14 de março 2019 às 8H35
O poder público constantemente viola direitos dos cidadãos. Referimo-nos aqui a aposentados e servidores que deixam de receber vencimentos/proventos que lhes são devidos por lei; empresários cujos contratos celebrados com o Estado são descumpridos e pessoas que, lesadas pelos entes públicos, ingressam em juízo para pleitear a recomposição de seus prejuízos. As estatísticas do CNJ demonstram que o poder público (considerados União, Estados e municípios) é o maior demandado no Judiciário e, consequentemente, o maior devedor do país.
Como todo direito possui alguma representação numérica, a jurisprudência reiterada dos tribunais estabelece que as dívidas devam ser atualizadas no tempo. Com isso preserva-se a essência dos direitos que são perseguidos em juízo, em especial quando os processos judiciais demoram décadas para serem julgados.
Uma relevante observação: os processos atrasam no Judiciário não apenas em função das limitações materiais e humanas de juízes e tribunais, mas especialmente porque o próprio Estado apresenta todo e qualquer tipo de recurso, incidente e oposição para procrastinar o encerramento dos processos nos quais é parte.
Há uma cultura do poder público de eternizar os processos, seja para aguardar eventuais alterações jurisprudenciais que lhes beneficiem (infelizmente comuns no Brasil) ou para “jogar a conta para frente”. A apresentação de incidentes protelatórios ocorre sobretudo depois do trânsito em julgado das ações, isto é, no curso de suas respectivas execuções ou ações rescisórias.
Em razão dessa demora sistêmica, a incidência de correção monetária é assegurada pela jurisprudência como forma de garantir ao credor do Estado o recebimento exato daquilo que lhe é devido. Nem mais, nem menos. Como dizem os tribunais, “A correção monetária não é um plus que se acrescenta, mas um minus que se evita”.
De tempos em tempos, porém, o Estado edita leis para burlar essa jurisprudência e estabelecer a correção monetária de seus débitos a partir de índices que não refletem a inflação. Foi o que aconteceu em 2009, quando da edição da Lei 11.960 que previu a incidência da TR como índice de correção monetária dos débitos públicos. A pretensão é uma só: reduzir a dívida do Estado às custas dos direitos dos cidadãos.
Em 2017 essa questão chegou ao STF que declarou a inconstitucionalidade da TR como índice de correção monetária na esteira dos votos proferidos pelos ministros Luiz Fux, Edson Fachin, Roberto Barroso, Marco Aurélio Mello (em parte), Rosa Weber, Ricardo Lewandowski e Celso de Mello. O tema não era propriamente novo. Em 1992 o STF já havia declarado a imprestabilidade da TR como índice de correção (ADI 493), posição também seguida em 2015 (ADI 4357). O fato é que, ao menos desde 2017, todos os tribunais do país seguiram o STF e determinaram a substituição da TR pelo IPCAe (IBGE) como índice de correção monetária dos débitos públicos não tributários.
Imaginava-se que a questão estava definitivamente sedimentada no Judiciário!
Ocorre que, em sessão realizada em 06/12/18, o STF iniciou a apreciação de embargos de declaração opostos pelos entes devedores e sinalizou com a parcial modificação de sua decisão, de modo a modular os efeitos de sua decisão e manter a aplicação da inconstitucional TR como índice de correção no período 01/07/09 (data de edição da Lei) até 25/03/15 (data em que o STF declarou a inconstitucionalidade do regime especial de pagamento dos precatórios de Estados/Municípios e de sua respectiva atualização pela TR).
Não é preciso muito esforço para perceber que a proposta de modulação de efeitos redundará na diminuição do patrimônio – logo, dos direitos – dos credores do Estado. Para se ter uma ideia, o patrimônio do credor decresce em 37,61% quando a atualização é feita pela TR e não pelo IPCA-e no período.
Como disseram os próprios entes públicos em manifestações apresentadas ao STF, são bilhões de reais retirados do patrimônio dos credores quando se deixa de atualizar as dívidas pelos índices que refletem a inflação para aplicar a TR que, em vários meses, resulta em zero ou valores negativos. Na ponta do lápis, é vantajoso para o Estado negligenciar direitos e congestionar o Judiciário quando este permite que suas dívidas sejam pagas depois de muitos anos e apenas em parte.
Se o STF modificar sua posição estaremos diante de um ajuste fiscal silencioso e quem pagará a conta desse ajuste fiscal não será toda a sociedade (como deveria ser em um Estado Democrático de Direito), mas apenas aqueles cidadãos que já foram lesados pelo Estado e que em razão disso não tiveram alternativa senão acionar o Judiciário. Nada mais injusto!
Há, ainda, outra questão intransponível. A modulação de efeitos só se justifica quando a decisão do Tribunal
Constitucional de alguma forma implica surpresa às partes ou à sociedade. Contudo, o STF vem declarando a imprestabilidade da TR como índice de correção monetária desde 1992. E essa tem sido a orientação de todos os tribunais e manuais de cálculos da Justiça Federal. Ora, se não houve modificação ou ruptura da jurisprudência sobre o tema, além de imoral, a modulação de efeitos é simplesmente incabível sob o prisma técnico. Seguramente o STF levará isso em consideração no julgamento que terá continuidade em 20 de março.
Hamilton Dias de Souza e Daniel Corrêa Szelbracikowski são, respectivamente, advogado, mestre e especialista em Direito Tributário; especialista em direito tributário; sócio fundador e sócio da Advocacia Dias de Souza.
Jornal Valor econômico , São Paulo, 14 de março de 2019 às 8h35
Artigos - dezembro 20 2024 at 14H43
Artigos - dezembro 19 2024 at 14H06
Artigos - dezembro 19 2024 at 13H58