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16 de dezembro 2020 às 9H58

Precatório nasce de geração espontânea?

Recentemente, o ministro Paulo Guedes participou do seminário “Diálogo entre os Poderes pela retomada econômica do País”. Na ocasião, comentou sobre o crescimento do passivo de precatórios devidos pelo Poder Público, associando ao que chamou de “indústria de precatórios”. Sugeriu que “o Brasil vai ser destruído por uma indústria espoliativa, predatória” e que “alguém tá fazendo alguma besteira em algum lugar (…) tem alguém transformando isso em indústria”.

No âmbito de um Estado Democrático de Direito (art. 1º da CF) que respeite a Separação de Poderes (art. 2º da CF) e a missão do Poder Judiciário, cogitar de uma “indústria de precatórios” não parece compatível com a definição constitucional de precatório (art. 100 da CF) e nem com sua realidade de expedição e pagamento.
Vejamos:

Precatório é ordem judicial de pagamento e não indústria

Previsto desde a Constituição Federal de 1934, precatório consiste em uma ordem judicial de pagamento endereçada ao Poder Público após regular processo judicial que reconheça, em sentença transitada em julgado, o dever do Estado de pagar soma de dinheiro ao jurisdicionado lesado. Expedido o requisitório, é inconcebível que o Poder Executivo inobserve a ordem emanada do Poder Judiciário.

No julgamento das ADIs 4357 e 4425, o ministro Luiz Fux asseverou que “por meio da atividade executiva, o Estado cumpre a promessa do legislador de que, diante da lesão, o Judiciário deve atuar prontamente de sorte a repará-la a tal ponto que a parte lesada não sofra as consequências do inadimplemento. (…). Em um autêntico Estado de Direito não há alternativa: pronunciamentos judiciais devem ser cumpridos por quem quer que seja, inclusive pelo Estado. O desrespeito à autoridade do Poder Judiciário representa escárnio à nobre função jurisdicional, (…)”[1].

Nesse contexto, dizer que há uma “indústria de precatórios” seria o mesmo que dizer que há uma indústria de ordens de pagamento emitidas pelo Poder Judiciário no exercício regular de sua missão constitucional e após observância do devido processo legal (CF/88, art. 5º, LIV), o que não é razoável.

Na realidade, o que pode roubar o “futuro dos nossos filhos e netos” (cf. disse o min. Paulo Guedes) é a eventual atitude do Estado de protelar o cumprimento de sua obrigação constitucional de pagar precatórios.

Lesões a direitos originam precatórios

O ministro Guedes insinuou que o elevado estoque de precatórios decorreria do fato de alguém estar “fazendo alguma besteira em algum lugar”. O ministro tem alguma razão, porém é preciso apontar que a “besteira” original vem do próprio Estado/Poder Público.

Os precatórios possuem volumes consideráveis porque o Estado praticou (no passado) e continua a praticar (no presente) atos arbitrários e ilegais em desfavor dos particulares.

Estes (muitos dos quais pensionistas, servidores públicos, empresas e pessoas físicas em geral) não têm alternativa frente à violação de seus direitos, senão acionar o judiciário em busca da reparação do dano sofrido.

Se esse direito à reparação é reconhecido pelo Judiciário em sentença transitada em julgado, a consequência jurídica necessária e irrecusável é a expedição de precatório nos termos dos arts. 1º, 2º, 5º, LIV, XXXVI, 100, 5º, da Constituição Federal.

Consoante um de nós já destacou oportunamente, o caminho para a expedição de um precatório é longo e complexo, verdadeira via crucis para o jurisdicionado:

“Primeiro, é preciso litigar no âmbito de uma ação de conhecimento que certificará a existência do direito. Nessa ação, o Estado costuma lançar mão de todos os recursos disponíveis no sistema processual brasileiro (…). Segundo, com o trânsito em julgado da sentença que reconhece o direito, o credor inicia a execução do julgado. Nesse momento, usualmente o Estado lança mão de nova impugnação à execução (antigos embargos à execução) que gera nova sentença e novos recursos que percorrem, novamente, todas as instâncias do Judiciário. Terceiro, em paralelo à impugnação na execução, há inúmeros casos em que o poder público também ajuíza ações rescisórias (…) Quarto, há casos de ajuizamento de uma segunda ação rescisória pelo Estado contra o decidido nas execuções. (…) Apenas depois do trânsito em julgado da sentença[2] no âmbito da execução – e, quando houver, da decisão na ação rescisória – é que os precatórios (ordens de pagamento)
são finalmente expedidos. Essa tramitação judicial costuma demorar décadas. Muitos credores nem sequer conseguem viver a ponto de verem seus processos julgados definitivamente com a expedição dos respectivos precatórios”[3].

De acordo com dados do Conselho da Justiça Federal – CJF, relativos ao exercício financeiro de 2020, os 31,1 bilhões de precatórios abarcaram 103.175 processos e 158.879 beneficiários, sendo que 65.969 processos e 88.228 beneficiários eram de benefícios previdenciários e assistenciais.

Ou seja, 64% dos processos abarcados pelo passivo de precatórios se referiam a débitos de natureza alimentícia[4]. Dos 15,7 bilhões destinados ao pagamento das RPV’s, aproximadamente 12,9 bilhões eram de benefícios previdenciários e assistenciais.

Ou seja, 82% do passivo de RPV’s eram de débitos de natureza alimentícia. Semelhante é o cenário referente ao exercício financeiro de 2021[5] em que 62% dos precatórios[6] e 80% dos RPV’s[7] correspondem a débitos de natureza alimentícia.

Como se vê, precatório não nasce de geração espontânea e sim tem origem em atos estatais violadores de direitos legítimos dos cidadãos. Para agravar o quadro, a maior parte da dívida de precatórios e RPV’s da União corresponde a débitos de natureza alimentícia (§ 1º do artigo 100 da CF/88), de sorte que o Estado aparentemente lesa com maior intensidade aqueles que mais dependem de benefícios previdenciários ou assistenciais.

Parcelamentos sucessivos e calotes criam passivos

O Estado também é o responsável pelo crescimento do valor dos precatórios nos últimos anos pelo fato de ter instituído diversas medidas inconstitucionais de parcelamento dessas dívidas (popularmente conhecidos como “calotes”), o que, além de gerar abalo na segurança jurídica, aumentou o valor originário dos débitos judiciais em razão da incidência de juros e correção monetária.

De fato, a Constituição Federal de 1988 previu o parcelamento dos precatórios em oito anos (art. 33 do ADCT) como forma de resolver, ao tempo de sua promulgação, um problema histórico de pagamento das dívidas públicas. Em 2000, a EC 30/00 estendeu o parcelamento para dez anos (art. 78 do ADCT). Em 2009, a EC 62/09 estendeu novamente para quinze anos (art. 97 do ADCT).

Em 2016, mesmo após o STF declarar a inconstitucionalidade dos parcelamentos nas ADI’s 4357 e 4425, a EC 94/16 instituiu novo parcelamento em seis anos dos precatórios que superassem 15% do total de precatórios apresentados no mesmo exercício financeiro (§ 20 do art. 100 da CF).

Além disso, em 2017, a EC 99/17 prorrogou o prazo final de pagamento dos precatórios pelos estados, Distrito Federal e municípios que estivessem em mora em 25 de março de 2015 (art. 101 do ADCT), havendo ainda a possibilidade de nova prorrogação deste prazo para o final de 2028, se aprovadas as PECs 95 e 223/2019.

Essas moratórias da fazenda pública são responsáveis por um considerável aumento de seus débitos judiciais, ante a incidência de correção monetária e juros (§ 12 do art. 100 CF/88).

A título de exemplo, um precatório expedido em 1º/07/2010 e submetido ao parcelamento de 10 anos da EC 30/00, com a primeira parcela paga em 2011, a segunda em 2012, (…), e a décima e última em 29/06/2020, contará com um acréscimo no seu valor originário de aproximadamente 71% de correção monetária (IPCA-E) e 50,5% de juros legais (0,5% a.m.).

Em 2020, aproximadamente 33% do passivo de precatórios da União correspondia a precatórios submetidos aos parcelamentos de 10 (dez) anos instituído pela EC 30/00 e de 06 (seis) anos instituído pela EC 94/16[8], o que por si só demonstra que o fator “parcelamento”, imposto pelo próprio Estado, tem contribuído para o aumento dos valores pagos a título de precatórios.

Omissão inconstitucional na liberação de linha de crédito

Acresce que, em 2017, foi publicada a EC 99/17 que instituiu o § 4º do art. 101 do ADCT que prevê a liberação de linha de crédito especial aos estados, Distrito Federal e municípios para pagamento dos precatórios submetidos ao regime especial de pagamento.

Ocorre que a liberação desta linha de crédito especial depende de prévia regulamentação pela União que deveria ter sido realizada até 14 de junho de 2018 e, até o momento, não ocorreu. Diante da omissão da União na regulamentação dessa medida, foram propostas as ADO’s 52 e 28[9] que aguardam julgamento no STF.

Aqui, portanto, mais uma “besteira” do Estado (especificamente da União Federal), cujo silêncio eloquente é inconstitucional e traz graves reflexos sobre o aumento do estoque de precatórios.

Mercado lícito de precatórios contribui para a realização da Justiça

Por fim, bem diferente de uma “indústria de precatórios” eventualmente maléfica à sociedade, não custa relembrar que atualmente existe um mercado lícito de compra e venda de precatórios expressamente previsto pela Constituição em seu art. 100, §13º:

§13. O credor poderá ceder, total ou parcialmente, seus créditos em precatórios a terceiros, independentemente da concordância do devedor, não se aplicando ao cessionário o disposto nos §§ 2º e 3º.

Essa negociação de precatórios foi prevista constitucionalmente, em 2009, em razão da crescente inadimplência do Estado no cumprimento das ordens de pagamento de suas condenações judiciais no prazo estipulado pela própria Constituição.

Em atendimento aos princípios constitucionais da efetividade e razoável duração do processo (art. 5º, LXXVIII), isto é, para possibilitar que os credores recebessem alguma coisa em tempo razoável, foi autorizada a negociação desses créditos com a iniciativa privada de modo a antecipar um recebível que o Estado há muito deveria ter quitado.

E como isso funciona? Na prática, o vendedor do precatório, por um lado, recebe o valor rapidamente com algum deságio e fica livre dos riscos de pagamento do Estado (vg.: calote).

O comprador, por outro lado, assume a posição de credor do Estado e pode ganhar a diferença entre o valor total do crédito e aquele pago ao credor originário, assumindo, porém, o risco de recebimento que pode, em muitas situações, se alongar por anos a fio e gerar até mesmo a perda total do valor investido. Afinal, não são raras as reviravoltas processuais no Brasil.

Portanto, não fosse a existência de um mercado lícito de compra e venda de precatórios, milhares de credores estariam até hoje amargurando a angústia decorrente da longa espera nas filas de recebimento dos precatórios. Não fosse esse mercado, a Justiça – que efetivamente se concretiza com a obtenção do bem da vida pelo qual se litiga – não teria sido feita para muitos jurisdicionados.

Estado deve lesar menos e honrar mais compromissos

Em suma, o “passivo extraordinariamente explosivo”[10] de precatórios, apontado pelo ministro Paulo Guedes, reflete uma insaciável tendência do Poder Público de violar direitos e garantias dos cidadãos e das empresas.

Então, se “alguém tá fazendo alguma besteira em algum lugar”[11], seguramente não são os jurisdicionados e nem os players do mercado de precatórios e sim o próprio Estado!

Nesse contexto, parece importante, para o futuro do país, o apelo feito pelo ministro Paulo Guedes no sentido de que algo deva ser feito para combater o excesso de precatórios.

Porém, o foco não deve ser uma “indústria de precatórios” que simplesmente não existe. A redução no volume de precatórios deve começar pela conscientização do Poder Público de que seus atos têm consequências e, portanto, devem ser praticados com responsabilidade e nos estritos limites da lei, evitando-se a violação de direitos dos cidadãos.

Se o Estado lesar menos as pessoas, haverá, consequentemente, menor quantidade de precatórios. Também cabe ao Estado honrar seus compromissos, evitando novos e sucessivos parcelamentos que geram insegurança jurídica e aumentam o passivo da dívida em razão da incidência de juros e correção monetária.

[1] Voto do min. Luiz Fux (Pag. 50) no julgamento das ADIns 4357 e 4425.

[2] § 5º do artigo 100 da Constituição Federal/88.

[3] SZELBRACIKOWSKI, Daniel Corrêa; e MUDROVITSCH, Rodrigo de Bittencourt. Precatórios: pandemia da Covid-19 não pode servir de justificativa para novo calote. CONJUR, 2020. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-mai-27/szelbracikowski-mudrovitsch-precatorios-covid-19>. Acesso em
14 de dezembro de 2020.

[4] § 1º do artigo 100 da Constituição Federal/88.

[5] Com relação ao exercício financeiro de 2021, também segundo os dados noticiados pelo Conselho da Justiça Federal – CJF, o valor aprovado para pagamento dos precatórios e RPV’s da União foi de 48,4 bilhões, dos quais 30,8 bilhões são de precatórios e 17,6 bilhões são de RPV’s. Disponível em: <https://www.cjf.jus.br/cjf/noticias/2020/09-setembro/conselho-aprova-valores-de-debitos-judiciais-a-serem-incluidos-naproposta-orcamentaria-do-poder-executivo-para-2021>.

[6] Os 30,8 bilhões dos precatórios abarcam 110.436 processos e 175.212 beneficiários, sendo que 68.761 processos e 95.808 beneficiários são de benefícios previdenciários e assistenciais. Ou seja, 62% dos processos abarcados pelo passivo de precatórios se referem a débitos de natureza alimentícia.

[7] Dos 17,6 bilhões destinados ao pagamento das RPV’s, aproximadamente 14,1 bilhões são de benefícios previdenciários e assistenciais. Ou seja, 80% do passivo de RPV’s corresponde a de débitos de natureza alimentícia.

[8] Disponível em: <https://paineisanalytics.cnj.jus.br/single/?appid=24bb0aae-4341-48e7-b3b5-3606607894c4&sheet=07a10814-9058-48b5-8fd3-f4a916458d71&lang=pt-BR&opt=ctxmenu,currsel>.

[9] Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=441209>.

[10] Trecho da fala do ministro Paulo Guedes, em 08/12/2020, no seminário “Diálogo entre os Poderes pela retomada econômica do país”.

[11] Trecho da fala do ministro Paulo Guedes, em 08/12/2020, no seminário “Diálogo entre os Poderes pela retomada econômica do país”.

Daniel Corrêa Szelbracikowski – Sócio administrador da Advocacia Dias de Souza, mestre em Direito Constitucional pelo IDP e especialista em Direito Tributário pelo IBET.
Thaynara Teixeira Rodrigues – Advogada da Advocacia Dias de Souza, especialista em Direito Tributário pelo IBET e secretária da Comissão de Precatórios da OAB/DF.

 

Jota Info 16 de dezembro de 2020 às 08:46

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