29 de maio 2019 às 8H58
O Incra vem conseguindo reabrir processos judiciais sobre desapropriação de terras que já estavam em fase de pagamento (execução). Existem, até agora, 20 decisões favoráveis, que geraram o bloqueio de mais de R$ 120 milhões em ressarcimentos. Os valores correspondem à fatia dos juros compensatórios devidos aos donos das terras que, segundo o órgão, devem ser recalculados.
Os pedidos tem como base uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de maio do ano passado e que ainda tem embargos de declaração pendentes de julgamento. Trata-se da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 2332, em que discutiu-se, basicamente, se os juros compensatórios que incidem sobre as desapropriações por necessidade ou utilidade pública e interesse social para fins de reforma agrária são de 6% ou de 12%.
A ação foi proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e teve uma primeira decisão do Plenário em setembro de 2001. Os ministros entenderam, em caráter liminar, que valiam os 12%. Só que em maio do ano passado – 17 anos depois -, ao julgarem o mérito, decidiram pelos 6%.
Relator da ação, o ministro Luís Roberto Barroso argumentou que a decisão anterior se justificou dentro de uma conjuntura de instabilidade econômica e inflacionária em que sequer havia previsão de correção monetária. Os 12% estavam estabelecidos no Decreto-Lei nº 3.365, de 1941. Para o ministro, a taxa de juros de 6%, nos dias atuais, é perfeitamente compatível com as aplicações que existem no mercado financeiro.
Esses 6% foram estabelecidos na Medida Provisória nº 2.027-43, do ano 2000, que alterou o decreto de 1941. A ADI em tramitação no Supremo trata exatamente sobre os dispositivos dessa MP.
O Incra tem apresentado ações para modificar as decisões de processos que foram encerrados entre a liminar de 2001 e a decisão de 2018 e que favoreceram os donos das terras. Para o instituto, tem de ser feito um novo cálculo, com base nos 6%. É por isso que vem conseguindo bloquear os pagamentos que já haviam sido definidos pelo Judiciário.
Mas não existem somente decisões favoráveis ao Incra. Foram apresentadas 50 ações desde o julgamento do Supremo e 33 delas já têm decisão proferida. Destas, 20 foram favoráveis ao Incra e 13 contrárias, ou seja, pela impossibilidade de os processos serem reabertos.
As discussões ocorrem por meio das chamadas ações rescisórias. Esse é o único meio de se discutir, na Justiça, decisões que já transitaram em julgado – nas quais não cabem mais recursos. Só que o uso desse instrumento é bastante específico. Para ser aceito tem de preencher requisitos estabelecidos pelo Código de Processo Civil (CPC).
E, com base neles, alguns juízes têm barrado os pedidos do Incra. Advogados que atuam para os donos das terras têm argumentado que a ação rescisória só pode ser utilizada nos casos em que ocorreu algum erro no processo ou desatenção com relação à jurisprudência. As rescisórias apresentadas pelo Incra, afirmam, teriam base, somente, em mudança de jurisprudência.
Essa é uma discussão que consta inclusive nos embargos de declaração que foram apresentados pela OAB. A entidade pede que os efeitos da cautelar de 2001 sejam preservados e a decisão do Supremo daquela época seja respeitada e válida até o encerramento da ação.
“Os tribunais podem mudar de posição, mas devem respeitar os casos já julgados”, afirma o advogado Marcus Vinicius Furtado Coêlho, presidente da Comissão de Direito Constitucional da OAB. Ele entende que não cabe ação rescisória nos casos em que a jurisprudência da época era controvertida. “O STF deve cumprir sua própria decisão”, afirma, citando a Súmula 343.
Antonio Carlos Matteis de Arruda Junior, sócio do escritório Velloza Advogados, diz que a ação rescisória é “uma exceção no sistema jurídico”. Existe, segundo ele, para desfazer algo que já foi decidido (coisa julgada) quando há um vício grave. “Corrupção do juiz, por exemplo”, cita. Outra hipótese seria a de contrariar diretamente a lei. “Precisa de algo objetivo, frontal e induvidoso”, diz.
Para o advogado Antônio Velloso Carneiro, do escritório Velloso Carneiro Advogados, que atua em uma dessas ações propostas pelo Incra (nº 5010591-47.2019.4.03. 0000), contra o pedido do órgão, as rescisórias disparadas após o julgamento de maio de 2018 são “mais um capítulo” na insegurança jurídica do Brasil. “É como se a liminar do Plenário do STF em 2001 e a atividade de juízes e tribunais federais ao longo de mais de uma década não valessem nada.”
No caso, o desembargador Souza Ribeiro, do TRF da 3ª Região, havia inicialmente negado o andamento da rescisória. Na última segunda-feira, no entanto, considerando “riscos de incontável dano”, concedeu efeito suspensivo à decisão até que uma nova análise sobre o caso seja feita.
No mês de abril, o ministro Benedito Gonçalves, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), negou uma das ações apresentadas pelo Incra (AR 6443). Ele considerou que a ADI 2332, do Supremo, ainda não transitou em julgado. O ministro Sérgio Kukina decidiu da mesma forma, monocraticamente, em uma outra rescisória (AR 6435).
O advogado Daniel Szelbracikowski, da Advocacia Dias de Souza, chama a atenção que o Código de Processo Civil (CPC) antigo, de 1973, não permitia o ajuizamento de ação rescisória com base em mudança na orientação jurisprudencial. Só que houve alteração com o novo CPC, que entrou em vigor em 2016.
O artigo 525 afirma que pode ser ajuizada ação rescisória se o Supremo, depois do trânsito em julgado, analisar a matéria e decidir que determinada lei ou ato normativo é inconstitucional ou que deve ter determinada interpretação à luz da Constituição Federal – seja por meio de ADI ou julgamento em repercussão geral. Além disso, fixa que o prazo para apresentar a rescisória começa a ser contado da decisão do Supremo e não da anterior, referente ao caso.
Para o advogado, no entanto, esse dispositivo do novo CPC é “absolutamente inconstitucional”. “Porque possibilita que uma ação encerrada há 15 ou 20 anos possa ser revista porque o Supremo, todos esses anos depois, mudou a sua posição”, pondera. “Isso é muito grave. Ofende não só a higidez da coisa julgada material, prevista na Constituição Federal, mas especialmente o que se pretende preservar, que é a segurança jurídica. Da forma como está, a parte nunca vai saber se ganhou ou não a ação.”
Ao Valor, a Advocacia-Geral da União (AGU) afirmou que há decisões favoráveis às ações rescisórias apresentadas pelo Incra “em todos os tribunais regionais federais e também no STJ”. No julgamento do ano passado no Supremo, a AGU apresentou dados sobre o impacto dos juros compensatórios. A incidência de 12% fez com que, de 2011 a 2016, o Incra gastasse R$ 978 milhões com o pagamento desses juros e R$ 555 milhões com as indenizações propriamente ditas.
Jornal Valor econômico , São Paulo, 29 de maio de 2019 às 8h58
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