01 de dezembro 2016 às 12H16
1. INTRODUÇÃO.
O Código de Processo Civil promulgado pela Lei 13.105, de 2015, trouxe importantes inovações visando assegurar a efetividade da prestação jurisdicional, tanto em relação à razoável duração quanto no tocante à solução justa, previsível e uniforme das demandas.
Merece destaque a previsão no sentido de que “os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente” (art. 926)[1]. A preocupação se explica porque o legislador determinou que os “juízes e os tribunais observarão”, entre outras decisões judiciais, os acórdãos “em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos” (art. 927), conferindo-lhes inequívoco caráter vinculante. Daí porque foi realçada a necessidade de fundamentação que trate de forma específica e suficiente de todos os argumentos que possam influir na decisão (art 927, §1º)[2].
Nesse contexto, justifica-se a análise crítica da jurisprudência firmada pelos Tribunais Superiores no sistema processual anterior, a respeito de matérias de interesse nacional, de modo a assegurar a estabilidade, integridade e coerência do entendimento refletido nos acórdãos que, doravante, deverão a ser obrigatoriamente observados, não só pelos magistrados, como pelos operadores do direito em geral.
O presente trabalho tem por objetivo examinar como o Superior Tribunal de Justiça tem interpretado as normas do Código Tributário Nacional referentes ao lançamento por homologação, no julgamento das diversas situações concretas que lhe são apresentadas.
O tema é relevante, pois a maioria dos tributos submete-se a tal modalidade de lançamento e as consequências do entendimento adotado pela Corte Superior acerca da caracterização e contornos do instituto são fundamentais para delimitar os direitos da Fazenda Pública e dos contribuintes, que estão em permanente tensão.
2. O LANÇAMENTO TRIBUTÁRIO NO CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL.
A Constituição Federal outorga competência à lei complementar para estabelecer normas gerais em matéria tributária, especialmente sobre obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários (art. 146, III, “b”), como forma de assegurar a racionalidade do sistema tributário, evitar conflitos federativos e conferir tratamento igualitário e previsível aos contribuintes[3].
Assim, somente lei complementar pode estabelecer regras sobre lançamento tributário, definindo-o e determinando os seus contornos e as suas modalidades. Nenhuma lei ordinária pode dispor sobre matéria, sob pena de invasão do campo constitucionalmente reservado à lei complementar[4].
O Código Tributário Nacional, conquanto editado como lei ordinária, foi recepcionado pela Constituição de 1988 com eficácia de lei complementar[5] e dispõe sobre o lançamento tributário no Capítulo II (“Constituição de Crédito Tributário”) do Título III (“Crédito Tributário”) do seu Livro II (“Normas Gerais de Direito Tributário”).
Portanto, a dinâmica do lançamento tributário deve estrita obediência às normas do Código Tributário Nacional, não havendo, nesse campo, espaço para regramento diverso por parte dos entes tributantes.
2.1. NATUREZA ADMINITRATIVA DO LANÇAMENTO E SUA OBRIGATORIEDADE.
O Código Tributário Nacional estabelece que a obrigação tributária nasce com a ocorrência do fato gerador (art.113) e que o crédito tributário resultante deve ser regulamente constituído pelo lançamento (arts. 139, 141 e 142), no prazo de cinco anos contados a partir dos momentos definidos em cada caso (arts. 149, parágrafo único, 150, §4º e 173), sob pena de caducar o direito à cobrança do valor devido (arts. 156, V).[6]
Nessa conformidade, o art. 142 do Código Tributário Nacional atribui competência privativa à autoridade administrativa para constituir o crédito tributário pelo lançamento, definido como “procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido e, sendo o caso, propor a penalidade cabível”. O parágrafo do dispositivo estabelece, ainda, que “a atividade administrativa de lançamento é vinculada e obrigatória, sob pena de responsabilidade funcional”.[7]
O lançamento tributário consiste, portanto, em ato jurídico sujeito ao regime próprio dos atos administrativos, consistentes em “toda e qualquer manifestação unilateral de vontade da Administração Pública que, agindo nesta qualidade, tenha por fim imediato adquirir, resguardar, transferir, modificar, extinguir, e declarar direitos, ou impor obrigações aos administrados ou a si própria”.[8]
Desse modo, uma vez ocorrido o fato descrito na norma tributária geral e abstrata como apto a dar nascimento à obrigação tributária, deve a autoridade administrativa proceder ao lançamento, a fim de que seja constituído o crédito tributário que lhe é correspondente.[9] A ausência de lançamento poderá resultar na decadência do direito do Fisco de exigir o crédito tributário (CTN, arts. 149, parágrafo único, 150, §4º e 173).
2.2. MODALIDADES DE LANÇAMENTO.
O Código Tributário Nacional prevê três modalidades de lançamento: (a) por declaração ou misto, em que cabe ao sujeito passivo prestar as informações necessárias para que a autoridade administrativa realize o lançamento (CTN, art. 147); (b) de oficio, em que a autoridade administrativa deve realizar o lançamento independentemente de provocação (CTN, art. 149); e (c) por homologação, em que compete ao sujeito passivo antecipar o pagamento do tributo e ao Fisco homologar ou não tal procedimento (CTN, art. 150).
2.2.1. O LANÇAMENTO POR HOMOLOGAÇÃO.
Por razões de eficiência e praticabilidade administrativa, a maioria dos tributos está submetida ao regime de lançamento por homologação, que opera-se quando o sujeito passivo tenha o “dever de antecipar o pagamento” do tributo e a autoridade administrativa, “tomando conhecimento da atividade assim exercida pelo obrigado”, a homologa, de forma expressa ou tácita (CTN, art. 150, caput e §§1º e 4º).
A atividade sujeita à homologação administrativa é o pagamento antecipado do tributo pelo sujeito passivo, como deixam claro o §1º do art. 150[10] e o inciso VII do art. 156[11] do Código Tributário Nacional. Na ausência de qualquer pagamento, não haverá o que ser homologado pela autoridade administrativa e, portanto, não restará caracterizada a figura do lançamento por homologação.
Por essa razão, o art. 149, V, do Código Tributário Nacional determina o lançamento de ofício do tributo “quando se comprove omissão ou inexatidão, por parte da pessoa legalmente obrigada, no exercício da atividade a que se refere o artigo seguinte”, qual seja, o pagamento antecipado do tributo de que trata o art. 150 do Codex.[12]
Acentue-se que, embora seja frequentemente denominado de autolançamento, o lançamento por homologação não prescinde de providências administrativas para que se verifique a constituição do crédito tributário[13]. É que “os atos praticados pelos particulares não são atos administrativos, sendo o lançamento definido como ato privativo da Administração (art. 142)”[14]. Sucede que, diferentemente das demais modalidades de lançamento, em que o pagamento é posterior ao procedimento administrativo, no lançamento por homologação o pagamento do tributo antecede o aludido procedimento administrativo, sendo este feito posteriormente.
A leitura do caput do art. 150 do Código Tributário Nacional aponta claramente nesse sentido, ao dizer que o lançamento por homologação “opera-se pelo ato” da autoridade administrativa que homologa o pagamento antecipado do sujeito passivo. Mesmo na ausência de ato expresso da autoridade fiscal, o Código atribui eficácia homologatória ao silencio da administração (CTN, art. 150, § 4º). Ou seja, a atividade do contribuinte não é suficiente para constituir o crédito tributário. Para tanto, deve haver homologação administrativa do pagamento antecipado do tributo, de forma expressa ou tácita.[15]
Portanto, embora corriqueira, deve-se utilizar com cautela a expressão “autolançamento”, pois a regular constituição do crédito tributário supõe sempre um procedimento administrativo, em sintonia com a regra do art. 142 do Código Tributário Nacional, disposição básica aplicável a todas as modalidades de lançamento.
3. ANÁLISE CRÍTICA DA JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA SOBRE O LANÇAMENTO POR HOMOLOGAÇÃO.
O Superior Tribunal de Justiça já decidiu diversas questões específicas envolvendo o lançamento por homologação. Como, porém, os julgamentos são realizados em momentos distintos e, muitas vezes, com alteração na composição do órgão julgador, as premissas nas quais se fundamentam as conclusões dos acórdãos nem sempre são congruentes umas com as outras. Em consequência, as decisões proferidas nos casos concretos tendem a ser casuísticas e, quando analisadas em conjunto, podem apresentar inconsistências jurídicas e gerar perplexidades no cumprimento dos deveres tributários.
3.1. A “PRIVATIZAÇÃO” DO LANÇAMENTO – CONSTITUIÇÃO DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO POR MERA DECLARAÇÃO DO SUJEITO PASSIVO – INEXISTÊNCIA DE PREVISÃO EM LEI COMPLEMENTAR.
Com efeito, é antiga a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que o lançamento por homologação seria caracterizado pela mera entrega de declaração do valor do tributo devido:
“A entrega de Declaração de Débitos e Créditos Tributários Federais – DCTF, e Guia de Informação e Apuração do ICMS – GIA, ou de outra declaração dessa natureza prevista em lei (dever instrumental adstrito aos tributos sujeitos a lançamento por homologação), é modo de constituição do crédito tributário, dispensando a Fazenda Pública de qualquer outra providência conducente à formalização do valor declarado (Precedente da Primeira Seção submetido ao rito do artigo 543-C, do CPC: REsp 962.379/RS, Rel. Ministro Teori Albino Zavascki, julgado em 22.10.2008, DJe 28.10.2008). O aludido entendimento jurisprudencial culminou na edição da Súmula 436/STJ, verbis: ´A entrega de declaração pelo contribuinte, reconhecendo o débito fiscal, constitui o crédito tributário, dispensada qualquer outra providência por parte do Fisco.´” (RESP 1.120.295/SP, Relator Ministro Luiz Fux, Primeira Seção, julgado em 12.05.2010, DJe 21.05.2010)
Certo, do ponto de vista prático, faria todo o sentido que a declaração do sujeito passivo quanto ao tributo devido pudesse constituir o crédito tributário e viabilizar a sua imediata cobrança. Seria algo equivalente à “confissão de dívida”, permitindo à Fazenda Pública a imediata cobrança do valor declarado.
Ocorre que o Código Tributário Nacional não contempla qualquer modalidade de lançamento por ato unilateral do sujeito passivo. A declaração do valor devido pode caracterizar, quando muito, informação (obrigação acessória) quanto à instauração da obrigação tributária, da qual decorre o crédito tributário (CTN, arts. 113 e 139). Mas a declaração particular não é suficiente para a constituição e consequente exigibilidade do crédito, tendo em vista que é de competência privativa da autoridade lançadora fazê-lo, por meio do procedimento administrativo denominado lançamento (CTN, art. 142), cujas modalidades são taxativamente previstas nos arts. 147 a 150 do Código Tributário Nacional. Isso se explica em razão da natureza “ex lege” da obrigação tributária e da oficialidade da atividade de tributação, que exclui por completo a vontade das partes envolvidas na relação jurídica estabelecida entre o ente público e o particular.
Assim é que, mesmo nos casos de lançamento por declaração, em que compete ao sujeito passivo prestar à autoridade administrativa as informações indispensáveis ao lançamento, este deve ser efetuado de ofício, a teor do art. 147 c/c art. 149, II a IV, do Código Tributário Nacional. Da mesma forma, exige-se lançamento de ofício no caso de o sujeito passivo não antecipar o pagamento de tributo sujeito a lançamento por homologação, nos termos do art. 149, V, do mesmo Código. E, sem crédito regularmente constituído, não há o que ser cobrado do sujeito passivo (CTN, art. 141).
Bom ou ruim, é esse o modelo de obrigação, lançamento e crédito tributários adotado pela lei complementar vigente que veicula as normas gerais a serem observadas pelos sujeitos da relação tributária, por força do art. 146, III, “b”, da Constituição Federal.
Pela mesma razão, deve o Poder Judiciário restringir as formas de constituição do crédito tributário às modalidades previstas na lei complementar, não podendo inovar na matéria, sob pena de atuar em campo próprio do Poder Legislativo, em violação aos princípios basilares da separação de poderes[16] e segurança jurídica[17] (CF, arts. 2º e 5º).
Além de não prevista pelo legislador competente, a dispensa do procedimento administrativo homologação do pagamento antecipado, quando há declaração unilateral da obrigação pelo sujeito passivo, gera inconsistências que ferem a racionalidade do sistema delineado pelo Código Tributário Nacional, valendo apontar as seguintes:
(a) subverte o procedimento previsto nos art. 150, caput e §§ 1º e 4º c/c art. 156, VI, ao equiparar a entrega de documento fiscal (obrigação acessória) ao pagamento antecipado do tributo (obrigação principal), misturando os distintos conceitos de obrigação principal e acessória, constantes do art. 113;
(b) inviabiliza a aplicação do art. 149, V, que determina o lançamento de ofício de tributo sujeito a lançamento por homologação cujo pagamento não tenha sido antecipado pelo sujeito passivo;
(c) confere tratamento anti-isonômico e mais benéfico aos sujeitos passivos que não cumprem obrigações acessórias, em detrimento daqueles que as cumprem, na hipótese de não recolhimento do tributo por qualquer um deles, pois: (c1) apenas os primeiros podem valer-se de denúncia espontânea, caso no futuro decidam recolher o tributo, antes de qualquer procedimento fiscal; (c.2) apenas os primeiros serão notificados do lançamento e poderão defender-se administrativamente, caso reputem indevido o tributo, cuja exigibilidade ficará suspensa até final decisão (CTN, art. 151, III), tendo em vista que o débito declarado pelos últimos poderá ser inscrito em dívida e executado, ensejando a constrição do patrimônio do sujeito passivo (Lei 6.830/1980).
Embora a jurisprudência continue admitindo a possibilidade de constituição do crédito tributário por mera declaração do contribuinte, as inconsistências das premissas nas quais se sustenta essa orientação pretoriana foram implicitamente reconhecidas por ocasião do julgamento do termo inicial do prazo decadencial para lançamento de ofício dos tributos sujeitos a lançamento por homologação:
“A Primeira Seção do STJ, no julgamento do REsp 973.733/SC, realizado nos termos do art. 543-C e sob a relatoria do Ministro Luiz Fux, sedimentou o entendimento de que o art. 173, I, do CTN se aplica aos casos em que a lei não prevê o pagamento antecipado da exação ou, quando, a despeito da previsão legal, não há o pagamento, salvo nos casos de dolo, fraude ou simulação. ´[…] ocorrendo o pagamento antecipado por parte do contribuinte, o prazo decadencial para o lançamento de eventuais diferenças é de cinco anos a contar do fato gerador, conforme estabelece o § 4º do art. 150 do CTN” (AgRg nos EREsp. 216.758/SP, Rel. Ministro Teori Albino Zavascki, Primeira Seção, DJ 10.4.2006). Com efeito, a jurisprudência consolidada por esta Corte dirime a questão jurídica apresentada a partir da existência, ou não, de pagamento antecipado por parte do contribuinte. Para essa finalidade, salvo os casos de dolo, fraude ou simulação, despiciendo se mostra indagar a razão pela qual o contribuinte não realizou o pagamento integral do tributo”. (AgRg nos EREsp 1.199.262/MG, Relator Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Seção, julgado em 26.10.2011, DJe 07.11.2011)
Como se vê, a Corte Superior considerou determinante, para efeito de aplicação da regra do art. 150, §4º (tributos sujeitos a lançamento por homologação), ou da regra do art. 173, I (tributos sujeitos às demais modalidades de lançamento), a existência ou não de pagamento antecipado do tributo pelo sujeito passivo, em estrita conformidade ao art. 150, caput e § 1º, c/c art. 156, VII, do Código Tributário Nacional. A declaração da obrigação pelo sujeito passivo foi considerada irrelevante para fins de caracterização do lançamento por homologação.
Além de prestigiar a letra e o espírito do Código, o entendimento adotado para fins de contagem do prazo decadencial dos tributos sujeitos a lançamento por homologação afastou a possibilidade de o contribuinte, declarando valor de tributo irrisório, submeter-se a prazo decadencial mais benéfico (contado da ocorrência do fato gerador), nos termos do art. 150, §4º, o que aumentaria o risco de tornar-se incobrável o tributo.
Essa interpretação realça a inconsistência da tese de que a mera declaração do sujeito passivo caracterizaria o lançamento por homologação. Afinal, se a conclusão estivesse correta, por coerência, deveriam ser aplicadas, nesse caso, todas as regras pertinentes a tal modalidade de lançamento. Logo, a mera declaração do tributo pelo sujeito passivo teria o condão de afastar as regras aplicáveis às demais modalidades de lançamento, como o art. 173, I, do CTN, que posterga o início do prazo decadencial para o primeiro dia do exercício seguinte à ocorrência do fato gerador.
3.2. EQUIPARAÇÃO DO DEPÓSITO AO PAGAMENTO ANTECIPADO – USO DE ANALOGIA EM FAVOR DA FAZENDA PÚBLICA – VEDAÇÃO EXPRESSA NA LEI COMPLEMENTAR.
Em outra oportunidade, apesar de reconhecer que o lançamento por homologação supõe o pagamento antecipado do tributo (e não a mera declaração do quantum devido), o Superior Tribunal de Justiça equiparou o recolhimento ao depósito judicial:
“No lançamento por homologação, o contribuinte, ocorrido o fato gerador, deve calcular e recolher o montante devido, independente de provocação. Se, em vez de efetuar o recolhimento simplesmente, resolve questionar judicialmente a obrigação tributária, efetuando o depósito, este faz as vezes do recolhimento, sujeito, porém, à decisão final transitada em julgado. Não há que se dizer que o decurso do prazo decadencial, durante a demanda, extinga o crédito tributário, implicando a perda superveniente do objeto da demanda e o direito ao levantamento do depósito. Tal conclusão seria equivocada, pois o depósito, que é predestinado legalmente à conversão em caso de improcedência da demanda, em se tratando de tributo sujeito a lançamento por homologação, equipara-se ao pagamento no que diz respeito ao cumprimento das obrigações do contribuinte, sendo que o decurso do tempo sem lançamento de ofício pela autoridade implica lançamento tácito no montante exato do depósito.” (ERESP 464.343/DF, Relator Ministro José Delgado, Primeira Seção, julgado em 10.10.2007, DJ 29.10.2007)
A equiparação do depósito (causa de suspensão da exigibilidade) ao pagamento (causa de extinção) do tributo, além de não ter previsão e confundir institutos previstos em dispositivos (art. 151, II e art. 156, I) localizados topograficamente em capítulos diferentes (III e IV) do Título III do Código Tributário Nacional, viola frontalmente o seu art. 108, §1º, que proíbe a exigência de tributo por analogia.
Com feito, o lançamento por homologação opera-se após o pagamento antecipado do tributo e não com o depósito do respectivo valor. Incluir o depósito como atividade do contribuinte passível de homologação administrativa é introduzir regra nova, não prevista no art. 150 do Código Tributário Nacional, que rege a matéria.
Trata-se de caso típico de integração analógica pelo Poder Judiciário, expressamente vedada por implicar a cobrança de tributo que, na falta do pagamento antecipado, deveria ser constituído de ofício pelo Fisco, na forma do art. 142, parágrafo único c/c 149, V, do Código Tributário Nacional, para interromper o prazo decadencial, sob pena de extinção da obrigação tributária (CTN, art. 113, §1ºc/c art. 156, V).
Nada obstante, uma vez admitida a equiparação do depósito ao pagamento antecipado, para fins de caracterização do lançamento por homologação, por medida de coerência, aquele deveria produzir todos os efeitos deste, possibilitando não só a interrupção do prazo decadencial em favor da Fazenda Pública, como também a configuração da denúncia espontânea em favor do contribuinte. Assim, todavia, não entendeu a Corte Superior, invocando motivos que não constam do Código Tributário Nacional:
“O depósito judicial integral do tributo devido e respectivos juros de mora, a despeito de suspender a exigibilidade do crédito, na forma do art. 151, II, do CTN, não implicou relação de troca entre custo de conformidade e custo administrativo a atrair caracterização da denúncia espontânea prevista no art. 138 do CTN, sobretudo porque, constituído o crédito pelo depósito, nos termos da jurisprudência desta Corte (EREsp 464.343/DF, Rel. Min. José Delgado, DJ de 29.10.2007; EREsp 898.992/PR, Rel. Min. Castro Meira, DJ de 27.8.2007; EREsp. n. 671.773-RJ, Primeira Seção, Rel. Min. Teori Zavascki, julgado em 23.6.2010), pressupõe-se a inexistência de custo administrativo para o Fisco já eliminado de antemão, a exemplo da entrega da declaração constitutiva de crédito tributário. Por outro lado, além de não haver relação de troca entre custo de conformidade e custo administrativo a atrair caracterização da denúncia espontânea na hipótese, houve a criação de um novo custo administrativo para a Administração Tributária em razão da necessidade de ir a juízo para discutir, nos autos do mandado de segurança impetrado pelo contribuinte, o crédito tributário cuja exigibilidade se encontra suspensa pelo depósito, ao contrário do que ocorre, v. g., em casos ordinários de constituição de crédito realizado pelo contribuinte pela entrega da declaração acompanhada do pagamento integral do tributo.” (EREsp 1.131.090/RJ, Relator Ministro Mauro Campbell Marques, julgado em 28.10.2015, DJe 10/02/2016)
Em suma, constata-se que a jurisprudência atual do Superior Tribunal de Justiça em matéria de lançamento por homologação: (a) admite a declaração da obrigação pelo sujeito passivo como modalidade de constituição do crédito tributário para permitir a sua execução pela Fazenda Pública, mas não para viabilizar a aplicação do termo inicial de contagem do prazo decadencial mais favorável ao sujeito passivo (CTN, art. 150, §4º); e (b) equipara o depósito judicial ao pagamento antecipado para elidir a decadência do direito da Fazenda Pública, mas não para possibilitar ao sujeito passivo usufruir dos benefícios da denúncia espontânea (CTN, art. 138).
4. CONCLUSÃO.
Diante do exposto, conclui-se que:
(a) o crédito resultante da obrigação tributária deve ser obrigatoriamente constituído por lançamento realizado pela autoridade administrativa competente, dentro do prazo decadencial (CTN, arts. 113, 139, 141, 142, 149, 150, §4º e 173);
(b) o lançamento por homologação opera-se pelo ato da autoridade administrativa que homologa o pagamento antecipado realizado pelo sujeito passivo, de forma expressa ou tácita (CTN, art. 150, caput e §§1º e 4º c/c art. 156, VII);
(c) a ausência ou insuficiência do pagamento antecipado afasta a possibilidade de homologação do lançamento e torna obrigatória a constituição do crédito tributário por meio de lançamento de ofício (CTN, art. 149, V);
(d) a Súmula 436 do STJ está em testilha com a sistemática do Código Tributário Nacional, pois a entrega de declaração pelo contribuinte é dever formal (obrigação acessória) inconfundível com o pagamento do tributo (obrigação principal) e, portanto, não dispensa a constituição administrativa do tributo por intermédio de lançamento de ofício (CTN, art. 149, V). Por isso mesmo, a Corte só admite a aplicação do prazo decadencial do art. 150, §4º nos casos em que tenha havido pagamento de tributo pelo sujeito passivo (AgRg nos EREsp 1.199.262/MG);
(e) o entendimento manifestado no ERESP 464.343/DF também está em desacordo com o Código Tributário Nacional, pois não se confunde depósito (causa de suspensão da exigibilidade) com pagamento (causa de extinção) do crédito tributário e não se pode constituir tributo por analogia, em face do princípio da reserva legal (CTN, art. 108, §1º, 151, II e 156, I). Tanto são inconfundíveis os institutos que a Corte só admite denúncia espontânea mediante pagamento e não com o depósito do tributo (ERESP 464.343/DF).
Assim sendo, e com vistas a concretizar as normas do novo Código de Processo Civil, convém que o Superior Tribunal de Justiça revisite os diversos temas associados à sistemática do lançamento por homologação para assegurar a integridade e coerência de sua jurisprudência, de sorte a viabilizar o adequado funcionamento do sistema de tributação previsto no Código Tributário Nacional, cuja observância é determinada pelo art. 146, III, “b”, da Constituição Federal.
Bibliografia
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DERZI, Misabel Abreu Machado. In: Comentários ao Código Tributário Nacional (Lei nº 5.172, de 25.10.1966)/Carlos Valder do Nascimento (coordenador), Ives Gandra da Silva Martins… [et al.]. Rio de Janeiro: Forense, 2008.
MACHADO, Hugo de Brito. Comentários ao Código Tributário Nacional, volume III. São Paulo: Atlas, 2005.
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SCHMITZ, Leonard Ziesemer. Fundamentação das decisões judiciais: a crise na construção de respostas no processo civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015.
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim… [et. al]. Primeiros Comentários ao novo código de processo civil: artigo por artigo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015
* Mestres em Direito Econômico e Financeiro pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – USP. Sócios do escritório Dias de Souza Advogados Associados.
[1] “Este dispositivo revela, de forma inequívoca, uma preocupação que esteve presente, como pano de fundo, em todos os momentos da elaboração do novo CPC. Esta preocupação diz respeito à extrema desuniformidade da jurisprudência brasileira, que ocorre mesmo em torno de temas extremamente relevantes, desuniformidade esta que compromete de maneira profunda e indesejável a previsibilidade segurança jurídica. (…) Trata-se de dispositivo que nada mais faz do que enunciar, em forma de regra norteadora da conduta dos magistrados, o princípio da isonomia, prestigiado pela Constituição Federal Brasileira e pelos Estados Democráticos de Direito, em geral”. (WAMBIER, Teresa Arruda Alvim Wambier… [et al.). Primeiros Comentários ao novo código de processo civil: artigo por artigo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015,p. 1.313, 1.315).
[2] “Trata-se de uma previsão mais rígida do que a do art. 489, §1º, IV, que exige apenas o enfrentamento dos argumentos contrários à conclusão adotada. A razão de ser do dispositivo é garantir um grau elevado de legitimidade desta decisão que, afinal de contas, servirá de parâmetro hermenêutico e normativo abstrato para o futuro. O debate sério e comprometido com argumentos contrários e favoráveis deve ser exigido de todas as decisões do rol do art. 927, já que todas elas detêm o mesmo grau de influência normativa.” (SCHMITZ, Leonard Ziesemer. Fundamentação das decisões judiciais: a crise na construção de respostas no processo civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 337).
[3] “A observância de normas gerais em matéria tributária é imperativo de segurança jurídica, na medida em que é necessário assegurar tratamento centralizado a alguns temas para que seja possível estabilizar legitimamente expectativas. Neste contexto, ‘gerais’ não significa ‘genéricas’, mas sim ‘aptas a vincular todos os entes federados e os administrados’ (STF, RE 433.352 AgR/MG, Rel. Min. Joaquim Barbosa Segunda Turma, julgado em 12/06/2008, DJe 27/05/2010).
[4] “I. PRESCRIÇÃO E DECADÊNCIA TRIBUTÁRIAS. RESERVA DE LEI COMPLEMENTAR. As normas relativas à prescrição e à decadência tributárias têm natureza de normas gerais de direito tributário, cuja disciplina é reservada a lei complementar, tanto sob a Constituição pretérita (art. 18, § 1º, da CF de 1967/69) quanto sob a Constituição atual (art. 146, b, III, da CF de 1988). Interpretação que preserva a força normativa da Constituição, que prevê disciplina homogênea, em âmbito nacional, da prescrição, decadência, obrigação e crédito tributários. Permitir regulação distinta sobre esses temas, pelos diversos entes da federação, implicaria prejuízo à vedação de tratamento desigual entre contribuintes em situação equivalente e à segurança jurídica. II. DISCIPLINA PREVISTA NO CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL. O Código Tributário Nacional (Lei 5.172/1966), promulgado como lei ordinária e recebido como lei complementar pelas Constituições de 1967/69 e 1988, disciplina a prescrição e a decadência tributárias(…)”. (STF, RE 556.664/RS, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJe 13.11.2008). No mesmo sentido: ADI 124, Rel. Min. Joaquim Barbosa, Plenário, julgamento em 1º-8-2008 , DJe 17.04.2009; RE 407.190/RS – Rel. Min. Marco Aurélio, Plenário, julgado em 27/10/2004, DJ 13/05/2005.
[5] STF – Pleno – RE 229.096/RS – Rel. Min. Cármen Lúcia – DJ: 16/08/2007.
[6] “Na terminologia utilizada pelo Código Tributário Nacional obrigação e crédito tributário não se confundem, porque, embora designem a mesma relação jurídica obrigacional, designam essa relação em situações diversas. Obrigação designa a relação obrigacional tributária desde o seu nascimento, com o fato gerador respectivo, até quando se consuma o lançamento. Crédito tributário designa essa mesma relação obrigacional a partir do lançamento, quando à obrigação tributária são acrescidas liquidez e certeza, e a consequente exigibilidade.” (MACHADO, Hugo de Brito. Comentários ao Código Tributário Nacional, volume III. São Paulo: Atlas, 2005, p. 57).
[7] “Atos vinculados ou regrados são aqueles para os quais a lei estabelece os requisitos e condições de sua realização. Nessa categoria de atos, as imposições legais absorvem quase que por completo, a liberdade do administrador, uma vez que sua ação fica adstrita aos pressupostos estabelecidos pela norma legal para a validade da atividade administrativa. Desatendido qualquer requisito, compromete-se a eficácia do ato praticado, tornando-se passível de anulação (…).”(MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 37 ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 172).
[8] MEIRELLES, Hely Lopes. Op. cit., p. 154.
[9] “Não cabe à Administração tributária decidir sobre a conveniência, oportunidade e conteúdo do lançamento. Apresentando-se os requisitos legais, no tempo certo, deverá ser efetuado o lançamento, sem margem de discrição, como refere o parágrafo único do art. 142”. (BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. Atualizada por Misabel Abreu Machado Derzi. 13. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 1.189).
[10] “Art. 150… ………………….. § 1º O pagamento antecipado pelo obrigado nos termos deste artigo extingue o crédito, sob condição resolutória da ulterior homologação ao lançamento.”
[11] “Art. 156. Extinguem o crédito tributário: ………………….. VII – o pagamento antecipado e a homologação do lançamento nos termos do disposto no artigo 150 e seus §§ 1º e 4º;”
[12] “O lançamento de ofício é ato sempre necessário para dotar de exigibilidade o direito de crédito que lhe preexiste e iniciar o procedimento de formação do título, imprescindível à execução judicial, mesmo se o procedimento originariamente previsto para o lançamento for homologatório, conforme estabelece o art. 149 do CTN”. (DERZI, Misabel Abreu Machado. In: Comentários ao Código Tributário Nacional (Lei nº 5.172, de 25.10.1966)/Carlos Valder do Nascimento (coordenador), Ives Gandra da Silva Martins… [et al.]. Rio de Janeiro: Forense, 2008 , p. 368). Ou seja, “se o devedor se omitir quanto à sua obrigação de apurar e recolher o tributo (ou se o fizer em valor menor do que o legalmente devido), o sujeito passivo é obrigado à prática do ato de lançamento para poder exigir o cumprimento de obrigação tributária; nessa eventualidade, a lei comina penalidade aplicável ao sujeito passivo, em razão do descumprimento do seu dever legal de (antes da prática de qualquer ato pelo credor) recolher o tributo devido” (AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. 15.ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 335).
[13] “O fato de o contribuinte antecipar no autolançamento o pagamento, sem prévio exame da autoridade administrativa não quer dizer que n]ao fique sujeito ao controle genérico da fiscalização e à homologação expressa ou tácita. O ato é administrativo, é ato de lançamento sujeito à homologação expressa ou ficta”. (NOGUEIRA, Ruy Barbosa. Curso de Direito Tributário. 4. Ed. São Paulo: IBDT, 1976, p. 198).
[14] DERZI, Misabel Abreu Machado. Op. cit., p. 408.
[15] A esse respeito, é pertinente relembrar a lição do Ministro Carlos Velloso, transcrita no voto do Ministro Demócrito Reinaldo, no EREsp 42.720-5/RS (Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, Primeira Seção, julgado em 14/03/1995, DJ 17/04/1995): “(…) à luz do CTN, mesmo efetivado por antecipação do pagamento, não há que se falar, ainda, em lançamento, por isso que, não custa repetir, o lançamento é ato privativo da autoridade administrativa. Com rigor técnico-jurídico-tributário, lançamento por homologação só haverá no momento em que a autoridade administrativa, tomando conhecimento da atividade do contribuinte, expressamente a homologa, ou no caso de homologação ficta.”
[16] É remansosa a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal no sentido de que o “principio da divisão funcional do poder impede que estando em plena vigência o ato legislativo, venham os Tribunais a ampliar-lhe o conteúdo normativo e a estender a sua eficácia jurídica a situações subjetivas nele não previstas” (RMS 21.662/DF, Relator Min. Celso de Mello, Plenário, julgado em 05.04.1994, DJ: 20.05.1994). Em outras palavras, o Poder Judiciário “não tem o poder de agir como legislador positivo, para criar norma diversa da instituída pelo Poder Legislativo” (RP 1.417/DF, Relator Ministro Moreira Alves, julgado em 09/12/1987, DJ: 15/04/1988).
[17] Para que a segurança jurídica seja alcançada e, por seu intermédio, a justiça, é indispensável, em primeiro lugar, que o Estado adote certos padrões de organização interna. A clássica divisão dos poderes, em legislativo, executivo e judiciário, enunciada por Aristóteles e desenvolvida em seus principais aspectos por Montesquieu, é considerada essencial. Cada órgão possui a sua faixa de competência peculiar, a sua especialização. Não se acham separados por um sistema hermético, mas conjugam as suas funções em uma atividade harmônica e complementar. Desenvolvem, por assim dizer, uma forma de solidariedade orgânica. O que traduz um imperativo de segurança é a impossibilidade de um mesmo poder açambarcar as funções próprias de um outro poder. Quando isto ocorre, configura-se uma anomalia, que coloca em risco a segurança jurídica. A partir do momento, por exemplo, em que o Poder Judiciário passe a criar o Direito que irá aplicar, de uma forma genérica e sistemática, estará praticando uma subtração de competência do Poder Legislativo e ameaçando seriamente a segurança jurídica. Esta prática institucionalizaria a incerteza do Direito vigente” (NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito. 36ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014 (e-book). Item 64).
Revista do STJ n° 242, 01 de dezembro de 2016 às 12h16
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