03 de maio 2019 às 10H39
O Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária (Rerct), instituído inicialmente pela Lei 13.254/2016, teve como objetivo permitir a declaração voluntária de recursos, bens ou direitos de origem lícita, não declarados ou declarados com omissão ou incorreção, remetidos ao exterior. Assumindo feição híbrida, o Rerct tem caráter misto que envolve elementos combinados da transação (artigo 171 do Código Tributário Nacional), anistia (artigos 180 a 182 do CTN) e remissão (artigo 172 do CTN). Embora seu núcleo seja tributário, o Rerct surte múltiplos efeitos, com repercussões também nas esferas penal, econômica e cambial.
É importante lembrar o contexto histórico no qual o Rerct se insere. A instabilidade política e econômica do país levou inúmeros contribuintes a remeter suas reservas financeiras ao exterior. E em 2016, o Brasil seguiu uma tendência mundial ao admitir a repatriação de ativos, num momento em que o governo federal precisava de novas fontes de receita. A repatriação de recursos é mecanismo de política internacional, e não criação legislativa episódica da realidade nacional. Dessa forma, toda a lógica do disclosure, tax compliance, favores penais e troca de informações faz parte de um cenário de neorregulação baseada na confiança do sistema tributário global.
Sob essa perspectiva, o Rerct é lei de transição, oportunidade, perdão e risco. São premissas do Rerct a adesão voluntária, a veracidade das declarações, a lealdade e confiança entre o Fisco e os contribuintes.
A sua interpretação deve ser feita em conformidade com o fim público a que se dirige, nos termos do artigo 2º, XII, da Lei 9.784/1999. A finalidade do regime especial era justamente regularizar ativos de origem lícita mantidos no exterior, para adequá-los às normas cambiais e tributárias. Consequentemente, foi concedida anistia em relação a ilícitos tributários, econômicos e penais, permitindo-se a repatriação dos capitais. Como a adesão ao Rerct também implicava reconhecimento de alguma sorte de ilícitos, como a própria evasão de divisas (artigo 22, parágrafo único, da Lei 7.492/1986), entendeu-se por bem explicitar a extinção penal derivada, o que se estendeu à possível sonegação fiscal, lavagem de capitais ou falsidades.
Por essas razões, o Rerct não pode ser comparado com as simples declarações fiscais regularmente prestadas por contribuintes, nas quais são declarados apenas os fatos jurídico-tributários, sem reflexos em outras esferas.
As condições legais expressamente estabelecidas pela Lei 13.254/2016 foram, fundamentalmente: licitude da origem dos recursos e titularidade de pessoa residente no Brasil em 31/12/2014.
Durante o prazo para a adesão à primeira versão do programa, a Receita Federal, por meio do Ato Declaratório Interpretativo 5/2016, publicou o “DERCAT – Perguntas e Respostas 1.0”[1], a saber:
“40 – O declarante precisa comprovar a origem lícita dos recursos? R: O contribuinte deve identificar a origem dos bens e declarar que eles têm origem em atividade econômica lícita na Dercat. Não há obrigatoriedade de comprovação. O ônus da prova de demonstrar que as informações são falsas é da RFB”.
O contribuinte não precisava comprovar a origem lícita dos recursos declarados e que o ônus da prova — de demonstrar a falsidade das informações e a consequente ilicitude da origem — era atribuído à Receita. Essa garantia era imprescindível para viabilizar a adesão dos contribuintes ao Rerct, tendo em vista que a maioria dos recursos estavam mantidos no exterior há mais de seis anos, o que tornaria difícil, senão impossível, comprovar sua origem.
De qualquer sorte, a lei vedou expressamente a regularização de recursos oriundos de tráfico de pessoas, de órgãos, de substâncias entorpecentes, contrabando, tráfico de armas, pornografia infantil, terrorismo, extorsão mediante sequestro, crimes contra a economia popular e outros. Havendo elementos probatórios suficientes que indiquem a prática destes ilícitos, é de rigor a investigação fiscal e criminal e a exclusão do Rerct. Contudo, diga-se, a presunção originária não é de presença criminosa, mas o contrário.
A presunção de veracidade da Dercat e da licitude da origem dos recursos do contribuinte é juris tantum, presunção relativa, admitindo prova em contrário. A demonstração da ilicitude deve ser feita pelas autoridades fiscais, sendo que a Dercat não pode ser utilizada como o “único indício ou elemento para efeitos de expediente investigatório ou procedimento criminal” e/ou “para fundamentar, direta ou indiretamente, qualquer procedimento administrativo de natureza tributária ou cambial em relação aos recursos dela constantes” (artigo 4º, parágrafo 12º).
O artigo 4º, parágrafo 12º, inciso II da Lei 13.254/2016 é taxativo ao determinar que compete à Receita obter outros elementos probatórios que fundamentem o início do procedimento investigatório. Assim, apenas na hipótese de obtenção de informações mediante outras fontes (por exemplo, troca automática de informações, ofícios do ministério público estrangeiro etc.) é que as autoridades fiscais podem, fundamentadamente, questionar a licitude da origem dos recursos regularizados pelos contribuintes e instaurar procedimento para averiguá-la. Nesse cenário, quando o Fisco tiver elementos probatórios suficientes que amparem sua investigação, o contribuinte deve ser intimado a prestar esclarecimento quanto à origem de seus recursos.
No entanto, em 6 de dezembro de 2018, passados dois anos do primeiro prazo para adesão ao regime especial, a Receita publicou o ADI 5/2018, que acrescentou as notas 1, 2 e 3 à questão 40 das perguntas e respostas originais:
“Nota 1: A desobrigação de comprovar documentalmente a origem lícita dos recursos se refere ao momento de transmissão da Dercat, assim como ocorre nas demais declarações prestadas à RFB.
Nota 2: A subsunção da hipótese legal de ingresso e permanência no RERCT poderá ser objeto de procedimento de ofício específico para tal fim.
Nota 3: A RFB, mediante intimação, concederá prazo razoável para que o optante ao RERCT apresente a comprovação sobre a origem lícita dos recursos regularizados”.
Embora a divulgação dessas notas tenha causado surpresa, o texto da resposta 40 não foi alterado. Assim sendo, ao que tudo indica, não houve alteração interpretativa. Manteve-se a presunção da licitude dos recursos e a imposição do ônus da prova ao Fisco.
Interpretar as notas como uma obrigação do contribuinte de comprovar a licitude de seus recursos seria admitir uma armadilha contra aqueles que aderiram ao Rerct (que totalizam 27 mil pessoas), confiantes no compromisso público da Receita de que não seriam obrigados a provar a origem do patrimônio, o que poderia implicar o dever de fazer prova negativa. Mais do que isso, seria admitir que os princípios de lealdade e confiança estabelecidos, bem como a proibição da construção probatória contra o próprio interessado, consubstanciada no princípio do nemo tenetur se detegere, fossem absolutamente superados.
Nesse regime de concessão mútuas, somente seria admitida como lícita a autorrealização de uma prova pelos declarantes se o poder público garantisse, dentro das regras pré-estabelecidas, uma posterior imunidade penal. Assim, há o necessário equilíbrio do dever de declarar bens e valores havidos irregularmente no estrangeiro e o direito constitucional de não se autoincriminar. Somente com uma intervenção específica do Estado garantindo anistia e segurança é que semelhante equação poderia funcionar. E tudo, desde um primado tributário, com vistas a interesses nacionais e internacionalmente acordados. Uma violação de qualquer desses pontos tornaria imprestável toda prova resultante da atuação individual dos declarantes.
A única interpretação adequada inclusão das referidas notas é aquela conforme à Lei 13.254/2016, o Código Tributário Nacional e a Constituição. Presumem-se lícitos os recursos declarados na Dercat. Se houver elementos probatórios suficientes — um conjunto de indícios concordantes — deve ser instaurado procedimento investigatório pelo Fisco, no qual o contribuinte será intimado para fazer contraprova, a fim de demonstrar a origem lícita de seus recursos, em respeito ao devido processo legal e ao contraditório. Caso contrário, a proibição e limitação mostram-se peremptórias.
A lei que instituiu o Rerct, em seu artigo 10, I determinou que a regulamentação do regime especial compete à Receita, no âmbito de suas competências. Disso resultam duas conclusões: a primeira no sentido de que a referida lei veicula obrigações essencialmente tributárias, a despeito de tratar de outras questões correlatas no âmbito penal e cambial; a segunda, no sentido de que o Poder Executivo seria representado pela Receita. Assim, seus atos seriam atos do Estado brasileiro, não simplesmente de um órgão fracionado. Teriam efeitos para todos os fins referenciados na lei, inclusive penais e cambiais.
A Receita editou o “perguntas e respostas” com o propósito de elucidar dúvidas dos eventuais aderentes ao regime, conferindo previsibilidade às consequências jurídicas de seu ato. Essa foi a finalidade da referida orientação: esclarecer o conteúdo da lei, para que os contribuintes soubessem sua posição e, em razão dela, optassem ou não.
Após o prazo de opção, não teria mais sentido que fossem utilizadas normas com o objeto de esclarecer alguém, pois os contribuintes que decidiram optar não teriam como voltar atrás. A publicação de ato declaratório interpretativo com disposições contrárias às anteriores não poderia ter como finalidade “esclarecer” o cidadão, pois a opção já foi realizada com base na interpretação oficial anterior. Então, o propósito do ADI 5/2018 só poderia atender aos interesses da administração, ou seja, sua finalidade seria diversa da que foi dada pela Lei 13.254/2016.
A utilização de ato administrativo para fim diverso daquele previsto em lei é ilegal por implicar desvio de finalidade e usurpação de competência pela autoridade que os editou. Nesse sentido, a jurisprudência de nossos tribunais é firme ao cassar atos administrativos ilegais, incompatíveis com a respectiva finalidade[2].
Assim sendo, as “perguntas e respostas” divulgadas em um ADI não podem ser perversamente utilizadas para amesquinhar direitos dos contribuintes e, pior, com efeitos retroativos. A segurança jurídica e o dever de proteção da confiança legítima exigem que sejam preservados os atos jurídicos perfeitos, como a adesão ao Rerct. Essa proibição fica ainda mais patente quando se contrapõe os direitos e garantias de ordem penal, tendo em vista o impacto da quebra da anterioridade do ato administrativo com efeitos (ainda que derivados) penais.
Nesse quadro de imbricação tributária, cambial e penal, toda e qualquer tentativa de inversão do ônus da prova acaba por esbarrar no conteúdo do artigo 146 do CTN e no direito à justa distribuição do ônus da prova.
A adesão ao Rerct pelos contribuintes é ato jurídico perfeito praticado de boa-fé e em conformidade com a lei e os critérios interpretativos vigentes à época, inclusive com as orientações divulgadas no texto original do perguntas e respostas. Uma mudança de orientação da administração pública somente pode ter eficácia em relação a casos futuros, nos termos do artigo 146 do CTN. Isso é medida para preservar a estabilidade das relações jurídicas e os atos jurídico perfeitos, como determina a Súmula 227 do TFR: “A mudança de critério jurídico adotado pelo fisco não autoriza a revisão de lançamento”.
Também é fundamental destacar a razoabilidade das circunstâncias que levaram à instituição do Rerct. O Estado optou pela regularização de situações que, via de regra, foram decorrentes do período de instabilidade institucional e econômica que o Brasil atravessou. Logo, não seria razoável nem proporcional exigir de um contribuinte que faça a prova da origem de um recurso aplicado no exterior nos anos 70 ou 80. Não somente pelo transcurso do tempo que desobrigou juridicamente da guarda dos documentos[3], mas também pela ausência de norma expressa nesse sentido.
Impor a todos contribuintes o dever de prova da licitude dos recursos remetidos ao exterior não seria medida apropriada nem justificável. Ao contrário, pelo princípio da proporcionalidade, é dever da administração pública cotejar os elementos envolvidos nos casos concretos, levando-os em consideração para dar o deslinde mais razoável/proporcional às situações específicas.
Por expressa previsão da Lei 13.254/2016, o ônus da prova é do Fisco, o que é coerente com a multidisciplinariedade do Rerct, à medida que, em matéria penal, o dever de provar a autoria e a materialidade do delito é sempre da acusação. Além disso, o sistema jurídico nacional garante o direito fundamental à justa distribuição do ônus da prova, ou seja: (i) que o acusador apresente prova concreta da materialidade e da autoria do suposto delito; (ii) que o acusado não seja obrigado a apresentar prova impossível, a exemplo da prova de sua boa-fé; (iii) que o ônus da prova seja distribuído com razoabilidade.
Originalmente, o Rerct tinha como objetivo regularizar perante as normas tributárias, cambiais e penais condutas realizadas há décadas. Em diversos casos, talvez a maioria, a licitude da origem dos recursos declarados é prova praticamente impossível e implicaria exigir prova negativa dos contribuintes, em contrariedade à jurisprudência pacífica do STJ.
Mais uma vez, aqui, todo o alicerce da construção penal parece se fazer presente. Pretender a inversão do ônus da prova esbarra nos princípios constitucionais da legalidade, moralidade, eficiência, segurança jurídica, da proteção à confiança, da vedação do venire contra factum proprium e da presunção de inocência. Os limites postos a eventual investigação decorrem da opção legislativa assumida pelo Estado, que pretendeu uma política de regularização arrecadatória, na qual, salvo quando presentes outros elementos probatórios, prevalece o pactuado, com a consequente extinção de punibilidade por crimes de envio ou manutenção de valores não declarados ao exterior.
[1] As mencionadas perguntas e respostas, que assumiram papel vinculante, mostravam-se, sim, com inegável característica de acessoriedade administrativa, influenciando na própria interpretação penal. Cf. SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Crise econômica e reflexos penais: leis penais em branco, compliance e regularização de ativos. Repatriação e crime. Aspectos do binomio crise economica e direito penal. Belo Horizonte: D’Placido, 2016, pp. 97 e ss.
[2] STJ, REsp 931.368-RS, Min. Herman Benjamin, 2t, 20.08.2009, DJ 04.05.2011.
[3] Os contribuintes somente são obrigados a guardar comprovantes de origem de seus recursos pelo prazo prescricional, ou seja, pelo prazo de cinco anos do art. 173, I do CTN.
Hamilton Dias de Souza é conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp).
Renato de Mello Jorge Silveira é presidente do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp).
José Horácio Halfeld Rezende Ribeiro é presidente honorário do Colégio de Presidentes dos Institutos dos Advogados do Brasil.
Revista Consultor Jurídico, 03 de maio de 2019 às 10h39
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