10 de outubro 2011 às 14H44
Regime de Competência – Aplicação do princípio da Razoabilidade
1. INTRODUÇÃO.
Alguns setores específicos da atividade econômica, por atingirem grande e diversificado público, sofrem contumaz inadimplência. Por isso, muitos agentes produtivos desses setores buscaram, no Poder Judiciário, o afastamento da tributação da contribuição para o PIS e da COFINS sobre esses créditos inadimplidos.
A questão já foi debatida no STJ, que, sob o pálio exclusivo da legislação infraconstitucional, afastou a pretensão dos contribuintes, que têm, agora, nova chance de ver analisado o tema, desta vez pelo prisma constitucional. Com efeito, o STF reconheceu a repercussão geral da tese, nos autos do RE 586.482.
Por esse motivo, o presente estudo objetiva suscitar reflexões, sob o prisma constitucional, a propósito das razões que levaram o STJ a manter a tributação sobre as vendas inadimplidas. Serão prestigiadas as hipóteses de incidência do PIS e da COFINS, constantes dos artigos 195, I, b, e 239 da CF/88, e os princípios constitucionais da razoabilidade, da capacidade contributiva, da vedação ao confisco e da isonomia (arts. 5º, LV, e 150, II e IV, da CF/88).
2. FUNDAMENTOS UTILIZADOS PELO STJ PARA MANTER A TRIBUTAÇÃO DAS VENDAS INADIMPLIDAS.
O Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do recurso especial nº. 1.029.434 (DJ 18/06/2008, Rel. Min. Luiz Fux), afirmou que a contribuição para o PIS e a COFINS incidem sobre as vendas inadimiplidas, com espeque em seis distintas razões:
1. “O inadimplemento do consumidor não equivale ao cancelamento da compra e venda, no qual ocorre o desfazimento do negócio jurídico, denotando a ausência de receita e, conseqüente, intributabilidade da operação.”
2. “Embora possa a inadimplência resultar no cancelamento da venda e conseqüente devolução da mercadoria, a ‘venda inadimplida’, caso não seja efetivamente cancelada, importa em crédito a favor do vendedor, oponível ao comprador, subsistindo o fato imponível das contribuições em comento, vale dizer, o faturamento, que se configura quando a pessoa jurídica realiza uma operação e apura o valor desta como faturado.”
3. “O posterior inadimplemento de venda a prazo não constitui condição resolutiva da hipótese de incidência das exações em tela, uma vez que o Sistema Tributário Nacional estabeleceu o regime financeiro de competência como a regra geral para apuração dos resultados da gestão patrimonial das empresas. Mediante o aludido regime financeiro, o registro dos fatos contábeis é realizado a partir de seu comprometimento e não do efetivo desembolso ou ingresso da receita correspondente.”
4. “Os pactos privados não influem na relação tributária, pela sua finalidade plurissubjetiva de satisfação das necessidades coletivas, não sendo lícito ao contribuinte repassar o ônus da inadimplência de outrem ao Fisco. É nesse sentido que o artigo 118 dispõe.”
5. “A analogia não pode implicar em exclusão do crédito tributário, porquanto criação ou extinção de tributo pertencem ao campo da legalidade.”
6. “No plano pós-positivista da Justiça Tributária, muito embora receita inadimplida economicamente não devesse propiciar tributo, é cediço que o emprego da equidade não pode dispensar o pagamento do tributo devido (§ 2º do artigo 108 do CTN).”
Discordamos, com a devida vênia, das razões adotadas pelo STJ, principalmente quando o tema é analisado sob a ótica constitucional, como será feito pelo STF. Para fins didáticos, tais fundamentos serão a seguir agrupados e enfrentados em dois tópicos distintos: questões conceituais e questões de ordem prática.
3. QUESTÕES CONCEITUAIS.
A partir dos itens supracitados, vê-se que o STJ manteve a incidência das contribuições sobre as vendas consideradas inadimplidas, em suma, porque: (i) o inadimplemento não equivale a cancelamento e a analogia não pode implicar exclusão de crédito tributário; (ii) o posterior inadimplemento de venda a prazo não constitui condição resolutiva do PIS/COFINS; (iii) o sistema tributário nacional estabeleceu o regime financeiro de competência como regra geral para apuração dos resultados da gestão patrimonial das empresas; e (iv) não seriam viáveis a análise no plano pós-positivista da Justiça Tributária e o emprego da equidade.
Quanto ao primeiro aspecto, entendemos que, de fato, inadimplemento não equivale a cancelamento de venda, embora os institutos possam ter certa proximidade. É certo que o inadimplemento pode levar ao cancelamento, mas este pode ocorrer por outras razões, que não só pelo inadimplemento. De qualquer forma, entendemos que os motivos que levam à impossibilidade de tributação de valores relacionados a venda ou prestação de serviço inadimplida não se confundem com aqueles aplicáveis para o cancelamento. Por isso, também não se trata, aqui, de analogia. Logo, essa razão apontada pelo STJ é irrelevante para esta análise.
A segunda assertiva também é desinfluente para o deslinde da questão, pois, realmente, a legislação não prevê explicitamente que o posterior inadimplemento de venda ou prestação de serviço para ser pago a prazo constitui uma condição resolutiva da incidência da contribuição para o PIS e da COFINS. Houvesse tal previsão legal, não haveria qualquer questionamento acerca da matéria, nem disputas judiciais. É justamente frente à tal ausência que os contribuintes recorreram aos tribunais.
Portanto, a verdadeira discussão consiste em saber se a Constituição Federal, ao prever a competência para tributar a receita auferida, autoriza a tributação da venda ou da prestação de serviços inadimplida.
Ou seja, não se pretende equiparar, por analogia, inadimplemento com cancelamento de venda. Entende-se que a contribuição para o PIS e a COFINS, por terem por hipótese de incidência a receita auferida, não podem ser cobradas quando a receita não se concretiza, sob pena de afronta ao suporte fático da norma de incidência. Nesse passo, não há exclusão do crédito tributário, mas inexistência deste, em virtude da ausência do fato imponível (receita auferida). Entender de forma contrária, a nosso ver e como procuraremos demonstrar, viola os artigos 195, I, b, e 239 da CF/88.
De outro lado, o regime utilizado para precisar o momento em que a receita é obtida não é absoluto e deve ser “calibrado” de acordo com o perfil do tributo em análise. De fato, mesmo para as hipóteses em que se utiliza expressamente do regime de competência, o que não é o caso do PIS e da COFINS, a legislação fornece elementos para que se proceda a ajustes. É uma maneira de respeitar a conformação constitucional do tributo e os princípios fundamentais da tributação. Se forem aplicados os parâmetros que o STF vem firmando nos últimos tempos (a partir do princípio da razoabilidade), o ônus fiscal manter-se-á dentro dos parâmetros do “plano pós-positivista da Justiça Tributária”, sem necessidade de apelar para a equidade. É o que será desenvolvido nos próximos tópicos.
3.1. CONCEITO DE RECEITA, HIPÓTESE DE INCIDÊNCIA DA CONTRIBUIÇÃO PARA O PIS E DA COFINS.
A Carta Maior estabelece que a contribuição para o PIS e a COFINS, previstas nos artigos 195, I, b, e 239 da CF/88, incidem sobre a “receita ou o faturamento”.
Ao interpretar a hipótese de incidência das contribuições em apreço, principalmente quando da declaração de inconstitucionalidade do alargamento da base de cálculo realizado pelo artigo 3º da Lei nº 9.718/98, o STF, em voto do Ministro Cesar Peluso, definiu que: “Faturamento nesse sentido, isto é, entendido como resultado econômico das operações empresariais típicas, constitui a base de cálculo da contribuição, enquanto representação quantitativa do fato econômico tributado. Noutras palavras, o fato gerador da COFINS são as operações econômicas (…)”[2].
O referido Ministro ainda afirmou, nesse precedente, que “(…) o substantivo receita designa aí o gênero, compreensivo das características ou propriedades de certa classe, abrangente de todos os valores que, recebidos pela pessoa jurídica, se lhe incorporam à esfera patrimonial. Todo valor percebido pela pessoa jurídica, a qualquer título, será, nos termos da norma, receita (gênero).”[3].
Em outra ocasião, analisando a tese relativa à imunidade das receitas de exportação, no que tange à CSLL e à CPMF, o Plenário do STF, na linha do voto da Ministra Ellen Gracie, consignou que: “Conceitualmente, receitas são os ingressos que a pessoa jurídica aufere e que se incorporam ao seu patrimônio, não se restringindo à noção de faturamento (receita percebida na realização do seu objeto ou atividade típica), mas abarcando também o produto de operações financeiras e de qualquer outra natureza, desde que revelador de capacidade contributiva”[4].
No acórdão que formalizou tal decisão, também se destaca o voto do Ministro Gilmar Mendes:
“(…) este Supremo Tribunal Federal – ao declarar a inconstitucionalidade do art. 3º, § 1º, da Lei nº 9.718/1998, que ampliara o conceito de receita bruta – reafirmou a coincidência entre os termos ‘receita bruta’ e ‘faturamento’ e sua distinção do termo ‘receita’, que abrangeria a totalidade dos ingressos pecuniários e não apenas os decorrentes da atividade-fim (venda de mercadorias ou prestação de serviço) da empresa” (destacamos).
Por fim, vale fazer referência ao voto do Ministro Marco Aurélio no RE 346.084:
“Noutras palavras, o fato gerador constitucional da COFINS são as operações econômicas que se exteriorizam no faturamento (sua base de cálculo), porque não poderia nunca corresponder ao ato de emitir faturas, coisa que, como alternativa semântica possível, seria de todo absurda, pois bastaria à empresa não emitir faturas para se furtar à tributação” (destacamos).
Essas e outras passagens demonstram que os Ministros do Supremo adotam diferentes vocábulos e expressões ao conceituar ou dar uma noção geral sobre “receita”: resultado econômico, fato econômico, operações econômicas, valores recebidos, valores incorporados à esfera patrimonial, produto, incremento patrimonial, ingresso, ingresso pecuniário, auferir, revelador de capacidade contributiva.
Ou seja, a Corte Suprema orienta-se no sentido de que o conceito de receita, para fins de incidência das contribuições, está mais ligado ao efetivo reflexo econômico da atividade empresarial, no verdadeiro auferimento de algo, e não a um ato meramente formal. A sensação transmitida pelos precedentes do STF é a de que, para este, (i) receita não é um mero registro formal ou, por extensão, mero registro contábil; (ii) receita não é algo desconectado da realidade econômica, antes, ela se notabiliza por essa natureza econômica (mais do que outros tributos, como os patrimoniais, p. ex.); (iii) até como decorrência do ponto “ii”, há preocupação no sentido de a receita ser algo que gera um efeito/reflexo na realidade fática, daí os qualificativos recebidos, auferidos, incorporados, ingressados.
O legislador infraconstitucional, ao dispor sobre a tributação da receita pela COFINS e pela contribuição para o PIS, bem compreendeu a Constituição ao prever, nas Leis nºs 9.718/98, 10.637/02 e 10.833/03, que tais contribuições incidem sobre as receitas “auferidas”. Acrescentou que a caracterização da realização do fato gerador (auferir receitas) independe da classificação contábil.
Receita, então, são valores que devem ser auferidos/recebidos, que devem ingressar de fato na empresa. A classificação contábil como receita nada representa, pois a formalidade do registro contábil não é objeto de tributação, assim como não é receita para fins de tributação pelo PIS/COFINS aquilo que seja receita para fins das ciências contábeis.
A tributação da receita caracteriza, assim, o que a doutrina chama de tipo funcional, não estrutural[5].
Tal diferenciação reside no pressuposto de incidência da norma tributária. Se esse decorrer de uma circunstância ou situação de fato, a concreção de tais circunstâncias no mundo fenomênico, por si só, originará a obrigação tributária. Tratar-se-á de tipo funcional, pois independe da natureza do negócio jurídico de que decorre.
Se, ao contrário, a hipótese de incidência prever a tributação em decorrência da realização de um ato ou negócio jurídico, tal como ocorre, por exemplo, na doação, a tributação ocorrerá assim que existentes os elementos que constituem esse ato ou negócio jurídico, no caso, a transmissão do bem gratuitamente. A doutrina classifica esse tipo como estrutural, porque a norma fiscal depende de conceitos de direito privado para a definição do fato gerador do tributo.
Os precedentes do STF não deixam dúvida de que a tributação da receita (ou do faturamento) se caracteriza como um tipo funcional (tanto que o STF, em relação ao faturamento, há muito entendeu que ele não é o ato formal de expedir fatura).
A consequencia que nos parece inevitável de tais constatações é de que receitas são valores que devem ser auferidos/recebidos. Não é concebível aceitar como matéria tributável pelo PIS/COFINS, a título de receita, um registro contábil ou um direito de recebimento. O objeto da tributação não é uma formalidade, nem uma realidade jurídica, mas, sim, uma realidade econômica, que reclama um efetivo reflexo na vida econômica da empresa.
Nesse sentido, Edmar Oliveira Andrade Filho entende que: “Tributáveis, para fins de apuração das contribuições ao PIS e Cofins, são unicamente os ingressos que sejam auferidos, assim considerados aqueles que forem efetivamente recebidos”[6]. Do mesmo modo, Marco Aurélio Greco, ao analisar a tributação pelo PIS/COFINS sobre variação cambial (registrada como receita para fins contábeis), afirma que: “(…) nos termos do artigo 3º, § 1º da Lei nº 9.718/98 atingida pelas contribuições é apenas a receita auferida, assim entendida aquela efetivamente recebida pela pessoa jurídica e não aquela relativamente à qual há mera expectativa de recebimento”[7].
Esse entendimento não é isolado na doutrina. Bem ao inverso, é comum a todos que se dedicaram ao tema. José Antonio Minatel sustenta que “(…) ‘receita auferida’, tomada como núcleo material da regra de incidência das contribuições da COFINS e do PIS, é conceito técnico e jurídico que carrega a marca da disponibilidade como sua nota determinante, (…)”[8]. Mais adiante, diz:
“Melhor explicando, a estrutura do nosso ordenamento jurídico revela que a capacidade de contribuir para a Seguridade Social não pode ser presumida do simples ato da empresa realizar vendas de mercadorias ou vendas de serviços (faturamento), ou mesmo ter direito de receber juros ou royalties por direitos temporariamente cedidos, enquanto esses negócios jurídicos não produzirem efetiva disponibilidade de recursos à empresa vendedora ou cedente dos direitos. (…) Caminhar no sentido contrário significaria trasmudar a natureza constitucional desse tributo, que passaria a incidir sobre direitos de crédito ou sobre o patrimônio (conjunto de bens, direitos e obrigações) e não mais sobre a operação econômica traduzida no conceito de receita, desígnio constitucional que vem necessariamente atrelado à disponibilidade dos recursos dele decorrente”[9].
O próprio STJ, ao apreciar a tributação da variação cambial pelo PIS e pela COFINS, entendeu: “Inexigível a cobrança do PIS e da COFINS sobre tais operações, antes da liquidação do contrato de empréstimo e sua cobertura, sob pena de haver tributação sobre receitas fictícias, porquanto, em razão das oscilações da moeda estrangeira, tais receitas podem não ser realizadas”[10].O Tribunal Superior afirmou, então, que “não é razoável entender que se possa tributar a expectativa de receita, pois, enquanto não liquidada a obrigação contraída, não se pode apurar a existência de saldo positivo no caixa da empresa”[11].
Ora, na realidade fática, a chamada “receita inadimplida” não é auferida, recebida ou ingressada pela/na empresa. Não representa um resultado econômico ou um ingresso pecuniário efetivos. Não é reveladora de uma capacidade econômica. É certo que ela gerou um registro contábil e que se baseia em um direito da empresa vendedora ou prestadora de serviços. Todavia, a formalidade da apuração contábil e a realidade jurídica não afastam o fato que, com o inadimplemento e a falta de efeito/reflexo econômico, o tipo tributário funcional da COFINS e da contribuição para o PIS não se perfez.
Desse modo, a partir da interpretação atribuída pelo STF e pela doutrina ao fato gerador das contribuições em tela, e mesmo pelo STJ, quando analisou a legalidade da tributação da variação cambial, verifica-se que as vendas e prestações de serviços inadimplidas, por não implicarem efetivo recebimento de receita, não podem ser objeto da concreção da norma de incidência dessas exações, nos termos dos artigos 195, I, ‘b’, e 239 da CF/88. Entender contrariamente significa admitir que o PIS/COFINS incide sobre direito de recebimento e não sobre receita auferida, desnaturando o critério material, isto é, o conteúdo econômico do suposto de incidência.
Ainda assim, parece causar certo desconforto a situação de a chamada “receita inadimplida” ser reconhecida como receita, de acordo com o regime de competência. Por tal razão, esse ponto merece considerações específicas.
3.2. CONSIDERAÇÕES SOBRE O REGIME DE COMPETÊNCIA.
A conceituação teórica e genérica de receita esconde a complexidade do tema, verificada quando são abordados casos práticos, em razão da variedade infindável de situações da vida real e de hipóteses limítrofes que geram dúvida sobre sua correta subsunção no conceito teórico. Nesse sentido, uma dificuldade específica diz respeito à relação entre receita e regime de competência.
Sobre o assunto, o STJ entendeu que a caracterização da receita deve ser vista a partir do “regime financeiro de competência”, estabelecido pelo Sistema Tributário Nacional “(…) como a regra geral para apuração dos resultados da gestão patrimonial das empresas”[12]. Para o STJ, o posterior inadimplemento não é relevante para a tributação pelo PIS/COFINS, porque o Sistema Tributário Nacional adota o regime de competência.
Somos de opinião de que há imprecisões nesse pensamento.
Logo de início, esclareça-se que receita e regime de competência não se identificam. Tal regime é um critério para a identificação do momento de surgimento de receitas e despesas, como outros podem ou poderiam existir. Não é um dado necessário, advindo da própria realidade como um fato inafastável. Em outras palavras, a receita não surge na vida concreta, ontologicamente, em função do regime de competência.
Vale, assim, ter presente o alerta do jurista português Vítor Faveiro que, embora direcionado ao papel da contabilidade, também é próprio para a aplicação do regime de competência: é errada a concepção que eleva esse regime ao nível de certo fetichismo ou consagração mítica[13].
Na verdade, como um critério, o regime de competência é dotado de certa arbitrariedade. Não é certo ou errado, mas sim adequado ou não em função dos fins que se tem em vista. Desse modo, para suportar a maioria dos registros contábeis normais ele é adequado (mais apropriado que o regime de caixa, p. ex.). É também razoável para fins de apuração do IRPJ/CSL.
No entanto, vale ter presente que tal regime não é absoluto mesmo para a apuração de tributos, como IRPJ e CSL, que expressamente o adotam.
Com efeito, o regime de caixa é autorizado em determinadas situações ou para algumas pessoas jurídicas (sem contar as pessoas físicas). Exemplo disso são os contribuintes que optam pelo regime de lucro presumido e que, nos termos do artigo 20 da MP nº 2.158/01, podem adotar o regime de caixa para apurar não só IRPJ e CSL, como também a COFINS e a contribuição para o PIS[14].
Nos contratos de produção de longo prazo, a legislação do IRPJ permite que os resultados sejam apurados por período de apuração, em um sistema que não se confunde com o regime de competência, nem com o regime de caixa (vide art. 407 do Dec. nº 3.000/99, o Regulamento do Imposto de Renda – RIR). Os contratos com entidades governamentais também são excetuados, sendo autorizado o diferimento da tributação do lucro até sua realização (art. 409 do RIR/99). A compra e venda, loteamento, incorporação e construção de imóveis igualmente têm sistemática própria quando há venda a prazo ou em prestações, distinta do regime de competência e do de caixa (art. 413 do RIR/99).
A legislação da COFINS e da contribuição para o PIS também traz regras expressas sobre sistemáticas próprias para reconhecer o momento em que surge a receita para certas situações, como a de contratação de construção, empreitada ou fornecimento de bens e serviços com o Poder Público[15].
Mesmo a contabilidade atualmente oferece exceções ao regime de competência. Com efeito, a chamada nova contabilidade, que passou a ser aplicável no Brasil a partir das alterações na Lei nº 6.404/76 (a Lei das S/A), realizadas pela Lei nº 11.638/07, traz tratamentos que se distanciam de tal regime (p. ex.: dívidas de longo prazo devem ser trazidas para valor presente a partir da taxa de juros esperada para o período, de modo que podem ser reconhecidas receitas ou despesas que ainda não incorreram, seja pelo regime de competência, seja pelo regime de caixa).
Portanto, não procede eventual afirmação de que, se o regime de competência levar à conclusão de que surgiu uma receita, isso não poderia deixar de ser reconhecido na órbita da apuração da base de cálculo do PIS/COFINS, tal como não poderia deixar de ser reconhecido um fato qualquer da realidade. A receita, como apurada pelo regime de competência, não é um dado de fato.
Afora isso, a legislação societária, que estabelece as regras gerais de contabilidade, ao tratar do regime de competência, no artigo 187 da Lei nº 6.404/76 (a Lei das S/A), a impõe para receitas e despesas[16]. Daí falar-se que um dos princípios básicos da contabilidade é o chamado “emparelhamento de receitas e custos”[17]. Só assim a aplicação do regime de competência é dotada de racionalidade, tornando-o apto a cumprir seu objetivo de apurar o resultado/lucro.
O emparelhamento de receitas e custos, a par de coerente, permite correções aos inconvenientes da adoção do regime de competência para as receitas. Dessa forma, se a receita é identificada de acordo com o regime de competência e depois se frustra, por ocorrer inadimplemento, há registro de perda, que anula a receita antes reconhecida. Assim, registrar o direito de recebimento como receita, para a contabilidade e o IRPJ/CSL, não causa maiores reflexos negativos, já que passível de ser revertido.
O regime de competência é apropriado, então, para aferir resultado, ou seja, receitas diminuídas dos custos, mas gera uma visão econômica distorcida quando se olha somente para um dos lados dessa equação. Adotar essa prática leva ao abandono da visão econômica, para acolher-se uma visão formal, que se importa apenas com o direito de recebimento, ainda que vazio, por ter se frustrado. José Antonio Minatel bem explica este ponto:
“Não se presta para essa apuração (receita auferida, disponível) o método que parte dos valores registrados na escrituração contábil da pessoa jurídica, pois é estruturada com base no regime de competência com finalidade de reconhecimento de resultado [receitas (-) custos], como já restou averbado. Assim, por não depender de qualquer outra relação com custos, nem de apuração de resultado, mas tão-somente da avaliação da natureza de cada valor ingressado no patrimônio da entidade, deve-se privilegiar método de quantificação que assegure serem só as receitas ingressadas (disponíveis) passíveis de inclusão na base de cálculo das contribuições, no período de apuração correspondente em que se operou o efetivo recebimento.”[18]
Percebe-se, igualmente por esta ótica, ser inapropriada a justificativa de que a adoção parcial do regime de competência na contabilidade ou para a apuração do IRPJ/CSL tornaria inevitável sua adoção para a COFINS e para a contribuição para o PIS. Antes, tal linha de argumento é equivocada. É o que alerta a Doutrina:
“Não é correto interpretar a legislação que rege a apuração e o recolhimento das contribuições ao PIS e Cofins como se estas fossem caudatárias do Imposto de Renda ou do Direito da Contabilidade. (…) De fato, o adjetivo auferida traduz a idéia de algo que é percebido, ou seja, que é transformado em dinheiro ou bem econômico equivalente, vale dizer, imediatamente conversível em dinheiro. Receita auferida é, portanto, um ingresso patrimonial aumentativo juridicamente qualificado; é aquele em que a prestação já está satisfeita. Quisesse a lei tomar o termo receita com a significação que ele tem, por exemplo, no contexto da legislação do imposto de renda, não teria feito a qualificação que ostensivamente fez e vem confirmando ao longo do tempo.”[19]Por fim, alegar que deve ser mantida a tributação da receita inadimplida, porque esta é considerada receita de acordo com o regime de competência, é incidir em inversão de valores.
De fato, ao final, tal razão significa que, quando o direito a recebimento de valores é desrespeitado por haver inadimplemento, a despeito de não existir receita real/verdadeira, a tributação deveria ser mantida, porque o regime de competência imporia o reconhecimento de receita. Em outras palavras, embora não existisse efetiva receita a justificar a competência constitucional de tributar, o regime contábil determinaria a tributação. Pouco importaria a tributação de fato destituído de qualquer signo representativo de riqueza, como pressuposto pela Constituição, pois o “soberano” regime de competência apontaria no sentido oposto. Enfim, aceitar a tributação de venda ou prestação de serviços inadimplida é colocar o regime de competência em posição superior à Constituição Federal e a seus princípios e normas.
Bem ao inverso, porém, certo ato deve ser tributado porque a Constituição, seus parâmetros e seu sistema reconhecem nele o auferimento de receita e não porque o regime de competência reconhece uma receita.
Isso tudo não significa que o uso do regime de competência esteja vetado para aferir a existência de receita para fins do PIS/COFINS. O que não pode ocorrer é sua utilização para legitimar tributação não autorizada pela Carta Maior. Para tanto, como explicou o STF em outro precedente, também a propósito dos efeitos da adoção do regime de competência na tributação, deve existir “(…) mecanismo de calibração da carga tributária na hipótese de o valor econômico do negócio não se realizar”[20].
Tal calibração se dá quando o regime de competência é acolhido, mas, existindo o inadimplemento, o valor antes incluído na base de cálculo dos tributos, mas não recebido, é excluído da mesma base. Os critérios para tanto, vale registrar, já existem na própria legislação, no artigo 9º da Lei nº 9.430/96.
Se não for aceita a possibilidade de calibração da carga tributária, em razão do critério de apuração de receita, haverá tributação não de receita, mas de registro contábil ou de direito de recebimento, como tal precário, não definitivo, e que pode significar manifestação econômica negativa. Haverá tributação sobre recursos não auferidos/recebidos, o que não pode ser permitido apenas com fundamento na vaga afirmação de que o regime de competência é “a regra geral para apuração dos resultados da gestão patrimonial das empresas”[21] [22].
Nem se diga que, quando a Constituição Federal autorizou a tributação de receita, autorizou o legislador a acolher qualquer conceito de receita existente, ou adotar qualquer regime para orientar o reconhecimento de receitas, inclusive o regime de competência. Adotar o regime de competência sem qualquer “calibração” contraria o princípio da razoabilidade, como será visto a seguir, com base nas manifestações do Supremo Tribunal Federal.
3.3. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE AO PESENTE TEMA. OFENSA AOS PRINCÍPIOS TRIBUTÁRIOS DO NÃO-CONFISCO, DA INONOMIA E DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA(ARTS. 145, § 1º, 150, I e IV, DA CF/88).
A razoabilidade impõe limite material à ação normativa do Legislativo, de modo a conter eventuais excessos do Poder Público e a distorção e subversão dos fins da função estatal. Desse modo, o exercício de cada competência legislativa é limitado pela razoabilidade. O Legislativo não pode expedir normas relacionadas a temas de sua própria competência de forma imoderada, gerando situações de distorção e subvertendo os fins que regem a atuação estatal.
Portanto, embora a Constituição estabeleça competência ao Legislativo para expedir normas sobre certo tema, tal poder não é ilimitado. É o que explica o STF:
“A essência do substantive due process of law reside na necessidade de conter os excessos do Poder, quando o Estado edita legislação que se revele destituída do necessário coeficiente de razoabilidade.
Isso significa, dentro da perspectiva da extensão da teoria do desvio de poder ao plano das atividades legislativas do Estado, que este não dispõe de competência para legislar ilimitadamente, de forma imoderada e irresponsável, gerando, com o seu comportamento institucional, situações normativas de absoluta distorção e, até mesmo, de subversão dos fins que regem o desempenho da função estatal.
Daí a advertênciade CAIO TÁCITO (RDP 100/11-12), que, ao relembrar a lição pioneira de SANTI ROMANO, destaca que a figura do desvio de poder legislativo impõe o reconhecimento de que, mesmo nas hipóteses de seu discricionário exercício, a atividade legislativa deve desenvolver-se em estrita relação de harmonia com o interesse jurídico.
A jurisprudência constitucionaldo Supremo Tribunal Federal, bem por isso, tem censurado a validade jurídica de atos estatais, que, desconsiderando as limitações que incidem sobre o poder normativo do Estado, veiculam prescrições que ofedem os padrões de razoabilidade e que se revelam destituídos de causa legítima, exteriorizando abusos inaceitáveis e institucionalizando agravos inúteis e nocivos aos direitos das pessoas (RTJ 160/140-141, Rel. Min. CELSO DE MELLO – ADI 1.063/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.).”[23]
Também a competência legislativa para instituir tributos e para estabelecer regras sobre eles submete-se ao princípio da razoabilidade/proporcionalidade, como afirma a Corte Constitucional:
“A prerrogativa institucional de tributar, que o ordenamento positivo reconhece ao Estado, não lhe outorga o poder de suprimir (ou de inviabilizar) direitos de caráter fundamental constitucionalmente assegurados ao contribuinte. É que este dispõe, nos termos da própria Carta Política, de um sistema de proteção destinado a ampará-lo contra eventuais excessos cometidos pelo poder tributante ou, ainda, contra exigências irrazoáveis veiculadas em diplomas normativos editados pelo Estado”[24].
A competência constitucional tributária para instituir tributos e estabelecer regras para onerar a receita, por meio da COFINS e da contribuição para o PIS, igualmente submete-se ao princípio da razoabilidade. Portanto, o juízo sobre a legitimidade de certo tipo de tributação não pode se limitar apenas a indagar se foi adotado um conceito existente de receita, ainda que de uso corrente na contabilidade e para a apuração de tributos que oneram o resultado (IRPJ e CSL). A Constituição impõe que se vá além disso, submetendo a tributação aos testes da razoabilidade, que possibilita, inclusive, a verificação do correto exercício de poder discricionário[25].
Nessa ótica, a questão que se põe é a seguinte: ao tributar a receita identificada de acordo com o regime de competência, sem entender excetuados os casos de inadimplemento, não se estará tributando de forma imoderada, gerando situação distorcida e subvertendo os fins da norma de incidência?
A resposta parece ser positiva. A premissa da atividade de tributação é de que, por meio da imposição sobre a receita, seja onerado um tipo de signo presuntivo de riqueza, uma manifestação econômica positiva. Esta manifestação é valorizada em função de seu tamanho: quanto mais relevante economicamente, maior será a tributação. De outro lado, não se tributam fatos sem relevância econômica ou, ainda pior, um fato de relevância econômica negativa. Não faz sentido tributar uma redução da capacidade econômica, como uma perda patrimonial, um prejuízo. Fazê-lo, ainda que a título de estar sendo exercida uma competência legislativa tributária, é contrariar a razoabilidade, já que os fins a que se submete a atuação estatal, na seara tributária, serão subvertidos/distorcidos.
É justamente essa situação que ocorre ao se tributar a receita, a partir da adoção do regime de competência, quando há inadimplência. A título de onerar a receita, uma manifestação econômica positiva, tributa-se uma perda patrimonial, uma manifestação econômica negativa. Com efeito, a mercadoria foi comprada ou produzida ou o serviço foi prestado, envolvendo custos para tanto, sem qualquer contraprestação. Há, assim, perda econômica e sobre ela ainda exige-se PIS/COFINS.
Perde-se, com isso, a coerência lógica que deve existir entre o pressuposto da tributação e o efetivo ônus tributário, o que a Constituição não permite. É o que explica a doutrina nacional:
“Os fatos individuais que devem ser considerados têm que estar logicamente vinculados ao atingimento do objeto revelador do pressuposto, pois só podem ser tidos como hipóteses de incidência à medida em que sejam fatos signos presuntivos do objeto considerado, isto é, à medida em que de seu conjunto possa ser descoberto o referido objeto. Um determinado fato, que não se vocacione a ser elemento revelador do pressuposto, (…) não pode influir em sua determinação, sob pena de ilogicidade.”[26]
Tributar mero registro contábil realizado de acordo com o regime de competência é infringir as bordas da razoabilidade e perder a coerência lógica que deve existir entre o pressuposto constitucional dos tributos (COFINS e contribuição ao PIS) e a efetiva tributação. A Constituição autorizou a tributação da receita, pela manifestação econômica que ela carrega, não um registro contábil ou um direito vazio de conteúdo econômico e que significam, de fato, uma perda patrimonial.
Percebe-se, então, que o imperativo da razoabilidade permite a realização do que foi chamado pelo STJ de “plano pós-positivista da Justiça Tributária”[27]. Na ocasião, aquele Tribunal Superior chegou a afirmar que economicamente o inadimplemento não deveria propiciar tributo, o que, todavia, não afastava, segundo se entendeu, o caráter cogente do regime de competência. O Tribunal apropriado para tal discussão realmente não era o STJ, mas, sim, o STF, em razão da exigência constitucional da razoabilidade/proporcionalidade.
Ocorrendo a frustração de receita, a irrazoabilidade da tributação também é evidenciada em razão da agressão aos princípios da vedação ao confisco, da isonomia e da capacidade contributiva, fins que devem ser preservados pelo axioma da razoabilidade.
Relativamente à vedação ao confisco, o STF consignou que a norma do artigo 150, IV, da Constituição Federal, “impede o Poder Público de utilizar tributos – quaisquer tributos, como o são as contribuições em causa – com efeito confiscatório”[28], isto é, “o poder de tributar não pode chegar à desmedida do poder de destruir”[29]. Tal princípio veda a incidência de tributo sobre o decréscimo patrimonial, entendimento corroborado pela Doutrina[30].
Na situação em análise, há tributação com efeitos econômicos de confisco, pois o contribuinte não recebe pela mercadoria ou serviço fornecidos, o que implica prejuízo relativamente a todos os custos de produção e prestação, e, ainda assim, terá que desembolsar ao Poder Público um valor de tributo[31].
Acresce que a tributação das vendas e prestações de serviços inadimplidas viola a isonomia. Como se sabe, o princípio da igualdade “consiste em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais”, ou seja, visa “desigualar situações díspares, conferindo-lhes tratamentos correspondentes à diversidade que encerram”[32].
A prevalecer a tributação das vendas inadimplidas, será concedido tratamento idêntico ao contribuinte que efetivamente auferiu receita com a venda de mercadoria ou prestação de serviço e aquele que não obteve a contraprestação pela realização de sua atividade empresarial. De outro lado, haverá tratamento discrepante em função de o contribuinte submeter-se ou não ao regime de competência. Assim, uma empresa que possa optar pelo regime de lucro presumido e que utilize o regime de caixa será menos tributada que outra rigorosamente na mesma situação econômica, mas que não tenha tal faculdade. A divergência de ônus fiscal não ocorrerá em função do conteúdo econômico do fato ou da capacidade contributiva, mas por outras razões, ilegítimas para tanto.
Dessa maneira, seria contrariado o entendimento de que “a interpretação de qualquer texto legal em matéria tributária à luz do princípio da igualdade dar-se-á com a integração do chamado princípio de capacidade contributiva, que determina a medida concreta da igualdade nessa área”[33].
Por isso, o STF deve adotar interpretação conforme aos artigos 195, I, ‘b’, e 239 da CF/88, analisados sistematicamente com os artigos 145, § 1º, 150, I e IV, da CF/88, para assentar que a determinação constitucional de tributação da “receita” deve ser entendida de modo a impossibilitar que alcance valores que, ainda que registrados na contabilidade como receita, em função do regime de competência, se frustraram e não chegaram a se confirmar como receita auferida.
4. QUESTÕES DE ORDEM PRÁTICA. INEXISTÊNCIA DE REPASSE DE ÔNUS AO FISCO.
O STJ também manteve a incidência da contribuição para o PIS e da COFINS sobre valores inadimplidos em razão de argumentos de ordem mais prática. O objetivo pareceu ser o de tentar demonstrar que o resultado de fato da tributação em questão não seria inadequado. Afirmou-se, então, que: (i) a venda ou prestação de serviço inadimplida, caso não cancelada, importaria em crédito a favor do vendedor ou prestador de serviço, oponível ao comprador, o que justificaria a incidência tributária, e (ii) não seria lícito ao contribuinte repassar o ônus da inadimplência de outrem à Administração Fiscal, o que alegadamente ocorreria caso o PIS/COFINS não fosse devido.
Entretanto, quando analisadas as razões suscitadas pelo STJ, verifica-se que as condições de fato, na realidade, negam esses próprios argumentos.
O crédito ao vendedor pode ser de difícil ou impossível execução. Podem ocorrer situações – como com contas de telefone – em que os créditos são de valores reduzidos e os custos de cobrança seriam maiores que o valor do próprio crédito. Muitas vezes (como frequentemente ocorre com as empresas de telefonia), usuários novos, de má-fé, fornecem dados não verdadeiros, de modo a utilizar os serviços durante algum tempo, mas tornando inviável sua localização para posterior cobrança. Além disso, ainda que seja teoricamente possível alienar parte de tais créditos a terceiros, como a instituições financeiras, tal prática representará inevitavelmente um valor inferior ao do crédito, frente ao desconto (deságio) que seria imposto. Nesta situação haveria receita, mas não seria no valor integral do direito de recebimento. Assim, de nada vale um direito de recebimento por si só.
Portanto, a afirmação de fato constante do julgado do STJ demonstra, na verdade e com a devida vênia, um desconhecimento da realidade e, a título de argumentar com base nos fatos, prende-se a uma visão teórica desconectada da realidade. Tributa-se, assim, um signo de riqueza teórico, mas não real, isto é, tributa-se um direito de recebimento que não necessariamente é economicamente exeqüível. Há, assim, na verdade, um retorno aos temas antes debatidos e não uma razão efetivamente nova. Todavia, conforme visto nos subtópicos anteriores, o critério material da hipótese de incidência da contribuição para o PIS e da COFINS não é a existência de direito de recebimento, mas o auferimento de receita com a venda de mercadoria e/ou prestação de serviços.
É igualmente improcedente, em nossa opinião, a alegação de que o contribuinte estaria repassando o ônus da inadimplência à Administração Fiscal. Na realidade, a receita potencial mas frustrada, isto é, não auferida, não é objeto de ônus adicional de PIS/COFINS. A empresa não repassa qualquer ônus para o Poder Público. Procederia dessa forma se pudesse cobrar do Estado o valor inadimplido ou, ao menos, os custos com o bem vendido ou o serviço prestado, que não geraram receita. Nessa hipótese, sim, haveria repasse de ônus para o Fisco.
Na hipótese de se afastar a tributação sobre o inadimplemento, o contribuinte, ou seja, a empresa continuará a correr os riscos de sua atividade. Assumirá os custos e despesas para produzir, adquirir e vender mercadorias ou para prestar serviços (todos os custos e despesas como matérias-prima, produtos intermediários, salários de empregados, remunerações de terceiros, despesas de transporte etc.). O contribuinte apenas não terá que arcar com as contribuições, sobre receita não real.
Bem ao inverso do que concluiu o STJ, a não-tributação pelo PIS/COFINS do inadimplemento apenas evita ônus fiscal sobre perda patrimonial, sobre signo negativo de capacidade econômica. Já a tributação em tal situação é prática imoral do Estado, pois representa o Estado locupletar-se sobre o decréscimo patrimonial do particular. É tributar, impor ônus adicional ao prejuízo alheio, o que agride, como antes visto, as cláusulas constitucionais de vedação ao confisco,de tratamento isonômico e do atendimento à capacidade contributiva, revelando a irrazoabilidade da incidência.
5. CONCLUSÃO.
Diante do que foi abordado no presente estudo, pode-se concluir que:
(i) A hipótese de incidência da contribuições para o PIS e da COFINS (arts. 195, I, b, e 239 da CF/88), na linha da jurisprudência da Corte Suprema, reflete apenas a receita ou o faturamento efetivamente realizados economicamente. Outro entendimento significa admitir que as contribuições incidam sobre registros contábeis ou direitos de crédito e não sobre valores efetivamente auferidos. Em tal hipótese, serão desnaturados o critério material previsto constitucionalmente e a característica funcional do pressuposto de incidência desses tributos.
(ii) Receita e regime de competência não se identificam. É errada a concepção de que a adoção do regime de competência pela contabilidade e para o IRPJ/CSL tornaria inevitável sua utilização para apuração do PIS/COFINS. Se o legislador infraconstitucional desejar adotar esse regime, deve fazê-lo de modo a “calibrar” seus efeitos, como decidido pelo STF em precedente a propósito do acolhimento do regime de competência para fins fiscais.
(iii) A competência legislativa para instituir tributos e estabelecer regras para onerar a receita, por meio da COFINS e da contribuição para o PIS, é igualmente limitada pelo princípio da razoabilidade. Desse modo, tributar valores não realizados economicamente, apenas porque são qualificados como receita nos termos do regime de competência, implica inversão de fundamentos: é colocar o critério contábil em posição superior ao das normas constitucionais de imposição tributária, subvertendo todo o sistema.
(iv) A tributação das vendas inadimplidas afronta: (a) o princípio da vedação ao confisco (art. 150, IV da CF/88), que veda a incidência tributária sobre o decréscimo patrimonial; (b) o princípio da isonomia, pois será imposto o mesmo ônus ao contribuinte que, de fato, teve acréscimo patrimonial (recebeu pelas suas vendas/serviços) e aquele que, ao contrário, vivencia decréscimo patrimonial; e (c) ao princípio da capacidade contributiva, o qual, entre outras funções, pauta a atividade tributária, de modo a orientar o montante do ônus fiscal em função do conteúdo econômico dos fatos tributários.
(v) As razões de cunho prático apresentadas pelo STJ para fundamentar sua decisão, em nossa opinião, representam um retorno aos fundamentos teóricos antes debatidos e são negadas pela realidade. Reconhecer a não tributação pelo PIS/COFINS de valores inadimplidos não caracteriza repasse de ônus pelo contribuinte/empresa à Administração Fiscal. Bem ao inverso, aceitar a tributação sobre o inadimplimento, fato econômico negativo, significa autorizar um locupletamento indevido pelo Poder Público.
O presente artigo “no prelo” comporá o livro da ABETEL (Associação Brasileira das Empresas de Telefonia), previsto para ser publicado em 12/12/2012.
[1]NOTA DOS AUTORES: O presente artigo foi escrito em outubro de 2011, antes, portanto, da apreciação da matéria pelo Supremo Tribunal Federal nos autos do RE 586.482 (DJ 19/06/12). Em que pese ter o STF entendido que as vendas inadimplidas deveriam ser tributadas pelas contribuições em apreço, o presente artigo ainda se mantém atual, por demonstrar a injustiça da incidência, sob a ótica dos princípios da razoabilidade, da vedação ao confisco, da isonomia, da capacidade contributiva e, também, pelo fato de ser o regime de competência um critério para a aferição da receita sem, no entanto, se confundir com esta, o que impõe a calibração dos efeitos desse critério sempre que houver o risco de a incidência tributária vir a ocorrer sobre fato destituído de conteúdo econômico positivo.
[2]RE 390.840/MG – Rel. Min. Marco Aurélio – DJ: 15/08/2006 – negritamos e sublinhamos, itálico do original.
[3]RE 390.840/MG – Rel. Min. Marco Aurélio – DJ: 15/08/2006 – negritamos e sublinhamos, itálico do original.
[4]RE 474.132, Rel. Min Gilmar Mendes, DJ 01.12.10, p. 59 – voto Ellen Gracie vencedor – destacamos.
[5]A distinção entre fatos geradores funcionais e estruturais corresponde à adotada na doutrina alemã entre Rechtsverkehrsteuer e Wirstschaftsverkehrsteuern Ccfr. WURLOD, Forme juridique et réalité économique dans l’application des lois fiscals, Lausanne, 1947, apud Alberto Xavier, “Tipicidade da Tributação, Simulação e Norma Antielisiva”, Editora Dialética). A propósito, XAVIER: “tipos estruturais são aqueles em que a norma jurídica utiliza para descrever a sua hipótese conceitos de atos ou negócios jurídicos de Direito Privado sem alusão expressa aos efeitos econômicos por eles produzidos; tipos funcionais são aqueles em que a hipótese da norma tributária é caracterizada pela obtenção de um certo fenômeno econômico, independentemente da natureza jurídica dos atos ou negócios que para ele concorrem”. (XAVIER, Alberto, ob. Cit., p. 35).
No mesmo sentido, GRECO: “pode estar descrevendo um evento da realidade, ou um fato de cunho econômico, sem que isto corresponde a um contrato ou a um ato jurídico específico. (….). Podem existir normas atributivas que se refiram a negócios jurídicos, como, por exemplo, o que a doutrina e a jurisprudência construíram para o ICMS (atos translativos de propriedade ou posse). Porém, quando se prevê ´renda’, esta não é um ato ou negócio jurídico, renda é um fenômeno, um fato ou um efeito.” (GRECO, Marco Aurélio, Planejamento tributário. Dialética, 2004, p. 137).
[6]ANDRADE FILHO, Edmar Oliveira. PIS e COFINS: conceitos normativos de faturamento e receita. São Paulo: MP Editora, 2008., p. 48.
[7]RDDT 50/148.
[8]MINATEL, José Antônio. Conteúdo do conceito de receita e regime jurídico para sua tributação. São Paulo: MP Editora, 2005, p. 195.
[9]Ob. cit., p. 196.
[10]REsp 872.492
[11]REsp 898.372
[12]REsp nº 1.029.434-CE.
[13]FAVEIRO, Vítor. O Estatuto do contribuinte: a pessoa do contribuinte no Estado Social de Direito. Coimbra: Coimbra Editora, 2002,p.506.
[14]MP nº. 2.158/01:
Art. 20. As pessoas jurídicas submetidas ao regime de tributação com base no lucro presumido somente poderão adotar o regime de caixa, para fins da incidência da contribuição para o PIS/PASEP e COFINS, na hipótese de adotar o mesmo critério em relação ao imposto de renda das pessoas jurídicas e da CSLL.
[15] Lei nº. 9.718/98:
“Art. 7ºNo caso de construção por empreitada ou de fornecimento a preço predeterminado de bens ou serviços, contratados por pessoa jurídica de direito público, empresa pública, sociedade de economia mista ou suas subsidiárias, o pagamento das contribuições de que trata o art. 2º desta Medida Provisória poderá ser diferido, pelo contratado, até a data do recebimento do preço.
Parágrafo único. A utilização do tratamento tributário previsto no caput deste artigo é facultada ao subempreiteiro ou subcontratado, na hipótese de subcontratação parcial ou total da empreitada ou do fornecimento.”
Lei nº. 10.833/03:
“Art. 7º No caso de construção por empreitada ou de fornecimento a preço predeterminado de bens ou serviços, contratados por pessoa jurídica de direito público, empresa pública, sociedade de economia mista ou suas subsidiárias, a pessoa jurídica optante pelo regime previsto no art. 7º da Lei nº 9.718, de 27 de novembro de 1998, somente poderá utilizar o crédito a ser descontado na forma do art. 3º, na proporção das receitas efetivamente recebidas.
Art. 8º A contribuição incidente na hipótese de contratos, com prazo de execução superior a 1 (um) ano, de construção por empreitada ou de fornecimento, a preço predeterminado, de bens ou serviços a serem produzidos, será calculada sobre a receita apurada de acordo com os critérios de reconhecimento adotados pela legislação do imposto de renda, previstos para a espécie de operação.
Parágrafo único. O crédito a ser descontado na forma do art. 3ºsomente poderá ser utilizado na proporção das receitas reconhecidas nos termos do caput.”
[16]Lei nº. 6404/76:
“Art. 187. A demonstração do resultado do exercício discriminará: (…)
§ 1º Na determinação do resultado do exercício serão computados: a) as receitas e os rendimentos ganhos no período, independentemente da sua realização em moeda; e b) os custos, despesas, encargos e perdas, pagos ou incorridos, correspondentes a essas receitas e rendimentos” (art. 187).
[17]Bulhões Pedreira, “Finanças e demonstrações financeiras da Companhia”, Forense, 1989, p. 489 e 491. Diz o autor: “O princípio do emparelhamento prevalece seja qual for o critério adotado quanto ao momento do registro das receitas nas contas de resultado, porque sua inobservância torna as demonstrações do resultado imprestáveis como fontes de informações sobre a rentabilidade da sociedade empresária” (p. 491).
[18]Ob. cit., p. 1999.
[19]ANDRADE FILHO, Edmar Oliveira. Ob. Cit.,p. 57.
[20]“a forma de tributação discutida pelo agravante segue as regras do regime de competência, isto é, os efeitos empresariais e tributários são reconhecidos no momento em que há a formação da relação jurídica obrigacional, ainda que a eficácia social mostre-se evento futuro e sujeito à frustração. Desde que exista mecanismo de calibração da carga tributária na hipótese de o valor econômico do negócio não se realizar, inexiste violação apriorística do conceito constitucional de renda. Como há tal mecanismo neste caso, a questão passa a ser a eficiência das hipóteses e das condicionantes de dedução para calibrar a carga tributária. Porém, como a matéria foi abordada apenas por amostragem, não há elementos suficientes para reconhecer a invalidade de toda a sistemática”(Agrg – RE 422.944, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJ 31.03.11 – destacamos e negritamos)
[21]REsp nº. 1029434, DJ 18/06/2008, Rel. Min. Luiz Fux,
[22]Nem se alegue que o entendimento do STF mencionado, no AgRg no RE 422.944, não seria aplicável às contribuições, por tratar de IRPJ, isto é, renda, enquanto na hipótese do PIS e da COFINS se trata de receita. Renda é a receita, diminuída dos custos e das despesas que levam à produção da mercadoria ou à prestação do serviço (salários, insumos etc). Ocorre que a calibração a que se refere o precedente não se dá no que se refere aos custos e despesas, mas, justamente, sobre a hipótese de a receita se frustrar.
[23]ADI 2551, Rel. Min. Celso de Mello (negritos do original, sublinhados nossos).
[24]ADI 2551 MC-QO, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 20.04.2006.
[25]Entende o STF que a “(…) prerrogativa de legislar outorgada ao Estado constitui atribuição jurídica essencialmente limitada, ainda que o momento de abstrata instauração normativa possa repousar em juízo meramente político ou discricionário do legislador” (RTJ 176/578-579 – negritamos).
[26]SOUZA, Hamilton Dias de, “A competência tributária e seu exercício: a racionalidade como limitação ao poder de tributar”, in “”Estudos sobre o imposto de renda”, p. 264 e 265.
[27]REsp nº. 1029434, DJ 18/06/2008, Rel. Min. Luiz Fux,
[28]ADI 2010 MC/DF, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 12/04/2002, p. 159.
[29]RE 18.331-SP, Rel. Min. Orosimbo Nonato (RF 145/164 – RDA 34/132). Citado, ainda, nas ADI 2.010 e 2.551-MC-QO. Interpretação das palavras do Justice Oliver Wendell Holmes Jr. (“The power to tax is not the Power to destroy while this Court sits”) – “panhandle Oil Co. v State of Mississippi Ex Rel. Knox” (277 U.A. 218)
Da mesma forma se manifestou o Ministro Ilmar Galvão, para quem “o art. 150, IV, da Carta da República veda a utilização de tributo com efeito confiscatório. Ou seja, a atividade fiscal do Estado não pode ser onerosa a ponto de afetar a propriedade do contribuinte, confiscando-a a título de tributação”. (ADI 551, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ 14.02.2003, p. 42).
[30]DERZI, Misabel Abreu Machado: “[A vedação ao confisco] proíbe a instituição de tributos excessivamente onerosos, que acarretem a perda do patrimônio da propriedade, como aconteceria em caso de confisco Tecnicamente, tributo e confisco não se confundem, mas o que no art. 150, IV, se veda é que a lei regule o tributo de modo que ele gere os mesmos efeitos econômicos que o confisco geraria” (In BALEEIRO, Aliomar, Limitações constitucionais ao poder de tributar. 7ª Ed. Ver. E compl. À luz da Constituição de 1988 até a Emenda Constitucional nº 10/1996. Rio de Janeiro, Forense, 1999, p. 573).
[31]Ao tratar de situações como essa, o STF consignou o seguinte, verbis:
“o Poder Público, especialmente em sede de tributação (as contribuições de seguridade social revestem-se de caráter tributário), não pode agir imoderadamente, pois a atividade estatal acha-se essencialmente condicionada pelo princípio da razoabilidade. Daí a advertência de Sacha Calmon Navarro Coêlho (‘Curso de Direito Tributário brasileiro’, p. 253, item n. 6.28, 1999, Foresne), cujo magistério – ao ressaltar que a vedação do confisco atua como limitação constitucional ao poder de graduar a tributação – enfatiza que, em sede de estrita fiscalidade ‘o princípio do não-confisco tem sido utilizado também para fixar padrões ou patamares de tributação tidos por suportáveis (…) ao sabor das conjunturas mais ou menos adversas que estejam se passando. Neste sentido, o princípio do não-confisco se nos parece mais com um princípio da razoabilidade da tributação…’”. (ADI 2010 MC/DF, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 12/04/2002, p. 165)
[32]RE 231.924, Red. p/ acórdão Ministro Ricardo Lewandowski, DJ 21.06.2011, p. 110/111
[33]FERRAZ, Roberto, O princípio da Capacidade Contributiva na Tributação Ambientalmente Orientada, in Princípios e Limites da Tributação 2 – Ob. Cit., p. 529. Apesar de a norma constitucional tratar expressamente de “impostos”, o STF já o aplicou às taxas (RE 177835, Relator Min. CARLOS VELLOSO, TRIBUNAL PLENO, DJ 25-05-200), não havendo motivo, segundo inclusive alerta a Doutrina (FERRAZ, Roberto, Ob. Cit., p. 536), para também aplicá-lo às contribuições sociais, principalmente ao PIS/COFINS, que incidem sobre a receita.
Jimir Doniak Jr.
Advogado em São Paulo e Brasília
Daniel Correa Szelbracikowski
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