como verdadeiro. Generaliza-se, assim, o que não poderia ser objeto de generalização, mas que deveria ser verificado caso a caso.
Se isso é válido para as presunções legais que admitem prova em contrário – chamadas presunções relativas ou “juris tantum” – resta evidente que as chamadas presunções absolutas e as ficções legais também não são admissíveis. Elas representariam uma total violência ao postulado da presunção de inocência.
Em resposta direta à questão posta, portanto, diríamos que a Administração Fiscal pode recorrer a presunções simples (hominis) para a configuração da fraude fiscal, mas não para as legais (relativas e absolutas).
(III) Em matéria fiscal, qual é o alcance do princípio da pessoalidade da pena?
Não parece haver dúvida de que o princípio da pessoalidade da pena é amplamente aplicável, tratando-se de fraudes fiscais de caráter criminal. Assim, a questão não parece suscitar maiores dúvidas quanto a esse ponto de vista. Já sob o aspecto do direito tributário ou da pena imposta pela Administração Fiscal ao contribuinte fraudador, a pessoalidade sugere outras observações.
Iniciemos pela análise dos artigos 136 e 137 do Código Tributário Nacional – CTN.
Segundo aquele dispositivo, a responsabilidade por infrações da legislação tributária, salvo disposição da lei em contrário, independe da intenção do agente ou do responsável e da efetividade, natureza e extensão dos efeitos do ato. Se o contribuinte quis deixar de recolher o tributo ou se ele tinha a intenção de desobedecer uma obrigação acessória (instrumental) é, “a priori” (a lei pode dispor em sentido contrário), irrelevante.
Entretanto, o artigo seguinte excetua o 136, para prever casos em que a responsabilidade por infrações passa a ser subjetiva e deixa de ser do contribuinte. Nas situações previstas no artigo 137, a intenção do agente[23] é relevante e a responsabilidade deixa de ser do contribuinte, para ser dele – agente. A despeito de este não estar agindo em seu próprio nome, mas sim em nome de terceiro (daí ser um mero agente), ele contraria os deveres a que está obrigado e ardilosamente realiza atos, condenáveis pelo direito, em seu próprio interesse. Age, assim, ao praticar a infração tributária, não somente contra o Fisco, mas também contra o terceiro (o contribuinte).
Ou seja, o contribuinte é também uma vítima e, por isso, não poderia ser punido, sob pena de violação do devido processo legal. A punição, é evidente, deve ser aplicada ao infrator – o agente – e não a uma das vítimas – o contribuinte. Daí a determinação do artigo 137.
A propósito do tema assinala Aliomar Baleeiro:
“Em certos casos especiais, a responsabilidade será de quem cometeu a infração – o agente – sem que nela se envolva o contribuinte ou o sujeito passivo da obrigação tributária. Isso acontece, em princípio, quando o ato do agente também se dirige contra o representado ou quando se reveste de dolo específico.
O CTN distingue três hipóteses. A primeira é a de a falta constituir ao mesmo tempo um crime ou contravenção penal. Mas, nesse caso, também responde o contribuinte fiscalmente, se o agente estava no exercício regular de administração, mandato, função, emprego ou no cumprimento de ordem expressa de que podia expedi-la.
Nesses casos, poder-se-á dizer que concorre culpa in eligendoou in vigilandodo contribuinte, por ter elegido mal seu representante ou não o ter fiscalizado. No segundo caso, o CTN responsabiliza somente o agente, porque agiu com o dolo específico, que caracteriza a infração.
No terceiro caso, há diferentes hipóteses de o agente ter praticado atos contra os seus representados, mandantes, preponentes, patrões etc. Seria demais puni-los quando já são vítimas, e culpa não revelaram nas faltas dos prepostos.”[24]
De fato, se for demonstrado que foi praticado um crime (fora do exercício regular de mandato ou função), se a infração requerer dolo específico do agente ou do agente contra seu mandante, a responsabilidade pela infração não é o do contribuinte, mas sim do agente. A imposição da multa contra o contribuinte, nessas condições, não pode persistir.
Nossa resposta à questão posta é no sentido de considerar ser plenamente aplicável o princípio da personalidade da pena em matéria de fraude fiscal, seja quanto à pena criminal, seja quanto à administrativa, nos termos da legislação infraconstitucional, devendo ser obedecidos os dispositivos do CTN que dispõe sobre o tema (sobretudo o art. 137).
3) SOBRE A RESPONSABILIDADE DA ADMINISTRAÇÃO
(I) Quais são os limites da defesa do cidadão contra políticas tributárias predatórias, que beneficiem a concorrência externa, os produtos importados e prejudiquem o contribuinte nacional?
(II) Há possibilidade de responsabilização das autoridades legislativas e administrativas sempre que a política tributária resulte em fato de inibição do desenvolvimento e gere efeito confiscatório?
Essas duas questões também merecem um exame conjunto.
O Estado, ao procurar cumprir suas funções constitucionais e legais, pode, eventualmente, adotar medidas que afetem os interesses e tragam prejuízos para a sociedade como um todo ou para uma parcela dela. Tais medidas, a despeito de seus efeitos negativos, impõem-se para alcançar um outro bem, de valor superior àqueles afetados[25]. Nessas situações, o Poder Público não estará praticando uma atividade ilícita ou adotando uma conduta irresponsável e inconseqüente. Muitas vezes a tomada da decisão, que vem a trazer certos prejuízos, é plenamente consciente dessas conseqüências. No entanto, o Poder Público insiste na medida, por acreditar (correta ou incorretamente, a questão não se põe aqui) que os benefícios para a sociedade serão superiores aos malefícios.
Ocasiões como essa levam a indagações como as propostas: o Estado poderia ser responsabilizado por prejuízos causados por suas medidas, adotadas para alcançar um outro bem à sociedade em geral? Quer dizer, o Estado estaria no legítimo exercício de sua função, zelando pelo bem da sociedade, e, apesar disso, ainda poderia ser responsabilizado pelos prejuízos causados à toda ou à parte da sociedade?
Essa questão suscitou discussões durante algum tempo, mas hoje se encontra mais tranqüila. Se os atos do Estado tiverem afetado a sociedade como um todo, propiciando incômodos a todos os seus integrantes, com uma relativa equanimidade, não há falar em indenização. A medida foi adotada para o bem de todos e se todos são em parte atingidos por ela, não haveria sentido em alguns se arrogaram no direito de pleitearem indenizações do Estado, que é o representante da sociedade da qual retira seus recursos. Se se entendesse possível tal indenização, todos estariam reparando os danos de somente alguns, quando todos teriam sido prejudicados.
Na hipótese oposta, na qual os atos do Estado causam prejuízos isoladamente a uma pessoa, ou a um grupo específico, ou os prejuízos são particularmente graves a esses poucos, caberá ressarcimento. Para este ser devido, portanto, além dos requisitos da existência do dano, da ação administrativa e do nexo causal entre ambos (necessários para qualquer indenização), é necessário que a medida estatal não tenha gerado um prejuízo geral na sociedade de modo uniforme (ou com certa uniformidade).
Explica-se esse entendimento em razão de não ser justo que alguns sejam prejudicados para o benefício de toda a sociedade. Se isso ocorrer, o Estado, como representante da sociedade, deverá ressarcir os danos específicos, de modo a compartilhar, entre todos, os custos da medida adotada no interesse de todos[26]. É o princípio da igualdade dos indivíduos perante os encargos públicos, a que se refere Couto e Silva[27].
No entanto, insista-se que, se a medida estatal refletiu em toda a sociedade, todos tendo prejuízos, não há sentido em falar-se de ressarcimento.
Por extensão de tais colocações, somente será cabível, em tese, a indenização pelo Poder Público por alterações na política tributária que causem um particular dano a um contribuinte específico, ou a um grupo deles.
Há um importante precedente jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça, que analisa justamente a situação do contribuinte frente a alterações tributárias repentinas que o afetem de modo particular[28]. O Ministro José Delgado assim expressou sua opinião:
“No momento em que o Estado indicou um planejamento para a empresa e ela se constituiu com base nesse planejamento e efetuou o negócio jurídico onde vai incidir o imposto de importação[29], o Estado está obrigado a respeitar esse planejamento que ele impôs. Sabemos que o imposto em causa tem também uma função político-social e essa função não pode ser só para um lado. Temos que observar que ele tem que proteger, também, a empresa. No momento em que a empresa começou naquele regime jurídico imposto pelo Estado, ela não pode ser tomada de surpresa, sob pena de desequilibrar o relacionamento que tem no mercado quanto àquele produto.” (sublinhei).
Notamos que nesse precedente estava presente um dano específico a um particular – a empresa parte no processo –, não comum ao restante da sociedade. Daí ter sido determinada a obrigação de ressarcimento.
Concluímos, então, reafirmando que, inicialmente, não cabe indenização em razão de políticas tributárias adotadas pelo Estado. Há, apenas, uma exceção, quando ocorre um prejuízo específico para um particular ou para um grupo isolado, possibilitando então que o dano especial seja distribuído para sociedade em geral, através do ressarcimento pago pelo Estado.
In: IV COLÓQUIO INTERNACIONAL DE DIREITO TRIBUTÁRIO. Buenos Aires – Argentina 16-17 de agosto de 2002, Buenos Aires: Editorial La Ley – IOB, págs. 119
[1] Vocabulário jurídico, vol. II, 1ª ed., Forense, 1963, p. 718.
[2]Ob. cit., p. 719.
[3] “Fraude é o ardil utilizado pelo sujeito, no sentido de simular a ocorrência de um fato inexistente, ou a inocorrência de um fato efetivamente realizado, ou, ainda, a dissimulação das reais características e circunstâncias do fato ocorrido” (Andreas Eisele, Dialética, 1998, p. 151).
[4] Elisão e evasão, in Elisão e evasão fiscal, Caderno de Pesquisas Tributárias vol. 13, coord. de Ives Gandra da Silva Martins, Resenha Tributária/CEEU, 1988, ps. 38 e 39.
[5] Entre outros, Alfredo Augusto Becker, para quem a incidência é imediata, instantânea e infalívelquando o fato gerador se realiza (Teoria geral do direito tributária, Saraiva, 1963, p. 278).
[6] Prefácio à edição brasileira da obra “Interpretação da lei tributária”, de Wilhem Hartz, Ed. Resenha Tributária, 1993, ps. 22 e 23.
[7] Ob. cit., ps. 24 e 25.
[8] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1993. p. 190.<
IV Colóquio Internacional de Direito Tributário. São Paulo, IOB, 16 de agosto de 2002 às 11h18
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