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03 de julho 2023 às 14H06

Relatório sobre as propostas da Câmara para a reforma tributária

Por Ives Gandra da Silva Martins, Hamilton Dias de Souza, Humberto Ávila e Roque Antônio Carrazza

*Relatório da Comissão de Reforma Tributária do Iasp (Instituto dos Advogados de São Paulo) para a diretoria

Cuida-se de tecer aqui considerações sobre o substitutivo apresentado ao Plenário da Câmara dos Deputado pelo relator da PEC 45/2019, deputado federal Aguinaldo Ribeiro. Como se verá, o texto suscita questões constitucionais delicadas e o modelo de tributação nele contido reclama ajustes. Além disso, a conveniência e a regimentalidade da sua possível votação em Plenário, poucos dias após a apresentação oficial, são no mínimo discutíveis.

1. Objetivos e limites de uma reforma tributária

Para que haja “sistema tributário”, as normas e estruturas de tributação devem estar organizadas sob a forma de um todo harmônico, capaz de funcionar adequadamente [1]. Ao longo dos anos o sistema tributário brasileiro adquiriu
traços de irracionalidade e distanciou-se de sua lógica original, devido a vários fatores, como produção normativa excessiva (complexidade, insegurança jurídica, onerosidade) [2], atuação fiscalista das autoridades e problemas ligados à litigiosidade daí decorrente (morosidade, oscilação jurisprudencial etc.) [3-4]. Essa deterioração poderia justificar uma reforma, com o objetivo de corrigir o que está em mau estado e modernizar aquilo
que possa ser modernizado.

Ocorre que eventual alteração nesse sentido tem de ser realizada dentro dos limites impostos pelo próprio perfil institucional do país, com especial atenção à forma federativa de Estado, pois, num sistema rígido (artigo 60, §4º), reformar consiste em “adotar preceitos sem bulir com princípios”, sob pena de descaracterizá-lo a ponto de se chegar a uma “Constituição diferente” [5-6-7-8- 9-10].

É no contexto dessas balizas que o Substitutivo recém apresentado à PEC 45 suscita considerações, pois, sob o pretexto de contornar a centralização da tributação do consumo na União e os problemas de inadequação da alíquota única que estavam a impedir sua aprovação, adotou-se algo que parece um IVA dual e com três faixas de alíquotas, mas, na prática, não funcionará com autêntica dualidade, tampouco oferecerá a flexibilidade que as circunstâncias materiais exigem. Isso, sem mencionar o açodamento com que se pretende votar o texto em Plenário, apenas duas semanas após a sua apresentação, o que inviabilizaria a análise e discussão do mesmo com o cuidado necessário.

2. Características do modelo de tributação do consumo previsto no Substitutivo

A proposta do relator (deputado federal Aguinaldo Ribeiro) contempla a adoção de um sistema aparentemente dual, bipartido em uma Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) a cargo da União e um Imposto sobre Bens e Serviços IBS), de “competência comum” aos estados e municípios. Há, ainda, um Imposto Seletivo (IS), sobre “bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente”, relacionados em lei ordinária, além de alterações pontuais em matéria de IPTU, IPVA e ITCMD.

O IBS e a CBS incidiriam sobre bens e serviços, seriam arrecadados no destino (local de consumo), teriam estruturas praticamente idênticas (fatos geradores, bases de cálculo, sujeitos passivos, faixas de tributação e regime de compensação etc.) e seriam “harmonizados” por meio da “:cooperação” entre a União (contribuição) e o Conselho Federativo do imposto (artigo 156-B, §3º). Ambos teriam alíquotas padrão, reduzida e zero, estas apenas para itens especificados na própria CF/88.

Para os serviços de educação e saúde, dispositivos médicos e remédios, transporte público coletivo, produtos rurais in natura e respectivos insumos, itens da cesta básica e atividades artísticas e culturais, a lei complementar poderia aplicar-lhes a metade da alíquota padrão. Já a isenção ficaria adstrita a medicamentos e serviços de transporte coletivo, bem como, no que concerne à CBS, às instituições do Prouni e às empresas do programa de retomada do setor de eventos (Perse). O tema será tratado detidamente mais adiante.

O texto prevê, ainda, a manutenção da Zona Franca de Manaus e do Simples, além de regimes específicos para os setores financeiro e imobiliário, aqueles cujas características demandem tributação monofásica (combustíveis, lubrificantes etc.) e compras governamentais. O pequeno produtor rural pessoa física poderá optar por não ser contribuinte desses tributos, caso em que se autoriza a lei complementar a conceder crédito presumido aos adquirentes dos produtos rurais in natura comprados dessas pessoas.

Há, por fim, a previsão de dois fundos constitucionais, um para compensar o esvaziamento dos atuais incentivos de ICMS convalidados pela LC 160/17 e outro para financiar as ações dos entes descentralizados no fomento ao desenvolvimento local, ambos financiados pela União.

Como se verá a seguir, se aprovado, o substitutivo, que não se fez acompanhar pela divulgação de estudos e projeções econômicas suficientes para os setores afetados, tende a comprometer a autonomia financeira dos estados e municípios, o que, na prática, macula a Federação e, portanto, afeta um dos pilares de nosso sistema constitucional. Ademais, inclina-se a prejudicar o agronegócio (responsável, em 2022, por 24,8% do PIB nacional, cf. Cepea/USP, 2023), os prestadores de serviços e os próprios contribuintes (que, ao contrário do que o governo federal apregoa, suportarão um sensível aumento da já insuportável carga tributária).

3. Vícios do modelo de tributação previsto no substitutivo

3.1. Redução dos poderes de estados e municípios na tributação do consumo e de sua autonomia

O sistema proposto não apresenta a descentralização necessária para que seja realmente dual. Afinal, o IBS relativo aos estados e municípios seria instituído por meio lei complementar (que se insere no processo legislativo da União) em linha com a mesma estrutura escolhida para a CBS, o que inclui a disciplina de fatos geradores, bases de cálculo, determinação de alíquotas, regimes especiais e favorecidos de tributação e sujeição passiva. Esses temas, em relação ao ICMS e ao ISS, são tratados por leis estaduais, dentro da moldura de leis complementares de normas gerais (CF, artigo 146).

Uma vez criado o imposto, ele seria administrado por intermédio de um Conselho Federativo igualmente instituído e regido por lei complementar, cujo conteúdo deverá estar em conformidade com as regras aplicáveis à CBS de competência da União. O órgão teria competência para editar normas infralegais, uniformizar interpretações em caráter vinculante, arrecadar, compensar e partilhar o IBS, bem como dirimir questões suscitadas no contencioso administrativo, com independência. Atualmente, tudo isso pode ser feito diretamente por cada estado e por cada município em relação aos atuais ICMS e ISS, poder que também deixaria de existir caso aprovado o sistema proposto.

A única previsão sobre o funcionamento do Conselho é no sentido de que haverá paridade entre o conjunto dos estados e o conjunto dos municípios. No entanto, nem o critério de distribuição dos votos (populacional, econômico ou outro), nem a espécie de maioria necessária para aprovação das deliberações (simples, qualificada ou absoluta) está previsto constitucionalmente, devendo, igualmente, ser detalhados em lei complementar.

Na prática, tudo indica que o conselho funcionará como uma sociedade, ou seja, todas as questões sensíveis dependerão de acordo entre os estados e os 5.570 municípios, não havendo garantias de que eles venham a efetivamente ter voz nesse órgão. Assim, decisões que todos esses entes podem na atualidade tomar individualmente passarão a depender de acordo entre si, sendo certo que, nas divergências que surgirão, as minorias deverão curvar-se às maiorias.

Para transmitir a sensação de que alguma decisão poderá ser tomada livremente pelos estados e municípios, o substitutivo prevê que eles poderão determinar a alíquota de IBS aplicável aos itens destinados aos respectivos territórios. Sucede, todavia, que esse poder é discutível, pois só poderá ser exercido após o Senado definir a alíquota de referência para cada esfera federativa e também porque de improvável aplicação prática, como será
detalhado adiante.

Noutras palavras, em comparação com o que hoje vigora em matéria de ICMS e ISS, não há como duvidar de que os estados e os municípios perderão o poder de legislar sobre tributos que lhes são verdadeiramente próprios, e terão de se contentar com um imposto em condomínio, em relação ao qual ficarão a depender de acordo no contexto de uma assembleia geral com mais de 5.597 acionistas, sujeitando-se à maioria, em caso de divergência. Isso, além de ter de seguir o disposto em lei complementar, como antes se referiu. Disso decorre que há perda de poder, o que implica redução da autonomia dos entes subnacionais.

Do exposto decorre que, exclusivamente quanto a este ponto, o modelo previsto no substitutivo não é tão distinto do IVA único e federal previsto na redação original da PEC 45, pois ele se apresenta com falsa dualidade, pretendendo justificar uma autonomia que é meramente formal.

Aliás, em se tratando de grandes federações, sempre se respeita a autonomia das ordens parciais de governo, seja por adesão a um sistema harmonizado (como no Canadá), seja pela prevalência de sua vontade na gestão do tributo em comum (2/3 dos votos para estados, contra 1/3 para a União, na gestão do IVA indiano).

Mesmo quando a tributação do consumo é federalizada, existem modos para assegurar autonomia autêntica aos entes parciais. Exemplo disso é a Austrália, onde o IVA é da União, mas a quase totalidade dos seus recursos é distribuída aos estados. Da mesma forma, na Alemanha, além de as ordens parciais de governo serem titulares de quase a metade da arrecadação do IVA, os estados participam diretamente do processo legislativo atinente ao tributo, pelo fato de que o Senado é composto por representantes dos estados livremente escolhidos e demitidos a qualquer tempo por estes.

Ademais, a autonomia envolve a capacidade do ente de se autodeterminar quanto a questões fundamentais sem influências subjugantes. Assim, a discussão não abrange apenas saber “o que” será recebido pelo ente federado, mas como” ele irá ter o direito de receber e “como” e “em que medida” irá poder, de maneira contínua, exercer o seu poder. Noutros termos, autonomia não é “resultado financeiro”, mas “processo de exercício de poder político”. De acordo com o substitutivo, contudo, cada ente federado deverá se submeter a deliberações circunstanciais e ad hoc tomadas por um órgão composto de quase 6.000 membros, sem que sejam definidos os critérios que irão nortear referida deliberação. Seria como um proprietário de um imóvel de condomínio horizontal se submeter a uma assembleia de 6.000 condôminos, não, porém, para definir o que fazer com as áreas comuns, mas para definir o que fazer com a sua própria propriedade (quantos quartos e banheiros deve ter, como deverá usá-la, etc.), sem que haja proporcionalidade de representação quanto ao número de lotes de que cada um é proprietário ou a sua extensão, e sem que haja qualquer diferença com relação aos lotes estarem ou não edificados e terem esta ou aquela função ou uso. Como dizer que esse sistema garante a capacidade de os entes federados se autodeterminarem com base em
regras gerais e abstratas quanto a questões fundamentais e sem influências subjugantes?

Nesse contexto, o Substitutivo retira poder dos Estados para dispor sobre tributos próprios e para cuidar sozinhos de recursos suficientes para a execução de seus objetivos. Isso esbarra na proibição a emendas constitucionais que pretendam “modificar qualquer elemento conceitual da Federação”. Entre estes, releva apontar sobretudo os que respeitam às competências privativas outorgadas aos entes subnacionais [11-12]. Note-se que, como bem apontou a ministra Ellen Gracie, não há necessidade de supressão das competências desses entes para que incida a referida proibição. Basta, para tanto, que haja redução ou amesquinhamento das mesmas, especialmente em matéria tributária, por serem “pilares da autonomia dos entes políticos” [13-14-15-16-17-18-19-20].

3.2. Falso poder dos entes descentralizados para fixar suas alíquotas do IBS

A confirmar o esvaziamento quase total dos poderes de estados e municípios em matéria de tributos sobre o consumo, o substitutivo prevê que todas as questões administrativas atinentes ao IBS serão decididas no bojo do Conselho Federativo. Fora deste órgão, a única competência que eles poderiam exercer unilateralmente seria a escolha da alíquota padrão aplicável às operações destinadas a seus territórios, para alcançar a todos os itens que não se enquadrassem nas hipóteses taxativas de alíquota reduzida ou isenção.

Contudo, essa é uma falsa liberdade, pois o ente só poderia alterar suas alíquotas para todos os bens e serviços, sendo-lhe vedado aplicar alíquota reduzida ou zero para algum produto, o que torna marginal o espectro de situações em que aumentos e diminuições serão possíveis. Afinal, por ter de subir ou descer alíquotas para todas as operações ao mesmo tempo, ou o ente irá desestimular o consumo interno ou acabará por produzir impactos intoleráveis na arrecadação (reduções).

Em relação àqueles itens que são insumos de outras cadeias produtivas, o IBS seria neutro para os entes de passagem (operações inicial e intermediárias), já que, na prática, cada ente receberá somente os valores correspondentes ao IBS sobre itens efetivamente consumidos em seus territórios. Daí a constatação de que, para estes, não haveria sequer o interesse do ente federativo em alterar alíquotas.

Já no que respeita aos itens prontos para consumo, aumentos substantivos poderão interferir na demanda local, sobretudo para as hipóteses em que o destino venha a ser definido como o local da entrega (regiões fronteiriças, municípios contíguos etc.), enquanto diminuições relevantes tendem a gerar quedas de arrecadação de difícil absorção. Daí ser mínima a margem para modular alíquotas.

Por essas razões, a autonomia para dispor sobre alíquotas seria bastante reduzida, senão nula, diante da impraticabilidade de efetivo manuseio do imposto para o fim de adequar a arrecadação dos entes às necessidades e vontades políticas próprias.

Como apontado pelo ministro Gilmar Mendes, “as competências constitucionais esvaziam-se sem as condições materiais para o seu exercício” [21]. É exatamente o que ocorreria se implementado o Substitutivo neste particular [22].

3.3. Desproporcionalidade em matéria de alíquotas: incompatibilidade com a prática internacional

Como mencionado, a estrutura de alíquotas aventada pelo substitutivo é rígida a ponto de inviabilizar a variação de alíquotas do IBS para os fins comumente aceitos, v.g. promover bens e serviços meritórios, desincentivar consumos indesejáveis, mitigar problemas temporários de desabastecimento, fixar a tributação em patamar compatível com a natureza de cada item etc.

É verdade que uma reforma tributária tenha de corrigir o problema das infinitas alíquotas sobre o consumo, hoje em vigor. Porém, entre esse emaranhado e a impossibilidade de variações, existe um ponto de equilíbrio a ser perseguido. Noutras palavras, o IBS tem de ter poucas faixas de tributação, mas com razoável flexibilidade, para permitir calibração de carga tributária. Essa é, afinal, a prática adotada pela maioria dos países da OCDE, tais como os membros da União Europeia [23-24], África-do-Sul [25-26-27], Canadá [28], Índia [29] e Japão [30-31], entre outros.

A alíquota única não é praticada em qualquer país do mundo com características similares às do Brasil (nem mesmo na Nova Zelândia, tida como exemplar em matéria de IVA) [32-33-34].

A propósito, a variedade controlada de alíquotas tem sentido pragmático, pois as estimativas oficiais são no sentido de que o IBS, para substituir ICMS, IPI, ISS, PIS e Cofins, sem perda de arrecadação, teria de ter uma alíquota de 25%. Realmente, se os formuladores do projeto de reforma estimam alíquota de 25% sem reduções ou isenções, é claro que, com estas, a alíquota padrão terá de ser aumentada. Para este efeito, poderíamos estimá-la em 28%, apenas para raciocinar. Sendo assim, a alíquota reduzida seria por volta de 14%, o que supera a maior alíquota padrão de muitos países (v.g., Austrália – 10%, África do Sul – 10%, Canadá – até 15%, Japão – 10%, Coreia do Sul –
10%, Suíça – 7,7%) [35].

A perplexidade se agrava pelo fato de que essa alíquota intermediária será aplicada a itens como educação, saúde e alimentos da cesta básica, os quais, em outros países, ou não são tributados ou o são a alíquotas muito menores que os pretendidos 14%. Vejam-se alguns exemplos:

País Educação Saúde Alimentos básicos
Austrália 0%
África do Sul 0% 10% 0%
Canadá 0%
Japão 0% 0% 8%
México 0% 8% 0%
Suíça 0% 0% 2,5%

A confirmar a necessidade de reduções efetivas para bens e serviços como os acima elencados, sob pena de se acentuar a regressividade do sistema, há o fato de que o chamado “cash-back” ficará limitado às camadas mais vulneráveis da população, sem alcançar as classes C e B, embora não seja razoável tratá-las do mesmo modo que a camada mais rica da população (classe A). Voltaremos ao tema em outra oportunidade.

É por essas e outras razões que, conforme levantamento do Instituto Atlântico (2023), de 139 países examinados, 128 possuem alíquota padrão com reduções ou isenções. Na realidade, mesmo os IVAs considerados “modernos”, como os referidos por Rita de la Feria, apresentam faixas diversas de tributação, como os da Turquia (18%, 8%, 1% e isenção), Angola (14%, 7%, 5% e 0%) e São Tomé e Príncipe (15%, 7%, 2% e 0%), ainda que a alíquota padrão seja aplicada à maioria dos itens36-37-38.

Por fim, deve-se salientar que percentuais como os que se pretende aplicar não poderiam ser absorvidos de modo imediato por diversos itens e setores. Dentre os principais afetados, estão a agroindústria (+875%, cf. CNAgro, 2023), serviços profissionais (+265%, cf. CNS, 2023), educação e saúde (mesmo com alíquota reduzida, +365%, cf. CNS, 2023)39, aviação comercial (+R$ 3,7 bilhões ao ano, por empresa aérea, cf. ABEAR, 2023).

3.4. Dúvidas quanto ao funcionamento do conselho federativo

Como visto, caberia a um Conselho Federativo editar normas infralegais do IBS e uniformizar interpretações em caráter vinculante, arrecadar, compensar e distribuir o imposto aos seus titulares e dirimir questões suscitadas nos processos administrativos envolvendo o tributo. Os entes federativos só teriam voz nesse órgão no âmbito da respectiva assembleia geral, com votos distribuídos igualmente entre o conjunto dos Estados/DF e o conjunto dos municípios/DF, muito embora não esteja constitucionalmente definido qual critério será observado para a quantidade de votos a ser atribuído a cada um (se populacional, econômico ou misto).

Entretanto, essas e outras questões que ficam pendentes de definição por lei complementar interferem no conteúdo do pacto federativo e, portanto, na qualidade das futuras relações entre os titulares do imposto subnacional que, em tudo e por tudo, se assemelhará a um condomínio, com o potencial conflitivo que esse tipo de relação jurídica possui. Noutras palavras, os direitos e deveres dos estados e municípios entre si e perante o referido Conselho deveriam receber detalhamento constitucional suficiente, pois Emenda Constitucional não pode delegar ao legislador complementar a disciplina de algo que materialmente redesenha as competências dos entes subnacionais.

Isso, até para evitar uma excessiva discricionariedade da lei complementar na disciplina do órgão, sem critérios de controle que permitam aos interessados defender-se judicialmente, quer nas discordâncias que certamente surgirão dentro do órgão quer para as situações em que ele desborde das competências que razoavelmente lhe cabem.

Por fim, importa salientar que o Conselho ficará não só sujeito às normas de lei complementar como também das leis que forem editadas pela própria União (CBS). Assim é que o art. 156-B, §3º, do Substitutivo, prevê que o Conselho Federativo e a União atuarão para harmonizar normas, interpretações e procedimentos relativos ao IBS e à CBS. Ora, se a União terá competência para legislar materialmente sobre todos os aspectos da CBS, parece claro que a lei complementar do IBS não deverá conter dispositivos diversos daqueles estabelecidos para a contribuição da União.

Em conclusão deste tópico, não haverá verdadeiro imposto dual, pois a União, por lei ordinária, poderá dispor sobre fato gerador, base de cálculo, sujeição passiva e alíquotas (inclusive reduções). Enfim, todos os elementos conformadores da obrigação tributária.

As normas do Conselho Federativo deverão ser harmonizadas com as da União e serão dependentes também do disposto em lei complementar, decorrente de processo legislativo no qual a União tem enorme influência. Nesse contexto, qual é a réstia de autonomia que sobrará para Estados e Municípios?

E mais: mesmo em matéria de interpretação das normas, deverá haver a mesma harmonização. Ora, assim sendo, é razoável supor que os entes subnacionais sigam as conclusões do poder central, como normalmente acontece.

Em suma, na prática, a competência para legislar materialmente sobre os novos tributos sobre o consumo será da União, seja por lei ordinária, seja por lei complementar, nada restando para estados e municípios. E, mesmo em matéria de interpretação da lei, decisões em processo administrativo e outros aspectos atinentes ao IBS, o Conselho Federativo seguramente tenderá a seguir os padrões estabelecidos pelo governo federal em relação à CBS. Se assim não for, a própria ideia de unicidade (harmonização) presente no substitutivo ruirá.

3.5. Imposto Seletivo

No que respeita ao Imposto Seletivo, o substitutivo limita-se a prever que não incidirá sobre exportações, não integrará as bases de cálculo do ICMS, ISS, IBS e CBS e que poderá ter o mesmo fato gerador e base de cálculo de outros tributos, recaindo sobre bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente, nos termos da lei ordinária.

No entanto, a previsão de um imposto seletivo federal atrai para a União o poder de controlar quase todos os tributos do país, até porque a União legisla materialmente não só sobre a CBS, como também sobre o IBS. Assim, reiterando as conclusões supra quanto às questões federativas envolvidas, importa salientar que a União, se aprovado o Substitutivo, acabaria por concentrar o poder de legislar sobre tributos correspondentes a 91,57% da arrecadação nacional, segundo dados do Tesouro Nacional [40].

Ademais, a prevalecer o substitutivo, o imposto em questão teria um campo de aplicação muito amplo, pois a fórmula “prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente” admite interpretações elásticas, a depender das convicções de cada um sobre o tema. Nesse sentido, não há um critério de distinção suficientemente claro para se extremar o que pode do que não pode vir a ser objeto do imposto.

Assim, uma ampla gama de bens e serviços poderá ser facilmente incluída no escopo do Imposto Seletivo, com base em razões genéricas ligadas à preservação da saúde ou do meio ambiente, sempre que houver necessidade de gerar aumento de arrecadação para o Tesouro Nacional. No limite, o imposto poderá tornar-se um sucedâneo do IBS/CBS ou, o que é pior, um IPI, de base extremamente ampla.

Por isso, o próprio texto constitucional deve prever os traços fundamentais dos produtos que possam ser objeto do Imposto Seletivo, ou, pelo menos, que a definição desses itens seja contida em lei complementar. Do contrário, até medidas provisórias seriam veículos hábeis para inserir ou retirar produtos do campo de incidência do imposto.

A propósito, nos países que pertencem à OCDE, impostos seletivos recaem sobre produtos específicos, como fumo, álcool, combustíveis fósseis e energia de fontes não renováveis, refrigerantes e “alimentos” com altos teores de açúcar. Isso evidencia a necessidade de que haja precisão quanto ao seu escopo. Por isso, é recomendável que a Constituição preveja a competência da União para instituir, “mediante lei complementar, imposto seletivo, com a finalidade de desestimular o consumo de bens, serviços ou direitos que, por sua própria natureza, impliquem risco à saúde ou ao meio ambiente”.

3.6. Açodamento na votação do substitutivo pelo Plenário da Câmara pouco após sua apresentação

Do até aqui exposto, percebe-se que o substitutivo contém previsões complexas e de interesse de toda a sociedade, quer por reduzirem os poderes impositivos dos entes descentralizados — o que altera o desenho da Federação —, que por implicarem aumentos de carga tributária expressivos para diferentes produtos e serviços. Tudo a evidenciar que sua aprovação deveria ser precedida por análises e discussões exaustivas.

Não existem, nem no próprio Substitutivo, nem nos materiais previamente divulgados pelo relator ou pelo Grupo de Trabalho, informações suficientes sobre o alcance da reforma, o seu modo de implementação e efetivo funcionamento, os impactos que ela ocasionará para as contas públicas estaduais e municipais, e efeitos que ela terá para a economia. O que há são promessas de crescimento econômico, simplificação, geração de emprego e novos programas sociais, sem que haja correlação necessária entre a reforma tributária e esses efeitos, nem projeções transparentes por meio das quais seja possível verificar a correção do que se tem dito.

O fato, entretanto, é que o potencial da reforma para romper com estruturas de poder já estabilizadas há anos, por si só, supõe que todos os segmentos da população brasileira recebam informações detalhadas, efetuem suas próprias análises e tenham direito de se pronunciar e se fazerem ouvidas pelo conjunto dos 513 deputados federais que irão votar a proposta. E tudo isso requer tempo. Daí ser no mínimo inconveniente votar o substitutivo 14 dias após a sua apresentação.

Aliás, essa aceleração é de validade duvidosa, na medida em que, no excepcionalíssimo campo das modificações constitucionais, o que legitima o ato é sobretudo a forma com que ele é praticado. Isso implica que o rito específico a ser observado seja interpretado de modo estrito, para evitar que, pouco a pouco, o rito de votação de PEC seja equiparado à simples edição de uma lei, o que inclui as disposições do Regimento Interno da Câmara dos Deputados sobre sua forma de tramitação.

Nesse rito, exige-se que a PEC seja examinada pela CCJ e, depois, aprovada por Comissão Especial em até quarenta sessões (RICD, artigo 202, §2º), para só então ser votada em Plenário.

No caso, a redação original da PEC 45 chegou a ser aprovada pela CCJ, mas não pôde ser votada pela Comissão Especial no prazo de quarenta sessões, devido à Covid-19 e desdobramentos. Em 2021, o Presidente da Câmara avocou a proposta ao Plenário; e, neste ano, criou um grupo informal (sem previsão regimental) para elaboração do Substitutivo recém apresentado, por intermédio do Relator de Plenário, deputado federal Aguinaldo Ribeiro.

Contudo, o substitutivo nada tem a ver com o texto original da PEC 45, pois ele muda diversos pilares da proposta inicial. Como o grupo informal do qual ele provém não é composto segundo a proporcionalidade partidária, não pode o substitutivo ser remetido a Plenário sem que seja reavaliado pelas instâncias internas oficiais da Câmara dos Deputados, quais sejam: CCJ e Comissão Especial. Isso, mesmo que a remessa decorra de “acordo” com os líderes das bancadas, pois a vontade destes não pode suprimir o direito de cada um dos 513 deputados de se inteirar da matéria e sobre ela se pronunciar, diretamente ou através de seus representantes nas comissões.

Esse sentido, a avocação da PEC a Plenário só é válida se for razoável (necessária, adequada e proporcional às circunstâncias em que ocorrer) e se não gerar prejuízo à qualidade do debate político. Afinal, não existe previsão regimental para que o Plenário avoque uma PEC, tanto que o próprio Presidente assinalou que aplicava artigo 52, § 6º, do regimento, por analogia. Ora, não é razoável limitar a possibilidade de debates em matéria tão relevante à falta de dispositivo legal expresso que assim autorize, sobretudo tratando-se de PEC.

5. Conclusão

Pelo exposto, o Substitutivo recém apresentado à PEC 45/2019:

a) concentra o poder de instituir tanto a CBS quanto o IBS na União, seja por lei ordinária, seja por lei complementar, enquanto o que resta aos estados e municípios são competências instrumentais, já que eles não poderão dispor sobre temas fundamentais, como fato gerador, base de cálculo, incentivos fiscais etc. Portanto, sua autonomia ficará substancialmente reduzida (amesquinhada), o que atrai a proibição contida no artigo 60, §4º, da Constituição.

b) a suposta autonomia dos entes subnacionais para alterar as alíquotas de destino é formal, pois aumentos e diminuições alcançarão todas as operações concluídas em seu território, o que, em caso de aumento, afetará a demanda local (deslocamento de consumidores para locais vizinhos, com alíquotas menores), e, em caso de redução, poderá prejudicar as contas públicas do ente;

c) a estrutura de alíquotas pretendida é inadequada, pois: (1) não permite calibração de alíquotas conforme as características de cada item ou em situações que a exijam; (2) a alíquota intermediária será, sozinha, maior do que a alíquota padrão de inúmeros países; (3) itens como saúde, educação e cesta básica serão tributados a por volta de 14%, quando a prática internacional é de incidência a percentuais muito menores; e (4) isso provocará aumento desproporcional de carga tributária para inúmeros bens, serviços e setores;

d) o Imposto Seletivo requer ajustes de modo a ter o seu escopo bem definido pelo texto constitucional, a fim de que ele não se torne mais um simples instrumento arrecadatório a serviço da União; e, por fim,

e) o açodamento da apreciação do Substitutivo em Plenário é inconveniente e suscita dúvidas quanto à sua regimentalidade; Tudo a evidenciar que o debate em torno da PEC 45 não se encontra maduro o suficiente para que siga para votação, o que reclama tempo, a fim de que se façam aprofundamentos e de que a tramitação seja feita com a responsabilidade que o tema requer.

[1] ATALIBA, Geraldo. Sistema constitucional tributário brasileiro. Revista dos Tribunais, 1968, p. 68 e ss.

[2] Banco Mundial. Doing Business – medindo a regulamentação do ambiente de negócios (2020). In: https://portugues.doingbusiness.org.

[3] Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial (ETCO) & ErnstYoung International. Desafios do contencioso tributário brasileiro(nov/2019). In: https://www.etco.org.br.

[4] SOUZA, Hamilton Dias de & Szelbracikowski, Daniel Corrêa. Teoria das Cortes Superiores em matéria tributária é o que garante a segurança jurídica. In: Estudos em Homenagem a Gilberto Ulhôa Canto. ABDF, 2020.

[5] MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires & BRANCO, Paulo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 6ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2011, pp. 117-150.

[6] SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 2ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2006, pp. 439-446.

[7] BRITTO, Carlos Ayres. Teoria da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2006.

[8] STF, RE 587.008/SP, Rel. Min. Dias Toffoli, Tribunal Pleno, DJ 02/02/2011.

[9] STF, ADI 2024/DF. Rel. Min. Sepúlveda Pertence, Plenário, DJ 22/06/2007.

[10] SILVA, Jose Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo.36ª Ed. São Paulo:Malheiros, 2013. PP. 68-70.

[11] SILVA, José Afonso da. Op. cit. ibid.

[12] DIAS DE SOUZA, Hamilton & FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Contribuições de Intervenção no Domínio Econômico e a Federação. In: Pesquisas Tributárias (nova série)n. 8. São Paulo: Revista dos Tribunais / Centro de Extensão Universitária, 2002, pp.58-106.

[13] MENDES, Gilmar Ferreira. Op. cit. PP. 143-144.

[14] SALDANHA, Nelson; REIS, Palhares Moreira; HORTA, Raul Machado. Formas simétrica e assimétrica do federalismo no estado moderno. In: Estudos jurídicos, políticos e sociais em homenagem a Glaucio Veiga. Curitiba: Juruá, 2000. p. 260;

[15] STF, ADI 2024-DF, Relator Sepúlveda Pertence, Tribunal Pleno, j. 03.05.2007, DJ 21.06.2007.

[16] STF, RE 591.033, Relatora Ministra Ellen Gracie, Tribunal Pleno, j. 17.11.2010, DJ 24.02.2011.

[17] STF, ADI 4228- DF, Relator Ministro Alexandre de Moraes, Tribunal Pleno, j. 01.08.2018, DJ 10.08.2018.

[18] STF, ADI-MC 926-5, voto do Ministro Carlos Velloso, Tribunal Pleno, j. 1º/9/93, DJ 6/5/94.

[19] DIAS DE SOUZA, Hamilton. Contribuições de intervenção no domínio econômico. São Paulo: IOB, 2001, p 19.

[20] DIAS DE SOUZA, Hamilton. Contribuições, medidas provisórias e reforma tributária. In: R.I.N., n. 20/13.

[21] Voto do Min. Gilmar Mendes na ADO 25-DF, STF-Pleno, DJ 12/08/17.

[22] voto do Min. Celso de Mello na ADI 1374, STF-Pleno, DJ 17/10/18.

[23] Ernst & Young International. Worldwide VAT, GST and Sales Tax Guide 2019. Vejam-se, por exemplo, os seguintes países: Áustria, Alemanha, Bélgica, Espanha, França e Itália.

[24] OECD. Consumption tax trends 2018. P. 66 e ss.

[25] África do Sul. Value-Added Tax Act (Law n. 89/1991).

[26] Ernst & Young International. Worldwide VAT, GST and Sales Tax Guide 2019. PP. 975 e ss.

[27] CHARLET, Alain & OWENS, Jeffrey. An International Perspective on VAT (2010). Tax Notes International, 59(12). PP. 943- 945. Ver também o Relatório do Davis Tax Committee, intitulado “First Interim Report on VAT to the Minister of Finance (2014). P. 75.

[28] GENDRON, Pierre-Pascal. Policy forum: Canada’s GST and Financial Services – Where are we now and where could we be? In: Canadian Tax Journal, 64:2 (2016). PP. 401-16.

[29] Governo da Índia. GST – concept and status. Relatório oficial do Comitê de Tributos Indiretos e Aduaneiros, da Receita Federal / Ministério das Finanças da Índia. Abril/2019.

[30] Ernst & Young International. Worldwide VAT, GST and Sales Tax Guide 2019.

[31] OECD Economic Surveys – Japan (apr/2019). In: www.oecd.org/eco/surveys /economic-survey-japan.htm..

[32] Faixas de alíquotas nos países citados: UE/Alemanha (19%, 7% e 0%), Canadá(15%/13% e 0%), África do Sul (15% e 0%) e Japão (10%, 8% e 0%), conforme dados da Ernst&Young e da OCDE, citados acima.

[33] SINGLETON, John. An Economic History of New Zealand in the Nineteenth and Twentieth Centuries. In: Economic History (feb/2010). Disponível em http://eh.net /encyclopedia/article/Singleton.NZ. Acesso em 17/10/2012.

[34] Inland Revenue Department (New Zealand). GST – Background Paper for Session 2 of the Tax Working Group (feb/2018).

[35] Ernst Young. “Worldwide VAT, GST and Sales Tax Guide”, 2022. In: ey.com.

[36] Instituto Atlântico. Proposta Atlântico comentada e comparada às PECs 45 e 110. In: atlântico.org.br.

[37] Ernst Young. “Worldwide VAT, GST and Sales Tax Guide”, 2022. In: ey.com.

[38] PWC. Wolrdwide tax sumaries online. In: taxsummaries.pwc.com. [39] As projeções de aumento de carga tributária da CNS consideravam uma alíquota de 12% para a CBS, apenas. Nesse sentido, mesmo com a alíquota, as conclusões daquele estudo se mantêm.

[40] Tesouro Nacional, Boletim — Estimativa da Carga Tributária do Governo Geral,
março/2023.

Ives Gandra da Silva Martins é professor emérito das universidades Mackenzie, Unip, Unifieo, UniFMU, do Ciee/O Estado de São Paulo, das Escolas de Comando e Estado- Maior do Exército (Eceme), Superior de Guerra (ESG) e da Magistratura do Tribunal Regional Federal – 1ª Região, professor honorário das Universidades Austral (Argentina), San Martin de Porres (Peru) e Vasili Goldis (Romênia), doutor honoris causa das Universidades de Craiova (Romênia) e das PUCs PR e RS, catedrático da Universidade do Minho (Portugal), presidente do Conselho Superior de Direito da Fecomercio-SP, ex-presidente da Academia Paulista de Letras (APL) e do Instituto dos
Advogados de São Paulo (Iasp).

Hamilton Dias de Souza é sócio fundador dos escritórios Dias de Souza Advogados Associados e Advocacia Dias de Souza, mestre e especialista em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).

Humberto Ávila é fundador do escritório Humberto Ávila Advocacia e professor-titular de Direito Tributário na Faculdade de Direito da USP.

Roque Antônio Carrazza é é fundador do escritório Roque Carrazza Advogados Associados e professor-titular de Direito Tributário da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

Revista Consultor Jurídico, 1 de julho de 2023, 7h04

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