21 de novembro 2024 às 17H35
ARTIGO CONJUR – Por Mário Luiz Oliveira da Costa e Gabriela Gonçalves Barbosa
A escravidão no Brasil durou 388 anos e, mesmo após a abolição, os negros permaneceram marginalizados, em especial por não ter o Estado implementado projetos de inclusão social para os ex-escravizados ou seus descendentes (GOMES, 2019). Essa herança histórica consolidou o racismo como elemento estruturante da sociedade brasileira, afetando profundamente as políticas públicas e a ausência de enfrentamento efetivo da questão racial e suas consequências.
Ainda que tenhamos formalmente superado os horrores da escravidão há mais de 135 anos e observado avanços significativos na conscientização de todos para a necessidade de uma efetiva igualdade racial [1], lamentavelmente o preconceito e o racismo persistem em várias formas [2]. Assim, apesar dos esforços já realizados, a luta pela igualdade racial continua a demandar extenso e contínuo trabalho.
Segundo dados de 2022, 72,9% das pessoas abaixo da linha da pobreza são negras, enquanto brancos representam 18,6% (IBGE, 2022). A renda média dos negros é significativamente inferior à dos brancos (AASP, 2023), e, no atual ritmo de inclusão, a equiparação salarial só deve ocorrer em 2089 (Ipea/Oxfam Brasil).
No contexto tributário, os impostos indiretos, que incidem sobre o consumo, têm um peso desproporcional sobre os mais pobres, que gastam quase toda sua renda em bens e serviços. Os mais ricos, cuja renda excede os gastos, sofrem menos impacto relativo.
Por exemplo, a compra de uma televisão por um porteiro (renda mensal média de R$ 2.200) e um engenheiro (renda mensal média de R$ 13.200) ilustra essa desigualdade: os tributos embutidos no preço do produto equivalem a 18% da renda do porteiro, mas apenas 3% da renda do engenheiro. Essa diferença demonstra como a tributação afeta desigualmente pessoas com diferentes capacidades contributivas.
Portanto, é possível verificar a presença da raça [3] como um marcador que contribui para delimitar os grupos e os sujeitos que pagam um percentual maior de sua renda, a título de tributos, em comparação com o percentual de renda desembolsado para o mesmo fim pelos mais ricos. Assim, a população negra, sendo a mais pobre, sofre mais com a regressividade do sistema, que contribui para agravar a injustiça social e racial. Tudo em contraste com os princípios de equidade e justiça social previstos na Constituição de 1988.
Não há dúvida, em suma, de que famílias negras arcam com um impacto tributário indireto maior do que as famílias brancas, o que perpetua desigualdades estruturais.
Não basta combater o racismo de forma passiva; é preciso promover a igualdade racial ativamente, inclusive no campo tributário.
Isso significa que um sistema tributário que simplesmente não seja mais oneroso para a população negra, ainda que extremamente bem-vindo, não será o bastante. Torna-se imperativo implementar políticas públicas no sistema tributário que contribuam concreta e decisivamente para a inclusão e a igualdade da população negra. Essas políticas devem ir além de evitar o agravamento das desigualdades; devem buscar, ativamente, derrubar as barreiras raciais e promover a equidade.
O papel do sistema tributário é fundamental para alcançar uma sociedade justa, livre e solidária, um dos objetivos fundamentais de nossa República estabelecidos na Constituição (artigo 3º). As decisões políticas sobre como e o que tributar possuem impacto direto nos indicadores de equidade e influenciam significativamente a distribuição de riqueza e recursos.
Embora negros e brancos sejam iguais em termos de humanidade, direitos e dignidade (lamentavelmente, muitas vezes desrespeitados), a realidade brasileira frequentemente os coloca em patamares distintos devido a diferenças marcantes em aspectos sociais e econômicos. Essas “desigualdades da vida real” comprovam a necessidade de um tratamento tributário diferenciado, a elas proporcional e atendidos critérios de adequação e razoabilidade.
Implementar medidas voltadas à diminuição de desigualdades sistêmicas realmente honra o princípio da isonomia, cuja indispensável observância remonta a Aristóteles. É imperioso tratar de maneira equitativa aqueles em situações iguais e de forma diferenciada aqueles em circunstâncias desiguais, de acordo com a extensão dessas diferenças, o que possui especial relevância no contexto da redução da desigualdade racial.
Tributos diretos e progressivos podem financiar serviços públicos de forma mais justa, redistribuindo renda e atenuando os impactos regressivos. Além disso, é fundamental o estabelecimento de políticas concretas que objetivem reduzir as desigualdades, beneficiando principalmente a população negra.
A chamada reforma tributária do consumo, aprovada pela Emenda Constitucional nº 132, trouxe avanços nesse sentido, como a criação da “Cesta Básica Nacional de Alimentos” com alíquotas reduzidas para produtos essenciais e a previsão de devolução de tributos para famílias de baixa renda (cashback). Contudo, essas medidas ainda aguardam regulamentação e efetiva implementação.
Diversas outras medidas podem ser eficazes, como ampliar deduções no Imposto de Renda, incentivando a formalização de empregos e a educação. Por exemplo, retomar a dedução de contribuições previdenciárias para empregados domésticos certamente incentivaria a formalização de um setor predominantemente composto por mulheres negras. Adicionalmente, permitir deduções de despesas educacionais para trabalhadores domésticos e seus descendentes poderia fomentar a mobilidade social.
Além disso, benefícios fiscais podem ser direcionados a empresas que promovam a igualdade racial, como manter percentuais significativos de funcionários negros em cargos de liderança ou investir em programas de capacitação. Incentivos também podem estimular o afroempreendedorismo, essencial para combater o desemprego e a informalidade que afetam desproporcionalmente a população negra.
Estes são apenas alguns exemplos da enorme gama de providências viáveis, na seara tributária, em prol da igualdade racial.
O sistema tributário brasileiro perpetua desigualdades ao privilegiar a tributação indireta e negligenciar medidas que favoreçam a inclusão da população negra. Reformas que priorizem a progressividade e incentivem políticas públicas voltadas à redução das desigualdades são essenciais para alinhar a tributação aos princípios constitucionais de justiça e igualdade.
Promover a igualdade racial na tributação é não apenas uma forma de combater o racismo estrutural, mas também de garantir uma sociedade mais justa e solidária, em conformidade com os valores fundamentais da Constituição de 1988.
*versão resumida de artigo originalmente publicado, com o mesmo título, na Revista do Advogado / AASP – “Igualdade racial: além dos limites da advocacia”, coord. Conceição, Cristiano Scorvo e Anastácio, Patrícia Souza. São Paulo, nº 161, p. 100 – março/2024.
Link para a matéria original: https://www.conjur.com.br/2024-nov-20/igualdade-racial-e-tributacao-impactos-da-tributacao-na-populacao-negra/
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ASSOCIAÇÃO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO (AASP). Revista do Advogado – Igualdade racial: além dos limites da advocacia, coord. Conceição, Cristiano Scorvo e Anastácio, Patrícia Souza. São Paulo, nº 161, p. 100 – março/2024.
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[1] No campo normativo, destacam-se as Leis ns. 7.716, de 5 de janeiro de 1989 (e alterações posteriores, regulando os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor), e 12.288, de 20 de julho de 2010 (que instituiu o Estatuto da Igualdade Racial – EIR).
[2] O preconceito racial é um julgamento baseado em estereótipos sobre indivíduos de grupos racializados. Diferente do racismo, que é definido por seu caráter sistêmico, o preconceito racial se manifesta mais frequentemente como uma atitude individual baseada em noções estereotipadas. A sinofobia (contra pessoas chinesas ou asiáticas de maneira geral) e o antissemitismo (contra judeus) são exemplos de preconceitos. O preconceito racial e o racismo são ambos nocivos e inaceitáveis, mas é essencial distingui-los para combater eficazmente a seus efeitos. No contexto brasileiro, o racismo não se restringe a atos discriminatórios, mas se trata de um processo histórico, relacionado à escravização, em que a população negra foi submetida a uma condição de subalternidade que se reproduz nos âmbitos da política, da economia e das relações cotidianas (Sobre o conceito de preconceito racial e racismo, ver ALMEIDA, 2019).
[3] Embora não existam diferenças biológicas ou culturais que justifiquem um tratamento discriminatório entre seres humanos, o termo “raça” diz respeito a um elemento essencialmente político, sem qualquer sentido fora do âmbito socioantropológico. A noção de raça é um fator político importante, utilizado para naturalizar as desigualdades e legitimar a segregação de grupos socialmente considerados minoritários. No Brasil, a raça não pode ser vista fora da relação colonial; a raça constitui um instrumento de dominação que surge com a escravização. (ALMEIDA, 2019).
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