22 de novembro 2018 às 17H54
Em 20 de setembro de 2017 o Plenário do Supremo Tribunal Federal concluiu o julgamento do RE 870.947 e declarou a inconstitucionalidade do artigo 5º da Lei 11.960/09 que impunha a adoção da taxa referencial (TR) como índice de correção monetária das condenações impostas à Fazenda Pública, sob o fundamento de que a TR não reflete adequadamente a corrosão do poder de compra da moeda. Por isso, não poderia ser utilizada como índice de correção monetária.
Publicada a ata de julgamento, todos os tribunais do país se alinharam ao entendimento do STF, manifestado sob o ângulo da repercussão geral, inclusive o STJ que julgou a matéria sob a sistemática repetitiva[1].
Para a surpresa dos jurisdicionados, pouco mais de um ano depois da conclusão julgamento, o relator do recurso no STF, ministro Luiz Fux, deferiu monocraticamente o pedido dos entes federativos estaduais para atribuir efeito suspensivo aos embargos de declaração opostos em face do acórdão do Plenário.
Assim o fez porque reputou “relevante a fundamentação expendida pelos entes federativos embargantes no que concerne à modulação temporal dos efeitos do acórdão embargado” e por entender que “a imediata aplicação do decisum embargado pelas instâncias a quo, antes da apreciação por esta Suprema Corte do pleito de modulação dos efeitos da orientação estabelecida, pode realmente dar ensejo à realização de pagamento de consideráveis valores, em tese, a maior pela Fazenda Pública, ocasionando grave prejuízo às já combalidas finanças públicas”.
Apesar do tom de cautela adotado, a medida tem o condão de causar ainda mais insegurança jurídica.
Isso porque a jurisprudência dos vinte e sete TJs, dos cinco TRFs e do STJ já estava alinhada à posição do STF, no sentido da inaplicabilidade da TR como índice de correção monetária dos débitos da Fazenda Pública[2]. Disso decorre que (i) títulos exequendos já foram formados, (ii) contas judiciais já foram homologadas e (iii) precatórios já foram expedidos com a exclusão da TR e a aplicação do IPCA-E como índice de correção monetária, tudo em obediência à jurisprudência consolidada pelos Tribunais em alinhamento à posição adotada pelo próprio STF.
Nesse contexto, a atribuição de efeito suspensivo aos embargos de declaração apenas tem o condão de criar mais incerteza.
De um lado, porque possibilita que os entes públicos peçam a revisão das situações já consolidadas que apenas seguiram orientação jurisprudencial vigente do próprio STF. A propósito, indaga-se: os títulos exequendos formados com a exclusão da TR serão revistos? As contas homologadas com a exclusão da TR serão reabertas? Os precatórios já expedidos com a exclusão da TR serão cancelados?
A confirmar esse estado de incerteza, recentemente o TJSC reformou decisão anterior que determinava a aplicação do IPCA-E como índice de correção monetária para assentar a aplicação da TR enquanto o STF não finalizasse a discussão. Assim o fez em razão da atribuição de efeito suspensivo aos embargos de declaração dos Estados [3].
De outro lado, a medida põe em xeque a prevalência da posição jurisprudencial até então adotada pelo STF e seguida, conforme visto, pelas demais esferas do Poder Judiciário, na contramão da segurança jurídica que pressupõe, dentre outras, a estabilidade das orientações jurisprudenciais.
Observe-se que a atribuição de efeito suspensivo aos aclaratórios dos Estados admitiu, ainda que em tese, a possibilidade de modulação dos efeitos do acórdão proferido pelo STF. Ocorre que não há razão de segurança jurídica que permita modular os efeitos da aludida decisão. Muito pelo contrário, a segurança jurídica milita a favor dos credores das fazendas públicas.
Como se sabe, por razões de segurança jurídica ou excepcional interesse social (artigo 27 da Lei 9.868/99), o STF pode mitigar o plano da eficácia[4] de suas decisões, como forma de “prevalência do interesse público para assegurar, em caráter de exceção, efeitos pro futuro à declaração incidental de inconstitucionalidade”[5]. Trata-se de juízo de ponderação e “diferenciação entre o plano da norma (Normebene) e o plano do ato concreto (Einzelaktebene)”[6] que tem por objetivo verificar se “a supressão da norma poderá ser mais danosa para o sistema do que a sua preservação temporária”[7]. O desiderato da modulação de efeitos é imprimir eficácia ao próprio julgamento da Corte Constitucional, naquilo em que não conflite com a segurança jurídica ou “outro princípio constitucional”[8].
Exatamente porque a segurança jurídica é o vetor axiológico da modulação de efeitos, esta pode ocorrer quando houver alteração de entendimento dos Tribunais. Afinal, alterações abruptas costumam causar insegurança jurídica. Nesse sentido é a jurisprudência[9], doutrina[10] e legislação (artigo 927, § 3º do CPC). Partindo dessa mesma premissa é inadmissível a modulação de efeitos quando não haja qualquer ruptura com a orientação jurisprudencial existente a respeito de determinado assunto.
É o que ocorre na espécie.
Ao menos desde 1992 o STF tem assentado que “a taxa referencial (TR) não é índice de correção monetária, pois, refletindo as variações do custo primário de captação dos depósitos a prazo fixo, não constitui índice que reflita a variação do poder aquisitivo da moeda”[11]. Esse entendimento foi reiterado em 2014, por ocasião do julgamento das ADIs 4.357 e 4.425, em que se declarou a inconstitucionalidade do §12 do artigo 100, da CF/88 no ponto em que determinou a adoção da TR como correção monetária dos precatórios no período constitucional de pagamento. Em 2017 esse histórico jurisprudencial foi expressamente ratificado pelo STF, no julgamento do RE 870.947, quando se aludiu à “inadequação histórico-jurisprudencial” da TR como índice de correção monetária das dívidas do poder público.
Coerente com a jurisprudência, desde 1997 o Manual de Cálculos da Justiça Federal afasta a aplicação da TR de mar/91 a dez/91 e determina o cálculo pelo INPC e, desde 2001, referido manual prevê expressamente o IPCA-E como o índice de correção monetária.
Consequentemente, a segurança jurídica aponta para o reestabelecimento do status quo ante, o que torna incabível a modulação de efeitos por esse fundamento.
Sob outro ângulo, a atribuição de efeitos prospectivos requerida pelos Estados não encontra guarida na modulação de efeitos realizada nas ADIs 4.357 e 4.425. Isso porque as situações em debate naquelas ações e na repercussão geral de que se cuida são distintas. Nas supracitadas ADI’s estava em jogo o índice de atualização dos precatórios já expedidos durante o prazo constitucional de pagamento desses precatórios. No RE 870.947, por outro lado, discute-se o índice que deve ser considerado nas condenações da fazenda pública relativamente aos processos que ainda estão em curso. O período debatido na repercussão geral é anterior à expedição do precatório. Logo, obviamente não diz respeito ao prazo constitucional para seu pagamento. É importante rememorar que a repercussão geral do tema foi reconhecida no RE 870.947 exatamente porque havia dúvida quanto à possibilidade de aplicação – automática – do decidido nas ADIs 4.357 e 4.425 para as condenações em geral do Poder Público (e não apenas para os precatórios)[12].
Portanto, embora haja coincidência quanto ao tema de fundo (constitucionalidade do índice), os objetos e as implicações práticas dos julgamentos das ADIs e da repercussão geral de que se cuida são absolutamente diversos, o que impede a mesma atribuição de efeitos pro futuro na hipótese em análise.
De fato, a prospecção de efeitos realizada nas ações diretas tinha razão de ser, pois objetivava evitar a reabertura de precatórios já pagos. Na hipótese em tela isso não ocorre. Afinal, o período objeto de análise no RE 870.947 engloba casos que ainda estão em discussão na fase de conhecimento e de execução nos quais se controverte sobre direitos, critérios de cálculos, exequibilidade do título, etc., tudo antes de qualquer ato de expedição e pagamento de precatório.
Assim, mesmo se houvesse a necessidade de reforma de algumas decisões judiciais em razão da modificação dos índices devidos, isso não implicaria qualquer risco imediato para os orçamentos dos entes da federação.
Com efeito, mesmo que se admitisse a expedição – no futuro – de todos os precatórios relacionados à diferença de índices hoje debatida nos processos judiciais em curso, isso não implicaria qualquer risco imediato aos orçamentos públicos, considerando o novo regime especial de parcelamento instituído pela EC 99/17 (artigo 101 do ADCT) que possibilita (i) a utilização dos depósitos judiciais/administrativos e de valores de precatórios e RPVs não levantados até 31/12/2009, (ii) a tomada de empréstimos sem observância do limite de endividamento e da vedação de vinculação de receita, (iii) a criação de uma linha de crédito especial fornecida diretamente pela União ou por meio das instituições financeiras oficiais sob seu controle, tudo em ordem à possibilitar o pagamento regular dos precatórios, o que não existia à época da apreciação das ações diretas supramencionadas.
Por outro lado, a modulação dos efeitos da decisão tornaria praticamente inócua a inconstitucionalidade já declarada, o que contraria o interesse social. É que, entre a data de aplicação da Lei 11.960/09 até o julgamento de mérito do RE 870.947 (01/07/09 a 20/09/17), o IPCA-E acumulado atualizou em 64,23% o valor da moeda, enquanto a TR chegou a apenas 8,08%[13]. Portanto, eventual modulação que permitisse a utilização da TR como índice de correção monetária no supracitado período implicaria diminuição real de 56,15% do patrimônio dos credores.
No mesmo período, a correção dos débitos federais não-tributários de particulares inscritos na dívida ativa foi realizada pela taxa Selic[14]. Isso não é privilégio da União: nos municípios de São Paulo[15] e Belo Horizonte[16], dentre outros, as dívidas não-tributárias foram e continuam sendo atualizadas pelo IPCA-E, sem contar a incidência dos juros de 1% a.m. Não há notícia de um único ente federativo que utilize a TR como índice de atualização de seus créditos.
Nesse sentido, a modulação pretendida não apenas contraria a segurança jurídica, mas desconsidera o direito de propriedade e o princípio da igualdade (artigo 5º, caput, XXII da CF/88).
Por fim, mesmo se fosse o caso de modular-se os efeitos da decisão proferida em sede de repercussão geral em razão de supostos riscos orçamentários (o que não procede, cf. visto acima), quando menos seria de rigor excepcionar os débitos federais por razões de coerência com o decidido pelo STF na AC 3.764 e nas ADIs 4.357 e 4.425.
Primeiro, porque é público e notório[17] que a União não tem problemas orçamentários para a quitação de seus débitos judiciais, de modo que não seria adequado, nem proporcional ou isonômico submeter os débitos federais ao mesmo tratamento dos débitos estaduais e municipais. Segundo, porque os débitos federais já eram atualizados pelo IPCA-E muito antes do advento da Lei 11.960/09, o que se aplica também aos precatórios ao menos desde o exercício orçamentário de 2014[18]. Terceiro, porque tal distinção foi expressamente apontada pelo STF na AC 3.764, quando se assentou que “Inexiste fundamento jurídico-material que justifique a aplicação da TR como índice de correção monetária dos precatórios/RPVs devidos pela Fazenda Pública federal, uma vez que a União e suas entidades estão atualmente em dia com suas obrigações”[19].
À luz dessas ponderações, verifica-se que a rejeição da modulação de efeitos é o caminho para garantir certeza sobre o passado da correção monetária no país.
[1] REsps ns. 1.495.146, 1.492.221 e 1.495.144, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, 1ª Seção, DJ 02/03/2018.
[2] TRF1, AP 0068177-40.2016.4.01.9199, Rel. Des. Fed. João Luiz de Sousa, 2ª Turma, DJ 04/09/2018; TRF2, AP 0185760-57.2017.4.02.5101, Rel. Des. Fed. Ricardo Perlingeiro, 5ª Turma Especializada, DJ 29/08/2018; TRF3, AP 0037030-98.2015.4.03.9999, Rel. Des. Fed. Inês Virgínia, 7ª Sétima Turma, DJ 21/09/2018; TRF4, AP 0013111-19.2016.4.04.9999, Rel. Des. Fed. Osni Cardoso Filho, 5ª Turma, DJ 27/07/2018; TRF5, AI 0009581-72.2014.4.05.0000, Rel. Des. Fed. Alexandre Costa de Luna Freire, 1ª Turma, DJ 28/08/2018; TJPA, AP 2018.03364880-15, Rel. Des. Rosileide Maria da Costa Cunha, 1ª Turma de Direito Público, DJ 22/08/2018; TJPI, RN 2013.0001.003147-7, Rel. Des. Oton Mário José Lustosa Torres, Tribunal Pleno, J. 04/06/2018; TJDFT, AP 20160110857476, Rel. Des. Luís Gustavo B. de Oliveira, 4ª Turma Cível, DJ 10/10/2018; TJBA, RN 0000775-60.2014.8.05.0082, Rel. Des. Jose Jorge Lopes Barreto da Silva, 5ª Câmara Cível, DJ 10/10/2018; TJSP, AP 1037550-28.2015.8.26.0053, Rel. Des. Osvaldo Magalhães, 4ª Câmara de Direito Público, DJ 16/10/2018; TJRS, AP 70077929552, Rel. Des. Laura Lozada Jaccottet, 2ª Câmara Cível, J. 26/09/2018.
[3]TJSC, REEX n. 0300828-07.2015.8.24.0113, de Camboriú, Rel. Des. João Henrique Blasi, 2ª Câmara de Direito Público, J. 09/10/2018.
[4] Voto Ministro Gilmar Mendes no HC 82.959, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 01/09/06.
[5] RE 276.546, Rel. Min. Maurício Corrêa, Plenário, DJ 21/05/2004.
[6] Idem nota 5.
[7] Idem nota 5.
[8] Voto Ministro Gilmar Mendes na ADI 3819, Rel. Min. Eros Grau, Plenário, DJ 23/03/08.
[9] v.g. RE 593849/MG, Rel. Min. Edson Fachin, Plenário, DJe 19/10/2016.
[10] Novo Código de Processo Civil Comentado/Daniel Amorim Assumpção Neves. – 3. Ed. rev. e atual. – Salvador: Ed. JusPodvim, 2018. P. 1563.
[11] ADI 493, Rel. Min. Moreira Alves, Tribunal Pleno, DJ 04/09/1992.
[12] “Tendo em vista a recente conclusão do julgamento das ADIs nº 4.357 e 4.425, ocorrida em 25 de março de 2015, revela-se oportuno que o Supremo Tribunal Federal reitere, agora em sede de repercussão geral, as razões que orientaram aquele pronunciamento da Corte, o que, a um só tempo, contribuirá para orientar os tribunais locais quanto à aplicação do decidido pelo STF, bem como evitará que casos idênticos cheguem a esta Suprema Corte. (…) Não obstante isso, diversos tribunais locais vêm estendendo a decisão do Supremo Tribunal Federal nas ADIs nº 4.357 e 4.425 de modo a abarcar também a atualização das condenações (e não apenas a dos precatórios)” (RE 870947-RG, Rel. Min. Luiz Fux, Plenário Virtual, DJ 27/04/2015)
[13] Dados obtidos em https://bit.ly/1o4zwHS.
[14] Cf. arts. 29, 30 e 37-A da Lei 10.522/02.
[15] Art. 1º da Lei Municipal 13.275/02.
[16] Art. 14, §1º da Lei Municipal 8.147/00.
[17] “No plano da União, isso não ocorre. Veja que a União está em dia com seus precatórios” (Voto vogal do Min. Gilmar Mendes, ADI 4.425 QO, Rel. Min. Luiz Fux, Plenário, DJ 04/08/2015).
[18] Cf. art. 27 da Lei 12.919/13.
[19] Rel. Min. Luiz Fux, DJ 26/03/2015.
Rhuan Rafael Lopes de Oliveira é advogado na Advocacia Dias de Souza e especializando em Direito Tributário.
Daniel Corrêa Szelbracikowski é advogado, mestre em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), especialista em Direito Tributário e sócio da Advocacia Dias de Souza.
*Veículo:* Conjur, 22 de novembro de 2018 às 17h54
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