29 de setembro 2014 às 10H35
Na última semana, o Supremo Tribunal Federal iniciou a apreciação do recurso extraordinário 590.809, que discute o cabimento de ação rescisória, por violação a literal disposição de lei (artigo 485, inciso V, do CPC), quando a decisão rescindenda ancora-se em interpretação do STF, que, posteriormente, vem a ser modificada pela própria Corte.
O caso concreto discute a rescindibilidade de decisão que, em conformidade com a interpretação que a Suprema Corte atribuía ao artigo 153, parágrafo 3º, inciso II, da Constituição, reconheceu o direito do contribuinte de se creditar do IPI decorrente da aquisição de insumos isentos. Posteriormente, o Supremo modificou a sua jurisprudência, o que possibilitou o ajuizamento da ação rescisória pela Fazenda Nacional.
A questão é relevante e merece reflexão, pois trata de situação ainda não apreciada pela Corte Maior e que pode ensejar a aplicação da Súmula 343/STF em matéria constitucional, quando estiver em causa a existência de mutação constitucional.
Vejamos:
A autoridade da coisa julgada material é garantida constitucionalmente em alinho ao princípio da segurança jurídica, estabilizador das relações jurídicas e sociais (artigo 5º, caput, inciso XXXVI, da CF). Por isso, a eficácia preclusiva da coisa julgada é intangível e imutável. Sua desconstituição realiza-se excepcionalmente por meio de ação rescisória, cujo cabimento depende da existência de algum dos vícios constantes do artigo 485 do CPC. Trata-se de exceção que visa garantir o devido processo legal nas hipóteses expressa e legalmente previstas, tendo por limite a Constituição.
Dentre os vícios de decisão elencados no artigo 485 do CPC, merece atenção aquele previsto no inciso V, que possibilita a rescisão do julgado quando este “violar a literal disposição de lei”.
Também reclama análise a interação do aludido dispositivo com a Súmula 343/STF, a qual dispõe que “Não cabe ação rescisória por ofensa a literal disposição de lei, quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais”.
Há muito a jurisprudência do STF afasta a referida Súmula 343 em matéria constitucional[1], preservando, com isso, a força normativa da Constituição e a autoridade do Supremo em relação aos pronunciamentos das cortes ordinárias.
A não aplicação do verbete é justificável, porque, em função do sistema de controle difuso de constitucionalidade, as questões constitucionais que não podem ser objeto de provocação por via do controle abstrato/concentrado costumam chegar ao STF apenas depois de longos anos de debates e pronunciamentos nas Cortes ordinárias. Muitas dessas decisões transitam em julgado antes de haver uma diretriz da Suprema Corte sobre a matéria, o que possibilita o manejo da ação rescisória para adequar o entendimento à jurisprudência que vier a ser fixada pelo Supremo.
Ou seja, o afastamento da Súmula diz com a impossibilidade de manutenção e prevalência das decisões proferidas pelas instâncias ordinárias em face da orientação do Supremo[2], considerada como a “melhor interpretação” [3] em razão de sua função Constitucional.
A questão que se coloca, no entanto, cinge-se à aplicação da Súmula 343 do STF quando a decisão rescindenda (i) trata de interpretação de dispositivo constitucional[4], (ii) foi proferida de acordo com a jurisprudência do Plenário do Supremo existente à época de sua prolação e (iii) veio a tornar-se, posteriormente, dissonante da nova interpretação da Corte Maior.
Na hipótese em análise, o Plenário do STF, em 5 de março de 1998, fixou o entendimento de que “não ocorre ofensa à CF (artigo 153, parágrafo 3º, II) quando o contribuinte do IPI credita-se do valor do tributo incidente sobre insumos adquiridos sob o regime de isenção”[5]. No mesmo sentido, em 18 de dezembro de 2002, estabeleceu que “se o contribuinte do IPI pode creditar o valor dos insumos adquiridos sob o regime de isenção, inexiste razão para deixar de reconhecer-lhe o mesmo direito na aquisição de insumos favorecidos pela alíquota zero, pois nada extrema, na prática, as referidas figuras desonerativas, notadamente quando se trata de aplicar o princípio da não-cumulatividade”[6]. Apenas nove anos depois, em 2007, o Supremo veio a modificar o aludido entendimento, definindo que “não se pode cogitar de direito a crédito quando o insumo entra na indústria considerada a alíquota zero”[7].
No processo em julgamento a decisão rescindenda foi proferida, em 2004, pelo TRF da 4ª Região, em conformidade com a interpretação vigente no Supremo desde 1998, possibilitando-se o creditamento do IPI em decorrência da aquisição de insumos isentos.
Parece-nos que, se a decisão rescindenda estava apoiada na jurisprudência do STF, a via da ação rescisória com fulcro na violação a literal disposição de lei deve ser temperada, sendo cabível sustentar-se a aplicação da Súmula 343 do STF, por haver, na espécie, verdadeira mutação constitucional.
Nesta circunstância, deve prevalecer a segurança jurídica e a coisa julgada material (artigo 5º, caput, XXXVI, da CF), corolários dos direitos e garantias fundamentais, de modo a preservar as relações jurídicas estabelecidas em função de um entendimento exarado pelo próprio Supremo, em outro momento histórico, sob outra composição de julgadores.
Revelam-se, portanto, duas posições do próprio Supremo, duas “melhores interpretações”, e não a prevalência da interpretação das cortes ordinárias em detrimento da interpretação da Corte Maior, motivo que fundamentou a não aplicação da Súmula 343 do STF em questão constitucional.
A situação também não se confunde com aquela em que não há diretriz do STF sobre o tema e que, portanto, também justifica o afastamento da Súmula 343[8].
Estando em jogo duas interpretações do Plenário do STF, uma estabelecida em 1998 e outra em 2007, o artigo 485, V do CPC deve ser analisado a partir de sua essência constitucional, que originou o verbete estampado na Súmula 343.
Com efeito, há mais de 50 anos, o Supremo estabeleceu que, “em favor mesmo da tranquilidade pública, da tranquilidade jurídica, em razão mesmo da eficácia da coisa julgada, terminou o julgamento, ainda que tomado por maioria ocasional. A questão não podia ter sido reaberta, em ação rescisória, como se se tratasse de um recurso de revista, que tem por escopo unificar a jurisprudência, porque a ação rescisória só cabe quando há manifesta e flagrante violação à lei (…)”. (STF – Pleno – AR 602/EI– Rel. Min. Gonçalves de Oliveira – J: 22/11/1963).
Isso significa que a ação rescisória não deve ser admitida como se recurso fosse; deve ser utilizada apenas e tão somente como uma “válvula de segurança, última via de correção para o sistema judicial (…), sujeita a prazo e hipóteses específicas, tendo em vista aquela perspectiva de resguardo da segurança jurídica” STF – Pleno – EDcl no RE 328.812-1/AM – Rel. Min. Gilmar Mendes – J: 06/03/2008).
No caso em análise, é justificável a inadmissibilidade da ação rescisória, porque a decisão rescindenda encontrava fundamento no posicionamento do Supremo. Entender de modo diverso enfraqueceria a legitimidade do próprio Tribunal, enfraqueceria suas decisões apenas porque, no futuro, poderiam vir a ser modificadas em função de alterações de composição.
Além disso, é distinta a situação daquele jurisdicionado que, em 2004, teve a seu favor um pronunciamento judicial definitivo alinhado ao entendimento do Supremo (existente desde 1998), daquele que só ingressou no judiciário ou finalizou o seu processo quando o Supremo já havia modificado sua jurisprudência, em 2007. As expectativas desses jurisdicionados possivelmente serão diversas.
O primeiro não entenderá porque a sua decisão será desconstituída, se o seu processo finalizou de acordo com a interpretação que o guardião maior da Constituição atribuía à causa. O segundo possivelmente creditará a derrota ao fato de haver o STF decidido de maneira diversa daquilo que estava a postular. Não haverá, aqui, vulneração à isonomia, que “consiste em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais”, ou seja, visa “desigualar situações díspares, conferindo-lhes tratamentos correspondentes à diversidade que encerram”[9]. As situações expostas são díspares em razão do fator tempo, o qual, aliás, influencia e distingue tudo e qualquer coisa na vida.
Assim, a aplicação da Súmula 343, nesta excepcional circunstância, contribuiria para validar os conteúdos possíveis da ordem normativa, isto é, não apenas a interpretação que a atual composição da Corte atribui a determinada norma constitucional, mas também aquela que foi legitimamente definida pela Corte, no passado, e seguida pelos tribunais de origem[10].
[1] STF – Pleno – AR 8.901/DF – Rel. Min Soarez Muñoz – J: 05/12/1979; STF – Pleno – RE 89.108/GO – Rel. Min. Cunha Peixoto – DJ: 19/12/1980; AR 1.572/RJ – Rel. Min. Ellen Gracie – J: 30/08/2007; STF – Pleno – EDcl no RE 328.812-1/AM – Rel. Min. Gilmar Mendes – J: 06/03/2008. Registre-se que, em nenhum desses casos, o STF estava a tratar de ação rescisória contra julgado que havia adotado interpretação do Plenário do STF. O mais próximo disso ocorreu em rescisórias contra julgados de Turmas do STF que haviam aplicado entendimento que, posteriormente, foi rechaçado pelas próprias Turmas ou pelo Plenário da Corte (vg.: ARs 1572, 1578 e 1713).
[2] “Admitir a aplicação da orientação contida no aludido verbete em matéria de interpretação constitucional significa fortalecer as decisões das instâncias ordinárias em detrimento das decisões do Supremo Tribunal Federal. Tal prática afigura-se tanto mais grave se se considerar que no nosso sistema geral de controle de constitucionalidade a voz do STF somente será ouvida após anos de tramitação das questões em três instâncias ordinárias. De fato, penso que não podemos desconsiderar o atual contexto da demora na tramitação das questões que chegam ao STF em recurso extraordinário, o que aliás é uma decorrência de uma perspectiva que entendo equivocada, que acabou conferindo ao recurso extraordinário uma feição subjetivista. A interpretação restritiva, considerado esse modelo em que as questões constitucionais chegam ao Supremo tardiamente, cria uma inversão no exercício da interpretação constitucional. (…) A rescisória, tal como se coloca no presente caso, serve justamente para permitir essa correção”. (AI 460439 AgR, Relator(a): Min. CARLOS VELLOSO, Relator(a) p/ Acórdão: Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Tribunal Pleno, DJ 09-03-2007, Voto Min. Gilmar Mendes, fls. 29/30)
[3] “(g) considera-se a melhor interpretação, para efeitos institucionais, a que provém do Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição, razão pela qual sujeitam-se a ação rescisória, independentemente da existência de controvérsia sobre a matéria nos tribunais, as sentenças contrárias a precedentes do STF, seja ele anterior ou posterior ao julgado rescidendo, tenha ele origem em controle concentrado de constitucionalidade, ou em controle difuso, ou em matéria constitucional não sujeita aos mecanismos de fiscalização de constitucionalidade dos preceitos normativos” (Zavascki, Teori Albino,“Ação Rescisória em Matéria Constitucional”, Revista de Direito Renovar, nº 27. Set-Dez 2003. Ed. Renovar. Págs. 173).
[4] Não englobando, portanto, a situação em que se discute a constitucionalidade de determinada norma infraconstitucional, possibilitando-se, por isso, o afastamento da Súmula 343: RE 89108, Relator(a): Min. CUNHA PEIXOTO, Tribunal Pleno, julgado em 28/08/1980, DJ 19-12-1980 PP-10943 EMENT VOL-01197-04 PP-00949 RTJ VOL-00101-01 PP-00207.
[5] EMENTA: CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. IPI. ISENÇÃO INCIDENTE SOBRE INSUMOS. DIREITO DE CRÉDITO. PRINCÍPIO DA NÃO CUMULATIVIDADE. OFENSA NÃO CARACTERIZADA. Não ocorre ofensa à CF (artigo 153, § 3º, II) quando o contribuinte do IPI credita-se do valor do tributo incidente sobre insumos adquiridos sob o regime de isenção. Recurso não conhecido. (RE 212484, Relator(a): Min. ILMAR GALVÃO, Relator(a) p/ Acórdão: Min. NELSON JOBIM, Tribunal Pleno, julgado em 05/03/1998, DJ 27-11-1998 PP-00022 EMENT VOL-01933-04 PP-00725 RTJ VOL-00167-02 PP-00698).
[6] CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. IPI. CREDITAMENTO. INSUMOS ISENTOS, SUJEITOS À ALÍQUOTA ZERO. Se o contribuinte do IPI pode creditar o valor dos insumos adquiridos sob o regime de isenção, inexiste razão para deixar de reconhecer-lhe o mesmo direito na aquisição de insumos favorecidos pela alíquota zero, pois nada extrema, na prática, as referidas figuras desonerativas, notadamente quando se trata de aplicar o princípio da não-cumulatividade. A isenção e a alíquota zero em um dos elos da cadeia produtiva desapareceriam quando da operação subseqüente, se não admitido o crédito. Recurso não conhecido. (RE 350446, Relator(a): Min. NELSON JOBIM, Tribunal Pleno, julgado em 18/12/2002, DJ 06-06-2003 PP-00032 EMENT VOL-02113-04 PP-00680).
[7] IPI – INSUMO – ALÍQUOTA ZERO – AUSÊNCIA DE DIREITO AO CREDITAMENTO. Conforme disposto no inciso II do § 3º do artigo 153 da Constituição Federal, observa-se o princípio da não-cumulatividade compensando-se o que for devido em cada operação com o montante cobrado nas anteriores, ante o que não se pode cogitar de direito a crédito quando o insumo entra na indústria considerada a alíquota zero. IPI – INSUMO – ALÍQUOTA ZERO – CREDITAMENTO – INEXISTÊNCIA DO DIREITO – EFICÁCIA. Descabe, em face do texto constitucional regedor do Imposto sobre Produtos Industrializados e do sistema jurisdicional brasileiro, a modulação de efeitos do pronunciamento do Supremo, com isso sendo emprestada à Carta da República a maior eficácia possível, consagrando-se o princípio da segurança jurídica. (RE 353657, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 25/06/2007, DJe-041 DIVULG 06-03-2008 PUBLIC 07-03-2008 EMENT VOL-02310-03 PP-00502 RTJ VOL-00205-02 PP-00807).
[8] “(h) não havendo precedente do STF sobre a matéria, o princípio da supremacia da Constituição e a indispensabilidade da aplicação uniforme de suas normas impõe que se admita ação rescisória, mesmo que se trate de questão controvertida nos tribunais” (Zavascki, Teori Albino,“Ação Rescisória em Matéria Constitucional”, Revista de Direito Renovar, nº 27. Set-Dez 2003. Ed. Renovar. Págs. 174).
[9] RE 231.924, Red. p/ acórdão Ministro Ricardo Lewandowski, DJ 21.06.2011, p. 110/111.
[10] “Quando uma decisão desta Corte fixa uma interpretação constitucional, entre outros aspectos, está o Judiciário explicitando os conteúdos possíveis da ordem normativa infraconstitucional em face daquele paâmetro maior, que é a Constituição”. (Voto Min. Gilmar Mendes, RE-ED 328.812, DJ 02/05/2008, p. 14)
Daniel Corrêa Szelbracikowski é advogado da Advocacia Dias de Souza, pós-graduado em Direito Processual Civil e Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas e especialista em Direito Tributário pelo IBET.
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