27 de maio 2020 às 16H10
A vida dos credores da Fazenda Pública nunca foi fácil no Brasil. Para piorar, nesse período de grave pandemia decorrente da Covid-19, há sugestão ao presidente do CNJ [1], ministro Dias Toffoli, proposta pelo vice-líder do governo no Senado, para a suspensão do pagamento de precatórios até 2021. No mesmo sentido é a PEC 21/2020, apresentada no último 21 de maio no Senado [2]. Essas propostas atentam contra a Constituição, conforme teremos a oportunidade de pontuar no webinário realizado pelo Instituto Brasiliense de Direito público (IDP), nesta quinta-feira (27/5),
a respeito do tema.
De fato, antes de qualquer debate, é preciso rememorar que precatórios são ordens de pagamento ao poder público decorrentes de decisões judiciais que reconheceram que o Estado (União, Estados ou municípios) violou algum direito patrimonial do cidadão ou da empresa. A expedição de um precatório decorre de muitos anos de batalha judicial. O caminho é longo e complexo. Primeiro, é preciso litigar no âmbito de uma ação de conhecimento que certificará a existência do direito.
Nessa ação, o Estado costuma lançar mão de todos os recursos disponíveis no sistema processual brasileiro, razão por que muitos desses processos terminam depois de decisão final do STF, após passar pelo tribunal local e pelo STJ. Segundo, com o trânsito em julgado da sentença que reconhece o direito, o credor inicia a execução do julgado. Nesse momento, usualmente o Estado lança mão de nova impugnação à execução (antigos embargos à execução) que gera nova sentença e novos recursos que percorrem, novamente, todas as instâncias do Judiciário.
Terceiro, em paralelo à impugnação na execução, há inúmeros casos em que o poder público também ajuíza ações rescisórias com a finalidade de desconstituir aquela sentença que reconheceu a existência do direito na ação de conhecimento. Quarto, há casos de ajuizamento de uma segunda ação rescisória pelo Estado contra o decidido nas execuções. Nessas ações rescisórias, o Estado também lança mão de absolutamente todos os recursos possíveis, tudo para evitar ou ao menos postergar o pagamento do que é devido. Apenas depois do trânsito em julgado [3] da sentença no âmbito da execução — e, quando houver, da decisão na ação rescisória — é que os precatórios (ordens de pagamento) são finalmente expedidos. Essa tramitação judicial costuma demorar décadas. Muitos credores nem sequer conseguem viver a ponto de verem seus processos julgados definitivamente com a expedição dos respectivos precatórios.
Sem prejuízo dessa via crucis para a “mera” expedição do precatório, receber efetivamente o que é devido pelo Estado é ainda mais difícil.
Desde a promulgação da Constituição Federal de 1988 as Fazendas Públicas foram beneficiadas por diversas postergações de pagamento nos precatórios e isso, paradoxalmente, nunca resolveu o eterno problema orçamentário alegado como justificativa para o não pagamento das dívidas: em 1988, houve a concessão de prazo de oito anos para a quitação dos precatórios (artigo 33 do ADCT). Em 2000, a EC 30/00 incluiu a previsão de novo parcelamento dos precatórios por mais dez anos (artigo 78 do ADCT). Em 2009, a EC 62/09 instituiu novo parcelamento, dessa vez por mais 15 anos. Em 2016, a EC 94/16 estabeleceu parcelamento em seis anos para precatórios que superassem 15% do montante total de precatórios apresentados no exercício financeiro de sua expedição. Por fim, em 2017, a EC 99/17 prorrogou o prazo final para o cumprimento do parcelamento dos precatórios estaduais e municipais, previsto para 2021, para o final de 2024.
Como se vê, quando se trata de precatórios, a Constituição Federal nada tem de rígida e inflexível. São sucessivas emendas que cortam e retalham a Carta Maior e, consequentemente, os direitos fundamentais daqueles que dependem do recebimento dos precatórios.
Daí por que o STF tem sido constantemente acionado para examinar a constitucionalidade dessas emendas. Em 2010, o STF suspendeu o parcelamento determinado pela EC 33/00, assentando, nas palavras do ministro Celso de Mello, “que o Congresso Nacional, ao impor o parcelamento ora questionado aos precatórios pendentes de liquidação na data de promulgação da referida EC 30/2000, incidiu em múltiplas transgressões à Constituição da República, eis que desrespeitou a integridade de situações jurídicas definitivamente consolidadas, prejudicando, assim, o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada, além de haver violado o princípio da separação de poderes e ofendido o postulado da segurança jurídica” (MCADI 2.356/DF, relator ministro Néri da Silveira, J. 25/11/2010). Em 2013, coerentemente com a posição anterior, o STF assentou a inconstitucionalidade do regime especial de parcelamento previsto na EC 62/09, ao fundamento de que “ao veicular nova moratória na quitação dos débitos judiciais da Fazenda Pública e ao impor o contingenciamento de recursos para esse fim, viola a cláusula constitucional do Estado de Direito (CF, artigo 1º, caput), o princípio da separação de poderes (CF, artigo 2º), o postulado da isonomia (CF, artigo 5º), a garantia do acesso à Justiça e a
efetividade da tutela jurisdicional (CF, artigo 5º, XXXV), o direito adquirido e à coisa julgada (CF, artigo 5º, XXXVI)” (ADI 4.357, J. 14/03/2013, Red. p/ acórdão ministro Luiz Fux, item 8 da ementa).
Para não agravar a situação orçamentária de Estados e municípios, em 2015 o STF modulou os efeitos de sua decisão na ADI 4.357 para dar sobrevida ao regime especial por cinco exercícios financeiros a contar de janeiro de 2016 [4] (o que, no entanto, foi novamente desrespeitado pelo Congresso ao aprovar a EC 99/17, cujo prazo pode ser novamente ampliado para 2028 se for aprovada a PEC 95/2019).
Mesmo depois de o STF determinar a Estados e municípios o pagamento de seus precatórios, inclusive mediante o estabelecimento de um prazo razoável para tanto, a situação permaneceu vexatória na maioria dos entes federativos subnacionais. O governo federal, por outro lado, nos últimos anos vem honrando seus compromissos com o depósito dos precatórios no exercício financeiro seguinte ao da expedição, conforme determina a Constituição Federal em seu artigo 100, § 5º. Em 2019, por exemplo, o depósito dos débitos federais alimentares ocorreu em março e dos comuns em abril daquele ano (relativamente aos precatórios expedidos em 2018). O único débito hoje existente diz respeito aos precatórios expedidos em 2019, os quais ainda não foram depositados.
Desconsiderando esse penoso caminho pelo qual têm passado os credores da Fazenda Pública, há, conforme visto, novas propostas de suspensão ou postergação do pagamento de precatórios, a pretexto da pandemia causada pela Covid-19.
A sugestão de não pagar os precatórios devidos no exercício financeiro de 2020 reproduz os graves efeitos que os calotes de outrora provocaram sobre os direitos individuais dos cidadãos (que não receberam aquilo que lhes era devido por declaração do Judiciário, com ofensa aos direitos de propriedade, de razoável duração do processo e da coisa julgada, conforme já reconhecido pelo STF), aos cofres públicos (que precisaram pagar mais juros e atualização monetária até a quitação do débito [5]) e à administração do Poder Judiciário (que precisou decidir milhares de questionamentos dos credores da Fazenda); atenta contra a separação dos poderes e a moralidade pública (mediante descumprimento da ordem de pagamento decorrente de decisões judiciais transitadas em julgado); e contribui para aprofundar a crise econômica (ao invés de suavizá-la).
Quanto a este último efeito, é sabido que, em tempos de crise econômica, cabe ao Estado contribuir com o fomento da economia, mediante aumento de gastos públicos (Keynes). Porém, o pagamento, em 2020, dos precatórios expedidos e inscritos em orçamento nem sequer constitui aumento de gastos. Trata-se do mero cumprimento de gastos que já estavam programados. Não há “mais” gasto. Há, apenas e tão somente, a obediência em relação ao que estava previsto em orçamento. Para os gastos extraordinários decorrentes da calamidade pública já houve a aprovação de emenda constitucional com o chamado “orçamento de guerra” (PEC 10/2020), que instituiu regime extraordinário fiscal, financeiro e de contratações para esse período. Logo, havendo orçamento extraordinário e separado para o combate à calamidade pública, os gastos correntes com precatórios — previstos nos orçamentos ordinários — não deveriam ser afetados.
Porém, ainda que o pagamento regular de precatórios fosse considerado “mais” gasto, isso constituiria medida salutar para introduzir importantes somas de dinheiro nas famílias e empresas, o que, se não é suficiente para dirimir os efeitos da grave crise econômica em curso, ao menos parece importante para não a agravar.
De fato, o mero cumprimento da regra de pagamento de precatórios proporciona um aumento da liquidez na economia, a contribuir com o combate à crise. Tanto isso é verdade que o saque do FGTS foi uma das medidas utilizadas pelos últimos governos para estimular a economia. O mesmo racional é aplicável, portanto, aos precatórios, os quais ajudam diretamente pessoas idosas, doentes e beneficiárias do INSS, além de empresas que, em função da crise, necessitam urgentemente de dinheiro em caixa para cumprir com suas obrigações. A última grande pesquisa realizada a propósito do tema demonstrou que mais da metade do estoque de precatórios correspondia a verbas “alimentares” [6].
Portanto, não pagar os precatórios contribuirá com uma repressão ainda maior do Produto Interno Bruto (PIB), agravando a crise pela qual passam famílias e empresas. Além disso, o próprio poder público se beneficia desse pagamento. Isso porque boa parte do que é pago aos beneficiários volta na forma de Imposto de Renda para a União Federal, que, por sua vez, compartilha boa parte dessa arrecadação com Estados e municípios (artigo 159, I, da CF).
Além disso, o cumprimento dos ritos e regras de pagamento dos precatórios é salutar para o desenvolvimento de uma cultura de segurança jurídica.
Não basta o Brasil editar leis, a exemplo da nova LINDB, que aludem ao respeito à segurança jurídica pelas autoridades públicas (artigo 30 com a redação dada pela Lei 13.655/2018). A questão está no plano da ação, da cultura formada a partir da prática institucional, em especial do próprio poder público. O problema ocorre quando membros do Poder Legislativo — que deveriam dar o exemplo — buscam a protelação do pagamento das dívidas do Estado. O que esse tipo de prática sinaliza ao mercado, ao empresário que pretende investir e gerar empregos no Brasil? O que esse tipo de prática sinaliza ao cidadão que também possui dívidas?
Depois de tantas decisões proferidas pelo STF a respeito dos precatórios pós- Constituição de 1988, nova postergação no pagamento das dívidas públicas seguramente será interpretada pelo mercado como resultado da irresponsabilidade pública, possivelmente afetando a economia em decorrência de downgrade nos ratings de investimentos, da necessidade de aumento da taxa de juros e da desconfiança generalizada.
Por fim, não se desconhece a situação dramática dos orçamentos de alguns Estados e municípios. Porém, a própria Constituição contém ferramentas valiosas para a quitação dos precatórios sem que haja comprometimento orçamentário, tais como o financiamento perante a União Federal (§16 do artigo 100), a utilização de depósitos judiciais e administrativos (artigo 101, I e II, do ADCT), empréstimos junto a instituições financeiras (artigo 101, III, do ADCT), acordos diretos com credores, entre outros. De qualquer sorte, mesmo que se admitisse eventual postergação no prazo de pagamento dos precatórios para Estados e municípios, consideradas suas particularidades, isso não poderia ser geral, mas específico para aqueles entes
federativos que estão, de fato e comprovadamente, em situação de absoluta insolvência (o que poderia ser auditado pelo TCU), e nem poderia alcançar a União Federal. Afinal, a União Federal não tem atrasos, não tem grande estoque de precatórios a pagar e não tem qualquer dificuldade de financiamento. Não haveria, portanto, qualquer justificativa válida para a União pegar carona em eventuais novas postergações de pagamento.
Em suma, um novo calote nos precatórios violaria direitos e garantias individuais (assim já declarado pelo Judiciário), agravaria a crise e acenaria de forma negativa aos cidadãos e ao mercado.
[1] Indicação nº 23, de 2020 — Senado Federal: “Sugere que o Conselho Nacional da Justiça aprove nova resolução para suspender os pagamentos de precatórios e respectivos procedimentos operacionais no âmbito do poder Judiciário, durante o período de vigência estabelecido no artigo 1º do Decreto Legislativo nº 06, de 20 de março de 2020, que reconheceu o estado de calamidade pública, em razão da emergência de saúde pública de importância nacional em decorrência da infecção humana provocada pelo coronavírus (Covid-19)”.
[2] “Suspende o pagamento de precatórios judiciais por parte da União, Estados, Distrito Federal e municípios, durante a situação de calamidade pública decorrente da pandemia do coronavírus (Covid- 19)” (PEC 21/2020).Na mesma direção é o PDL 116/2020.
[3] §5º do artigo 100 da Constituição Federal.
[4] QO — ADI 4.357, relator ministro Luiz Fux, J. 25/03/2015, item 2 da ementa.
[5] Conforme decidido pelo STF, o poder público deve recompor os valores a partir de índices que reflitam a efetiva inflação: ADI 5348, Relator(a): ministro CÁRMEN LÚCIA, Pleno, PUBLIC 28-11-2019; RE 870947 ED, Relator(a) p/ Acórdão: ministro ALEXANDRE DE MORAES, Pleno, PUBLIC 03-02-2020. Além disso, incidem juros, conforme o disposto no § 12 do artigo 100 da CF.
[6] “Para se ter ideia da dimensão da discussão, segundo o Supremo Tribunal Federal, estados, distrito federal e municípios devem cerca de R$ 78 bilhões em precatórios. (…) Do total, R$ 42,2 bilhões são precatórios alimentares e o restante, decorrentes, principalmente, de desapropriações de terras e imóveis” (Meneguin, Fernando B.; e Bugarin, Maurício S., Uma análise econômica para o problema dos precatórios, 2008). Acesso em 26 de maio de 2020. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-de-estudos /textos-para-discussao/td-46-uma-analise-economica-para-o-problema-dos-precatorios
Daniel Corrêa Szelbracikowski é sócio da Advocacia Dias de Souza, mestre em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e especialista em Direito Tributário.
Rodrigo de Bittencourt Mudrovitsch é sócio-fundador do Mudrovitsch Advogados, professor de Direito Público, doutor em Direito Constitucional pela USP e mestre em Direito Constitucional pela UnB. Membro do grupo de trabalho instaurado pelo Conselho Nacional de Justiça destinado à elaboração de estudos e indicação de políticas sobre eficiência judicial e melhoria da segurança pública.
Revista Consultor Jurídico , 27 de maio de 2020, 12h08
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