15 de março 2024 às 18H53
Por Hamilton Dias de Souza e Daniel Corrêa Szelbracikowski
Na primeira parte de nossas reflexões, publicada em 14 de março, cuidamos de examinar os desafios ao legislador complementar decorrentes das relações horizontais entre entes subnacionais e das diversas questões que pendem de definição para o funcionamento do novo sistema tributário sobre o consumo.
Nesta segunda parte, nos ocuparemos das relações verticais entre a União e os entes subnacionais, a respeito das quais havia uma preocupação de que o Comitê Gestor, denominado Conselho Federativo na primeira versão do projeto, fosse, na prática, “sequestrado” pela União, o que poderia diminuir o poder daqueles entes nas decisões relacionadas ao IVA e ofender a cláusula pétrea do sistema federativo.
Para tentar impedir isso, a versão aprovada pelo Senado manteve a União fora do Comitê e determinou, no inciso VI do §2º do art. 156-B, que “as competências exclusivas das carreiras da administração tributária e das procuradorias dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios serão exercidas, no Comitê Gestor e na representação deste, por servidores das referidas carreiras”.
Ou seja, o Comitê contará com manifestações (votos), apenas, de estados e municípios e será formado por funcionários desses mesmos entes subnacionais.
Se, de um lado, essa solução busca atribuir maior poder de decisão aos entes subnacionais, relativamente à administração do IBS, por outro lado, ela implica a possibilidade de coexistência de regulamentos, fiscalizações e interpretações distintas para o IBS e a CBS.
A propósito, imagine-se a situação de uma empresa que, em um dia, receba a fiscalização da União quanto às operações gravadas pela CBS, sofra a lavratura de um auto de infração com a aplicação da norma “x” e que, um mês depois, essa mesma empresa receba a fiscalização estadual ou municipal, atinente às mesmas operações, porém para o IBS, e o outro fiscal venha a interpretar que a norma “x” não seria aplicável, que a operação nada teria de ilícita ou que, na realidade, seria aplicável a norma “y”, com conteúdo distinto.
Tratando-se dos mesmos fatos geradores, atinentes a tributos gêmeos, seria possível que houvesse dupla ou tripla fiscalização, inclusive com eventuais impactos sobre prazos de prescrição/decadência? Se houvesse um regulamento do Comitê Gestor para o IBS e outro, da Receita Federal, para a CBS, haveria como impedir conflitos interpretativos? Qual tipo de norma poderia ser diferente entre o ente federal e Comitê
Gestor (estados e municípios)?
A falta de um entendimento comum – harmonização – entre o Comitê e a União pode levar a inconsistências em fiscalizações e arrecadações. Afinal, norma jurídica supõe interpretação[1] e toda fiscalização parte de determinados conceitos. Se estes forem distintos, conforme visto nos exemplos acima, inviabiliza-se uma fiscalização uniforme. Inviabiliza-se, assim, a própria ideia de um IVA, ainda que dual. Logo, a centralização não só parece inevitável para evitar conflitos e gerar harmonização, mas parece ser a finalidade perseguida pela EC 132. Nesse sentido, o art. 149-B estabelece que o IBS e a CBS “observarão regras comuns em relação a:
1. fatos geradores, bases de cálculo, hipóteses de não incidência e sujeitos passivos;
2. imunidades;
3. regimes específicos, diferenciados ou favorecidos de tributação; e
4. regras de não cumulatividade e de creditamento.
O § 6º do art. 156-B estabelece, ainda, que o Comitê Gestor e a União “atuarão” para harmonizar o conjunto de normas relacionado aos dois tributos, vejamos:
6º O Comitê Gestor, a administração tributária da União e a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional compartilharão informações fiscais relacionadas aos tributos previstos nos arts. 156-A e 195, V, e atuarão com vistas a harmonizar normas, interpretações, obrigações acessórias e procedimentos a eles relativos. Ao utilizar o verbo “atuarão”, o texto do § 6º parece claro quanto à necessidade de serem harmônicas as normas, interpretações, obrigações acessórias e procedimentos. Nesse sentido, a EC 132/23 previu a possibilidade de o Comitê Gestor e a União integrarem as soluções de administração e cobrança dos tributos, inclusive o próprio contencioso dos tributos. É o que dispõem os §§ 7º e 8º do art. 156-B:
7º O Comitê Gestor e a administração tributária da União poderão implementar soluções integradas para a administração e cobrança dos tributos previstos nos arts. 156-A e 195, V.
8º Lei complementar poderá prever a integração do contencioso administrativo relativo aos tributos previstos nos arts. 156-A e 195, V.”
As faculdades parecem dizer respeito às “soluções de administração e cobrança”, inclusive o contencioso, não, porém, às normas e interpretações que devem ser harmonizadas, sob pena de contradição com o disposto no § 6º do mesmo dispositivo e art. 149-B.
Nada obstante o § 6º determine a atuação conjunta dos entes federativos na harmonização de normas e interpretações, o fato é que a União não faz parte do Comitê Gestor. Como ela não faz parte do Comitê, será preciso que a lei complementar estabeleça o procedimento para uniformizar os entendimentos e debelar eventuais divergências interpretativas entre a União e os estados e municípios.
Afinal, havendo divergência normativa ou interpretativa entre a União e os estados e municípios, quem dirimirá as dúvidas? O Judiciário diretamente (STJ, nos termos do novo art. 105, I, ‘j’ da Constituição)? Ou será criado um órgão superior ao Comitê Gestor e à Receita Federal do Brasil (RFB) para uniformizar o entendimento?
Como isso não foi previsto no texto da EC 132/23, essas dúvidas terão de ser sanadas na lei complementar, com o risco de, a depender do procedimento que vier a ser adotado, afetar-se a Federação. Isso, porque, em princípio, tudo o que diz respeito à “divisão de competências e poderes entre entes federativos deve constar do texto da Constituição” (ADI 1945, Red. p/ acórdão do ministro Dias Toffoli, DJe 20/05/2021)[2].
Quando a Constituição reserva à lei complementar a possibilidade de prevenir conflitos de competência, nos termos do art. 146, I da CF, há um suposto lógico-jurídico de que exista alguma competência constitucionalmente estabelecida para os entes federativos em disputa. Não é possível que a lei complementar crie poderes ou competências não estabelecidos na Carta Maior[3].
Se isso fosse permitido, a lei complementar poderia redefinir o próprio pacto federativo, o que afrontaria o artigo 60, § 4º, I, da Constituição Federal. Logo, a tarefa do legislador complementar da EC 132 não será simples. Além de precisar definir dezenas de aspectos fundamentais ao funcionamento do novo sistema, sob pena de indeterminação, o legislador não poderá desbordar ou amesquinhar as competências
previstas pela Constituição aos entes federados.
Ainda do ponto de vista federativo, não se pode descartar o poder que a União, mesmo sem assento, poderá exercer sobre o Comitê Gestor, seja em função de sua capacidade de liberação ou bloqueio de recursos aos entes subnacionais via orçamento, seja por deter a iniciativa de lei complementar apta a alterar questões fundamentais do imposto formalmente titularizado por estados e municípios. Se o Comitê Gestor simplesmente ficar a reboque das interpretações da Receita Federal, será possível falar-se, verdadeiramente, em competência tributária ou mesmo em capacidade tributária de estados e municípios sobre bens e serviços? Não haverá, nesse caso, ofensa ao pacto federativo?
Embora não exista um único conceito de federalismo, pois este varia de acordo com a conformação normativa e os processos históricos de formação de cada estado federal, há parâmetros mínimos sem os quais não há falar em verdadeira federação.
Conforme já destacamos[4], no Estado Federal abdica-se da soberania de cada estado membro para eleger-se a soberania do Estado Central, remanescendo a autonomia federativa caracterizada como o poder “que têm as partes de um mesmo povo de organizar a sua vida própria, política e administrativa, dentro dos princípios constitucionais da União”.[5]
A autonomia, portanto, “pressupõe um poder de direito público não soberano, que pode, em virtude de direito próprio e não em virtude de delegação, estabelecer regras de direito obrigatórias”.[6] Esse poder é caracterizado pela capacidade de autogoverno, auto-organização, autolegislação e autoadministração.[7]
Nesse sentido, a Constituição Federal de 1988 assenta no artigo 18 que “a organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição”. A Constituição é quem cria, no mesmo átimo de tempo/espaço, todos os entes da federação (União, estados e municípios) e estabelece não só a autonomia administrativa e financeira, mas a autonomia política dos entes federados, isto é, a liberdade de exercer suas escolhas, o que supõe competência legislativa.
Porém, à exceção de um poder marginal — quase formal — quanto às alíquotas[8], a EC 132 expurgou completamente a competência legislativa dos entes subnacionais e concentrou na União o poder de legislar, por intermédio de lei complementar, sobre tributos correspondentes a 91,57% da arrecadação nacional.
Assim, embora a centralização, uniformização e harmonização do IBS e da CBS pareçam fundamentais do ponto de vista da segurança jurídica dos contribuintes, isso, paradoxalmente, tem o condão de concentrar ainda mais poder na União Federal, de sorte a tornar a estrutura federativa simbólica e possivelmente inconstitucional (RE 591.033, DJ 17/11/2010, ministra Ellen Gracie e ADO 25, DJ 12/8/2017), conforme
explicitamos anteriormente[9].
Em suma, a aprovação da EC 132/23 desafia o legislador complementar a definir dezenas de questões essenciais ao funcionamento do novo sistema e prever soluções que assegurem a harmonização dos entendimentos relacionados ao IBS/CBS. Nessa tarefa, há de se ter cuidado para não gerar tensões federativas ou comprometer a operacionalidade do sistema por falta de densidade normativa.
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