21 de novembro 2019 às 9H51
O Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) analisará nessa quarta-feira, 20/11, o Recurso Extraordinário (RE) 1.055.941. Com Repercussão Geral reconhecida, mencionado recurso trata “da possibilidade ou não de os dados bancários e fiscais do contribuinte, obtidos pelo Fisco no legítimo exercício de seu dever de fiscalizar, serem compartilhados com o Ministério Público para fins penais, sem a intermediação do Poder Judiciário”[1].
O tema foi amplamente noticiado pela imprensa antes do julgamento. Inicialmente, porque nos autos do referido RE, o Ministro Presidente Dias Toffoli proferiu decisão liminar no mês de julho, determinando “a suspensão do processamento de todos os inquéritos e procedimentos de investigação criminal (PICs), atinentes aos Ministérios Públicos Federal e Estaduais, em trâmite no território nacional, que foram instaurados à mingua de supervisão do Poder Judiciário e de sua prévia autorização sobre os dados compartilhados pelos órgãos de administração e controle (Fisco, COAF e BACEN), que vão além da identificação dos titulares das operações bancárias e dos montantes globais, consoante decidido pela Corte”[2].
No início da presente semana, novos holofotes foram voltados para o caso, tanto em razão do início do julgamento previsto para esta quarta-feira, quanto em razão de manifestação apresentada pelo Ministério Público (MP), na qual o parquet requer a revogação da liminar e o “reconhecimento da constitucionalidade dos diplomas normativos que preveem o repasse, por órgãos de fiscalização e controle como o COAF, a RFB, o BACEN e a CVM, sem intermediação judicial e para fins penais, de dados fiscais e bancários aos órgãos de persecução penal”[3].
O MP alega, para tanto, que “a finalidade perseguida pelo microssistema brasileiro antilavagem restará comprometida quer se exija prévia autorização judicial para que RIFS sejam enviados aos órgãos de persecução penal pela UIF, quer apenas se admita o envio direto a esses órgãos de persecução de RIFS genéricos, adstritos à identificação do contribuinte e ao montante global movimentado”.
De acordo com o MP, o STF já teria se posicionado a respeito da constitucionalidade do envio periódico de dados bancários para o Fisco quando do julgamento a respeito da constitucionalidade do art. 5º. da LC 105/2001[4]. Quanto a isso não parece haver dúvida: a PGR está certa ao afirmar ser desnecessária a exigência de prévia autorização judicial para que a UIF – Unidade de Inteligência Financeira (antigo COAF) ou a Receita Federal enviem ao MP dados gerais de contribuintes que demonstrem aparente anomalia em transações financeiras/fiscais. Afinal, esses dados gerais já são compartilhados pelas instituições financeiras com a Receita Federal, nos moldes do previsto na LC 105/2001, julgada constitucional pelo STF (ADI 2.390 e RE 601.314/SP).
Ocorre que esta não é a problemática posta em julgamento!
É preciso desfazer a confusão instaurada pelo MP. Se, por um lado, é certo que a UIF (antigo COAF) e a Receita (i) podem identificar anomalias financeiras a partir dos registros gerais recebidos das instituições bancárias e, na sequência, enviar tais dados ao MP (que, se convencido de indícios de crime, pode pedir ao Poder Judiciário a quebra de todo o sigilo fiscal/bancário do futuro investigado), por outro lado esses órgãos de controle (ii) não podem, a partir de dados globais, genéricos e indiciários realizar investigação criminal própria, unilateral e secreta para obter dados detalhados, por faltar-lhes competência para tanto, e (iii) nem tampouco podem servir de “braço investigativo” do MP que, insatisfeito com os registros globais e genéricos recebidos desses órgãos de controle, eventualmente pede – sem o crivo do Poder Judiciário – novos elementos aos aludidos órgãos, distintos e muito mais detalhados daqueles usualmente compartilhados pelas instituições financeiras.
Essas duas últimas situações, defendidas pelo MP, são inconstitucionais, pois implicam desvio de finalidade da UIF e da Receita Federal, consistente na substituição da atividade de investigação atribuída exclusivamente à polícia judiciária e ao Ministério Público (subsidiariamente), e afrontam o direito fundamental à privacidade e sigilo de dados, resguardado a todos os cidadãos pela Constituição Federal (art. 5º, X e XII da CF).
Tivemos a oportunidade de nos manifestar sobre o tema em março e abril do presente ano. Naquelas ocasiões, alertamos que, se no curso do processo regular de fiscalização tributária, a Receita Federal detectar indícios da prática de crime comum (vg.: lavagem), tais informações devem ser encaminhadas ao Ministério Público para que este órgão eventualmente instaure investigação criminal, nos termos do artigo 129 da Constituição Federal[5].
Da mesma forma, demonstramos que atividades secretas de investigação, instaladas no âmbito de órgãos governamentais, cujas atividades são exercidas sem autorização judicial e em inobservância às competências e finalidades organizacionais delimitadas constitucional e legalmente, são típicas de nações antidemocráticas em que a tônica da atuação estatal é: os fins justificam os meios. Por certo, atuação estatal nestes moldes não pode ser permitida pelo STF[6]. A almejada “rapidez e eficácia” do “microssistema antilavagem”, referida pela PGR, não pode ser garantida mediante a subversão da ordem constitucional vigente. A suposta ineficácia da máquina estatal não pode ser utilizada para amparar a violação ao direito constitucional de sigilo fiscal e de dados.
[1] http://stf.jus.br/portal/jurisprudenciaRepercussao/verPronunciamento.asp?pronunciamento=7478637
[2] https://www.conjur.com.br/dl/decisao-toffoli-suspensos-coaf.pdf
[3] Idem
[4] ADIs n.º 2.386, 2.390, 2.397 e 2.859
[5] SOUZA, Hamilton Dias de; SZELBRACIKOWSKI, Daniel Corrêa. Há desvio de finalidade nas investigações penais feitas pela Receita. Portal Consultor Jurídico. 1º de março de 2019. Acesso em 19/11/2019: https://www.conjur.com.br/2019-mar-01/desvio-finalidade-investigacoes-penais-feitas-receita
[6] SOUZA, Hamilton Dias de; SOARES, Júlio Cesar. Investigações secretas da Receita: desvio de finalidade que viola a Constituição. Portal JOTA. 23 de abril de 2019. Acesso em 19/11/2019: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/investigacoes-secretas-da-receita-desvio-de-finalidade-que-viola-a-constituicao-23042019
Daniel Corrêa Szelbracikowski é sócio da Advocacia Dias de Souza, mestre em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e especialista em Direito Tributário.
Júlio César Soares é sócio na Advocacia Dias de Souza e especialista em Direito Tributário.
Revista Consultor Jurídico, 20 de novembro de 2019, 9h18
https://www.conjur.com.br/2019-nov-20/opiniao-nao-desvirtuar-julgamento-stf-uif
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