19 de julho 2022 às 14H22
Muito se tem dito sobre a recém promulgada Emenda Constitucional (EC) nº 123/2022, decorrente da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 15/2022, apelidada de “PEC dos benefícios”.
De iniciativa do governo, o projeto permitiu a distribuição, até 31 de dezembro de 2022, de mais de R$ 41 bilhões em benefícios, a poucos meses das eleições. Isso, com base num “estado de emergência” de escopo apenas orçamentário, motivado pela alta dos combustíveis.
Com a manobra, tenta-se imprimir ares de legitimidade aos valores que o Governo pretende transferir à população, aos caminhoneiros, aos taxistas e aos entes federados etc. Afinal, se concedidos por lei, eles seriam inválidos, pois desrespeitam o “teto de gastos” e têm o propósito de interferir no resultado da eleição a ser realizada a poucos meses dos pagamentos.
De fato, a Constituição prevê a ineficácia de mudanças nas condições de disputa em relação às eleições realizadas em até um ano de sua vigência (art. 16). E, para dar concretude a esse mandamento nuclear do sistema, a Lei n. 9.504/97 proíbe, em ano de votação, a distribuição “de bens, valores e benefícios” por parte da Administração Pública (artigo 73, §10), de modo que os cofres públicos não sejam utilizados a fim de interferir nas urnas. A Lei excepciona a proibição em caso de “estado de emergência”. Todavia, como seu intuito é inviabilizar o emprego de bens e dinheiros públicos para atração de votos, a exceção é condicionada à existência de “estado de emergência… já em execução… no exercício anterior” (artigo 73, §10). Por isso, o próprio governo descartou a realização da manobra via projeto de lei, até porque o “teto de gastos” é previsto constitucionalmente. Daí a opção pela PEC, que, no seu entender, operaria “no mesmo nível” do teto e da anualidade, o que a tornaria “válida”.
Bem se vê, portanto, que o governo tenta trabalhar com sutilezas. Aposta-se numa aparência de legitimidade, a partir da “tese” de que, formalmente, emenda constitucional revoga normas preexistentes de mesmo nível e se sobrepõe àquelas de inferior hierarquia, como se isso ocorresse sem quaisquer restrições (sic). Contudo, tal construção é frágil, pois, em nosso sistema, a validade de toda norma editada pelo Poder Legislativo depende de sua forma, de seu conteúdo[1] e da idoneidade dos fins a serem alcançados[2]. As emendas não se eximem dessas condições de validade, tanto que a própria Constituição proíbe que elas sejam “objeto de deliberação” quando se inclinem a abolir, amesquinhar ou fraudar, por exemplo, o sentido democrático inaugural do direito ao “voto direto, secreto, universal e periódico” (CF/88, art. 60, §4º, II)[3]–[4]. Por isso, na eventual incompatibilidade com o espírito democrático/republicano da Constituição, a emenda é materialmente inválida[5], ainda que atendidos os pressupostos procedimentais para sua inserção no ordenamento[6]. Tudo a evidenciar que há um limite entre “aquilo que se oferece mutável e aquilo que imprime caráter e razão de ser à Constituição”, devendo-se “adotar preceitos sem bulir com princípios”[7]
Nesse quadro, a tentativa de fraude eleitoral chega a ser ostensiva. Afinal, na situação em que o País se encontra, se o verdadeiro intento fosse prestar socorro público, as medidas valeriam por tempo indeterminado, e não apenas até dezembro. É dizer: em si mesma, a limitação temporal do benefício, coincidente com o período de eleições e a fase final de mandato, denota que o motivo determinante para sua concessão não foi a preocupação do governo com as condições de vida da população (!)
Ainda que a EC seja inconstitucional, o importante para o Governo era apenas a sua aprovação, pois, se e quando ela for assim declarada, já terá surtido o efeito de atrair votos e até de alterar o resultado das urnas. Para piorar, a Presidência da República encurralou aqueles que, em tempos normais, seriam contrários ao auxílio. De fato, como toda a classe política se encontra em campanha, os congressistas e seus aliados estariam sujeitos a danos políticos em caso de manifestações não favoráveis à proposta (perda de votos). Daí o estranho “acordo” entre situação e oposição para a aprovação da “PEC dos benefícios”, a despeito da tônica eleitoreira e da consequente inconstitucionalidade material do que foi feito.
Enfim, a concessão de auxílios bilionários em ano de eleições, ao amparo de um inédito estado de emergência orçamentária dissociado de eventos traumáticos (v.g., pandemia), materializa o que Fernando Henrique Cardoso designou de inclinação dos poderosos a fazerem “o impossível para se reelegerem”[8]. Com isso, consagra-se a “inversão de fins e meios na política”, em que “o poder é dado aos políticos para que realizem” o interesse público, mas, na prática, eles o utilizam apenas com o objetivo de manter esse mesmo “poder que, de meio, passa a ser o fim real da sua ação”[9]. E, no caso, a obtenção de finalidade não republicana se dá pelo mecanismo inerentemente democrático de reforma
à Constituição. Trata-se, portanto, de desvio de finalidade contido na lei (emenda), frequente na atualidade e típico do chamado constitucionalismo abusivo (ou furtivo)[10]–[11]–[12]–[13].
Ocorre, entretanto, que, segundo o Supremo Tribunal Federal (STF), nosso sistema dispõe de mecanismos que reconhecem e repelem a inadequação finalística de emendas à Constituição. Com efeito, há iterativos julgados do Plenário de nossa Corte Suprema no sentido de que “a teoria do desvio de poder, quando aplicada ao plano das atividades legislativas”, inclusive as de reforma constitucional, impõe que “se contenham eventuais excessos decorrentes do exercício imoderado e arbitrário da competência institucional outorgada ao Poder Público, pois o Estado não pode, no desempenho de suas atribuições, dar causa à instauração de situações normativas que comprometam e afetem os fins que regem a prática da função de legislar” (ADI 2667, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 19/10/2020).
Com o que acima se disse, não se está a ignorar que a decretação de situações excepcionais (calamidade, guerra, estados de sítio e de defesa) é e sempre foi considerada questão de “alta política”, objeto dos chamados atos de governo. De fato, trata-se de ato especial, caracterizado por elevada margem de discricionariedade, pois envolve decisões estratégicas “que dizem respeito ao futuro nacional”. Porém, nunca se cogitou, sob a égide de nosso regime democrático, que tais competências pudessem ser utilizadas para fins que a própria Constituição repele. Afinal, num sistema republicano, somente situações de fato verdadeiramente atípicas são capazes de justificar medidas vocacionadas à insindicabilidade, observada a condição, decorrente do próprio Estado democrático de Direito, de que a competência para adoção dessas mesmas medidas seja manejada de forma “oportuna, conveniente e rápida, adequada à imprevisibilidade do caso emergente”. Por isso, elas devem sempre se pautar por interesses do Povo (públicos, não particulares)[14]–[15]–[16], sob pena de invalidade.
Enfim, por legitimar-se finalisticamente, a discricionariedade inerente a essas competências extremas, apesar de acentuada, não é absoluta. Isso, porque discricionariedade e arbitrariedade não se confundem, daí dizer-se que a “regra de competência não é um cheque em branco” (Caio Tácito). Assim, a invocação de estados excepcionais (de defesa, de sítio, de emergência), ainda que com o concurso do Congresso (leis, emendas), é passível de invalidação, se pautada por propósitos alheios ao interesse público e ao espírito democrático do sistema[17]. É que, segundo Tércio Sampaio Ferraz Jr., em tais casos, há o desvio da norma em relação aos fins subjacentes à competência para editá-la:
“haverá inconstitucionalidade por desvio de finalidade quando e se a lei… pretender alcançar objetivo diverso do que lhe é dado pela norma constitucional atribuidora de competência, com o fito de provocar finalidade [diversa daquelas admitidas pela própria Constituição]”[18]
E não poderia ser diferente, pois, em qualquer nível ou escalão, a Administração Pública e a representação política devem conduzir-se pela moralidade e pela impessoalidade. A primeira impõe que os políticos exerçam suas funções com ética, boa-fé e lealdade perante os eleitores. A segunda impede que seus interesses e necessidades pessoais, ou de seus grupos e facções, interfiram na gestão da coisa pública e nos demais temas de interesse nacional. Além disso, a Constituição exige que o exercício das competências inerentes ao mandato obedeça à razoabilidade, do modo “mais adequado aos fins a serem alcançados, graças à escolha dos meios… concebíveis como… idôneos para tanto”[19]. Em suma, a ausência de integridade na prática do ato o vicia, seja ele proveniente do governo, do Congresso, ou, ainda, do concurso de ambos.
Consequentemente, a distribuição de auxílios governamentais, ainda que amparada num “estado de emergência” reconhecido pelo Congresso, só seria válida se motivada por fins constitucionais, de interesse público. Nesse sentido, mesmo que a situação econômica do país seja delicada e os benefícios em questão possam remediar a vida população, eles são inconstitucionais. Crise econômica e necessidade de oferecer assistência à população são apenas “pretextos”, incongruentes com o motivo determinante para a concessão do auxílio de que se cuida.
E a Constituição não tolera o uso oportunista do sofrimento popular para manobras às vésperas das eleições, fase que ela própria qualifica como inoportuna, a ponto de tolher a eficácia de atos capazes de alterar as condições de disputa, se publicados no mesmo ano. Enfim, socorro público não se presta à manutenção, a qualquer custo, de um determinado grupo no poder.
De fato, uma coisa são os interesses que a Constituição qualifica e reconhece como nacionais; outra, distinta, são os interesses ligados à pessoa do governante, de seus partidos e de grupos correlatos. Não há, nem pode haver, confusão entre ambas, sob pena de esvaziar-se a legitimidade do próprio Estado, ao extremo, inclusive, de arruinar as conquistas democráticas das últimas décadas e de impossibilitar a concretização do “projeto institucional” insculpido na Constituição.
Por tais razões, mais que inadmissível, a criação de auxílio emergencial como moeda para a compra de votos, ao colocar os cofres públicos a serviço da vitória nas urnas, chega a ser teratológica.
Não há interesse público que a legitime. Toda ela é pautada critérios populistas atrelados à manutenção de um grupo no poder.
Note-se, aliás, que a “compra” de votos mediante auxílios financiados por dinheiro público não difere, quanto aos efeitos, da “compra” com dinheiro próprio, ainda que, do ângulo moral, seja ainda mais reprovável. Afinal, o que se “proíbe obter diretamente, não se pode obter por meios transversos, [o] que configuraria hipótese clássica de fraude à Constituição”, como já decidido pelo STF[20]. Dinheiros, bens e cargos públicos estão a serviço não de pessoas, mas de atividades estatais, desde que legítimas e compatíveis com responsabilidade orçamentária e os demais princípios da boa gestão. Não podem, portanto, ser utilizados com o propósito de fraudar as urnas. Daí a inconstitucionalidade da EC n. 123/2022, decorrente da chamada PEC dos benefícios: por serem objeto de troca escusa, os auxílios nela previstos são materialmente inválidos, “por violação ao princípio da moralidade… e… por desvio de finalidade” (STF, MS 24020, DJ 12-06-2012)
Pelo exposto, como a EC 123/2022 não deriva de finalidades e interesses verdadeiramente públicos, ela padece de desvio de finalidade, sendo inconstitucional. Assim, é de todo recomendável que o STF seja acionado para, na qualidade de guardião da Constituição, sustar os efeitos da medida, fazendo-o de imediato, em prestígio à dignidade do processo eleitoral a realizar-se neste ano e à própria respeitabilidade institucional do país.
[1] Ver ADI-MC 1910, ADI-MC 2551, ADI-MC 2667, dentre inúmeros outros precedentes do STF.
[2] FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Direito constitucional: liberdade de fumar, privacidade, estado, direitos humanos e outros temas. Do amálgama entre razoabilidade e proporcionalidade na doutrina e na jurisprudência brasileiras e seu fundamento no devido processo legal substantivo. Barueri, SP: Manole, 2007.
[3] Como ensina José Afonso da Silva, “o texto não proíbe apenas emendas que expressamente declarem: ‘fica abolida a Federação ou a forma federativa de Estado’, ‘fica abolido o voto direto’, ‘passa a vigorar a concentração de poderes’, ou, ainda, ‘fica extinta a liberdade religiosa (…)’”. Mais do que isso, “a vedação atinge a pretensão de modificar qualquer elemento conceitual da Federação, ou do voto direto, ou indiretamente restringir a liberdade religiosa” (SILVA, Jose Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo.36ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2013. PP. 68-70.).
[4] DIAS DE SOUZA, Hamilton & FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Contribuições de Intervenção no Domínio Econômico e a Federação. In: Pesquisas Tributárias (nova série) n. 8. São Paulo: Revista dos Tribunais / Centro de Extensão Universitária, 2002.
[5] STF, ADI 2024/DF. Rel. Min. Sepúlveda Pertence, Plenário, DJ 22/06/2007. No mesmo sentido: HC 18178, Rel. Min. Moniz Barreto; ADIN-MC 830, Rel. Min. Moreira Alves; ADINs 926 e 939, Rel. Min. Sidney Sanches; ADIN-MC 2031, Rel. Min. Octávio Galotti; dentre inúmeros outros precedents
[6] SILVA, Jose Afonso da. Op. Cit. Ibid.
[7] Cf. STF, RE 587008/SP, Rel. Min. Dias Toffoli, Tribunal Pleno, DJ 02/02/2011.
[8] CARDOSO, Fernando Henrique. Reeleição e crises, 05/09/2020. In: opiniao.estadao.com.br. Acesso em 24/11/2021.
[9] FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Direito Constitucional: liberdade de fumar, privacidade, estado, direitos humanos e outros temas. Barueri, SP: Manole, 2007, pp. 530 e ss.
[10] LANDAU, David. Abusive constitutionalism. UC Davis Law Review, Estados Unidos, v. 47, n. 1, pp. 189-260, nov/2013.
[11] TUSHNET, Mark. Authoritarian constitutionalism. Cornell Law Review, v. 393, pp. 451-452, jan/2015.
[12] VAROL, Ozan.Stealth Authoritarianism. 100 Iowa Law Review 1673 (2015); Lewis & Clark Law School Legal Studies Research Paper No. 2014-12.
[13] BANDEIRA DE MELLO, Celso A. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 414.
[14] Cf. CRETELLA JR., José. Dos atos administrativos especiais. P. 172-187.
[15] Cf. MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. P. 164-165.
[16] Cf. GONÇALVES, William Couto. Judicialidade dos atos políticos. Disponível no link: http://www.fdv.br/sisbib/index.php/direitosegarantias/article/viewFile/12/13
[17] “(…) há desvio de poder e, em consequência, nulidade do ato, por violação da finalidade legal, tanto nos casos em que atuação administrativa é estranha a qualquer finalidade pública quanto naqueles em que o ‘fim perseguido, se bem que o interesse público, não é o fim preciso que a lei assinalava para tal ato’” (cf. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. P. 122-123).
[18] FERRAZ JR., Tércio Sampaio. IPI – estrutura e função – breve estudo sobre a finalidade constitucional dos tributos. Manuscrito do autor, datado de 03/05/2006.
[19] Cf. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. P. 122-123.
[20] Voto vencedor do Min. Sepúlveda Pertence na ADI 2.984-MC/DF – J: 04/09/2003.
Hamilton Dias de Souza é advogado, sócio fundador da Advocacia Dias de Souza e da Dias de Souza Advogados Associados e mestre e especialista em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).
Revista Consultor Jurídico, 19 de julho de 2022, 12h04
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