20 de fevereiro 2019 às 13H30
No próximo dia 20 de março, o Supremo Tribunal Federal vai decidir se abre ou não uma brecha para que a União, estados e municípios paguem parte de suas dívidas judiciais, os precatórios, usando um índice de correção já julgado inconstitucional.
Os ministros do Supremo decidiram, mais de uma vez, que é inconstitucional o uso da Taxa Referencial (TR) para o cálculo dos precatórios, pois o índice, arbitrado pelo Banco Central para definir o rendimento das cadernetas de poupança, não reflete a inflação do período. O correto, definiu a corte, é atualizar os valores pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo Especial (IPCA-E), medição trimestral das variações de preços de bens de consumo pessoal.
Em julgamento de 2017, o ministro Luiz Fux afirmou que seria, no mínimo, contraditório a Fazenda usar a TR para calcular as próprias dívidas se não usa a taxa para calcular as metas de inflação. “Se o Estado não utiliza a caderneta de poupança como índice de correção quando tem o objetivo de passar credibilidade ao investidor ou de atrair contratantes, é porque tem consciência de que o aludido índice não é adequado a medir a variação de preços na economia. Por isso, beira a iniquidade permitir utilizá-lo quando em questão condenações judiciais”, afirmou.
O que está programado para entrar em discussão no Plenário da corte no próximo dia 20 é se as ações que tramitaram e geraram precatórios entre março de 2009 e março de 2015 podem ser pagas usando a TR. Isso porque a Lei 11.960, de 2009, havia definido o índice como o correto e, em 2015, o Supremo determinou a aplicação do IPCA-E na correção das dívidas do poder público.
O pedido de modulação da decisão veio de diversos estados e começou a ser julgado em dezembro de 2018, quando foi suspenso por pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes.
O motivo do pedido é simples de entender: um crédito de R$ 100 mil em maio de 2009 corrigido, pela TR, em dezembro de 2014 seria equivalente a R$ 103 mil. Esse mesmo valor corrigido pelo IPCA-E, no mesmo período, chega a R$ 137 mil.
Único a votar antes do pedido de vista, o relator dos embargos, ministro Luiz Fux, propôs que os efeitos da decisão valessem a partir de 23 de março de 2015 para os processos que ainda não transitaram em julgado. O caso tributário tem repercussão para 90 mil processos que estão parados em instâncias inferiores.
“Jogar o barro”
A corte terá que enfrentar a discussão sobre modular os efeitos de uma decisão mesmo sem que tenha havido mudança na jurisprudência. O fato de os estados brasileiros estarem em crise fiscal deve entrar na discussão, mas os efeitos do julgamento podem atingir também a União, que, diferentemente de estados e municípios, não registra problemas ou longas filas no pagamento de precatórios.
Os tributaristas chamam o problema criado com a aprovação da lei que permitiu o uso da TR, em 2009, de “jogar o barro”. Na prática, o governo aprova uma lei sabida inconstitucional para cobrar algo indevido ou pagar a menos, confiando que, mesmo que esta lei seja excluída do ordenamento jurídico, não será necessário devolver tudo o que arrecadou ou deixou de pagar enquanto a regra estava em vigor.
Assim, os legisladores se fiam na morosidade do Judiciário. Para não gerar uma quebra dos cofres públicos, bem como para não gerar uma enxurrada de ações judiciais, o STF costuma modular os efeitos desse tipo de decisão garantindo o direito à repetição do indébito apenas para quem já entrou com a ação até a data da decisão.
Na prática
Segundo especialistas, nos anos 1990, quando a Selic (taxa básica de juros)encontrava-se em um patamar elevado, o cálculo da TR resultava em um índice bem próximo ao da inflação mensal, de forma que a correção por meio deste índice era plenamente capaz de garantir a correta atualização monetária e a consequente manutenção do poder aquisitivo da moeda.
Entretanto, diante das mudanças financeiras do país, houve uma redução da taxa de juros, impactando diretamente sobre o cálculo da TR, que não conseguiu mais acompanhar o poder de compra da moeda. A substituição da TR pelo IPCA-E tem sido a proposta considerada mais benéfica à correção porque reflete a real inflação do país.
Sem impacto orçamentário
O impacto da discussão pode chegar a R$ 7 bilhões, argumenta a Advocacia Geral da União. De acordo com a AGU, caso seja determinado que as contas de liquidação ou em fase de execução antes da expedição dos precatórios sejam corrigidas monetariamente pelo IPCA-E, desde julho de 2009, os montantes a serem pagos pela União decorrentes de condenações terão um acréscimo de 48,82%.
Para o presidente da Comissão de Precatórios da Associação dos Advogados de São Paulo, Marco Antonio Innocentti, a expectativa é que o Supremo reitere a jurisprudência considerando a TR inconstitucional. “Os débitos não podem ser corrigidos, porque existem obrigações vencidas há 20 anos. Em São Paulo, por exemplo, há precatórios de 2001, duas décadas de atraso”, diz.
Segundo Innocentti, a TR não reflete a inflação atual do país. “Avalio como um disparate jurídico e uma afronta ao princípio da justa arrecadação. Todas as indenizações, o governo usa como base a Selic e na hora de pagar não leva em consideração a taxa de inflação do país.”
As alegações da AGU e procuradorias, diz o advogado, mostram números mentirosos para, de acordo com ele, “criar clima de terror”. “Colocam uma mentira deslavada que afirmar que se o STF aplicar o IPCA-E, criaria passivo. Isso é mentira porque as tabelas de correção monetária já determinam a utilização de IPCA-E. Se STF mantiver, não muda absolutamente nada. As contas de liquidação sempre utilizaram o IPCA-E. O que a AGU está fazendo é aliviar a situação dos municípios e estados. Entretanto, nenhum TJ tem usado a TR. Logo, não tem que se falar de prejuízo.”
Para o especialista no tema, se o STF modular a decisão e reconhecer a TR, poderá criar instabilidade ao permitir que União cobre parcelas retroativas. “Se os ministros entenderem que é possível a TR até março de 2015, abrirá a possibilidade que União e estados cobrem diferenças de precatórios já pagos, o que afronta a própria Constituição Federal que é clara ao fixar o IPCA-E”, defende.
Orçamento solucionado
Também para o tributarista Daniel Szelbracikowski, não há risco orçamentário como é dito pelos estados e União.
“Foram editadas várias emendas constitucionais que solucionam essas questões, logo não gera um risco de prejuízo. A União não deveria participar. Não tem nenhum problema orçamentário, ela quita seus precatórios em dia sem nenhum problema e há muitos anos já atualiza suas dívidas pelo IPCA-E e conta em todas as leis anuais orçamentárias e lei de diretrizes. Interessante perceber que o próprio STF falou que não era o caso de modular para a União”, avalia.
Szelbracikowski espera que o STF mantenha a estabilidade da jurisprudência sem modular os efeitos já decididos. “O STF entende isso desde 1992, que a TR não é índice de correção monetária. Ela pode ser um indexador, de remuneração, mas ela não é índice de correção monetária porque ela não reflete a inflação”, diz.
Segundo ele, a proposta de modulação do ministro Fux causou surpresa. “Se houver a modulação, é determinado que a TR seja aplicada em um período, de julho de 2009 até 2015, o que gera um decréscimo no patrimônio dos credores de 37%.”
Para o especialista, há várias questões de ordem técnica que impedem a modulação. “Não teve mudança de jurisprudência. Se não teve mudança de jurisprudência, não tem motivos para modular essa decisão. Em segundo lugar, houve uma modulação para os precatórios em 2015, mas lá fazia sentido, porque alguns precatórios já tinham sido pagos. Se o STF não reconhecesse a inconstitucionalidade da TR, implicaria a necessidade de expedição de novos precatórios”, defende.
Trânsito em julgado
O especialista Fábio Lemos Cury espera que não sejam acolhidos os embargos, salvo para os casos em relação que já houve trânsito em julgado. “Restringir para além desses casos a abrangência do julgamento do Plenário como já fez o ministro Fux seria restringir demais os efeitos”, explica.
“O que não se pode conceder é que o Fisco federal possa, por exemplo, ter seus créditos remunerados pela Selic e ao mesmo tempo impor aos contribuintes os critérios diferentes e muito menores e que sequer compõem a inflação”, afirma.
Equilíbrio fiscal
Para o especialista em Direito Tributário Dalton Miranda, a modulação deve buscar o meio-termo. “Nem tanto ao cidadão e nem tanto ao Estado. A melhor escolha é uma solução política-econômica-financeira, creio em razão dos sofríveis cofres públicos”, avalia.
Quanto à correção dos precatórios, ele acredita que o índice a ser observado tem de ser aquele que menos prejuízo financeiro cause ao credor. “Pois quando derrotado o cidadão, o Estado não tem escrúpulos em pesar sua ‘mão forte'”, explica.
O tributarista Breno Dias de Paula espera que os ministros respeitem a coisa julgada para a segurança jurídica e a Constituição Federal. “A matéria é polêmica mas não podemos desconsiderar a imutabilidade da coisa julgada, uma vez que na maioria das sentenças expressamente determinam a incidência de juros moratórios no período entre a data da expedição e a do efetivo pagamento do precatório principal”, diz.
Mais custos
O também tributarista Rafael Figueiredo diz que a decisão do STF pode representar uma grande frustração para os detentores de crédito, que desde o julgamento em setembro de 2017 estavam confiantes que teriam direito à atualização pelo IPCA e acabaram sendo surpreendidos pela suspensão dos efeitos da decisão um ano depois.
“Muitas decisões judiciais já estavam aplicando o IPCA, em consonância com que o STF decidiu em 2017, no entanto, agora podem ter que ser reformadas, gerando grande frustração aos credores dos precatórios. Por outro lado, os estados e municípios que se encontram com dificuldades financeiras para arcar com o pagamento dos precatórios podem conseguir uma redução das suas dívidas se o STF postergar a aplicação do IPCA”, aponta.
Na avaliação do tributarista Julio Morosky, o julgamento deve reconhecer a isonomia entre a Fazenda Pública e os contribuintes nas causas que envolva matéria tributária. “Para estes casos a condenação da Fazenda Pública deve utilizar os mesmos índices de correção monetária e juros moratórias aplicáveis nas condenações dos contribuintes.”
RE 870.947
Gabriela Coelho é correspondente da revista Consultor Jurídico.
Revista Consultor Jurídico, 20 de fevereiro de 2019 às 13h30
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