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01 de fevereiro 2007 às 9H44

A desconsideração da personalidade jurídica e a responsabilidade tributária dos sócios e administradores

Por Hamilton Dias de Souza e Hugo Funaro

1. INTRODUÇÃO.

 

Um dos principais temas de que se ocupam os tributaristas, na atualidade, é a relação entre o Direito Privado e o Direito Tributário. Embora remonte à gênese do Direito Tributário como ramo jurídico autônomo[1], o debate ganhou fôlego novamente a partir da edição da Lei Complementar nº 104/2001 e do novo Código Civil (Lei nº 10.406/2001).

Com efeito, a Lei Complementar nº 104/2001 permitiu à autoridade administrativa “desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária”. Por seu turno, o Código Civil positivou a figura do abuso de direito, ao estabelecer que a autonomia da vontade deve ser exercida com observância da sua finalidade econômica ou social, da boa-fé e dos bons costumes, atribuindo competência exclusiva aos juízes para pronunciar os defeitos dos atos e negócios jurídicos (arts. 168, § 1º, 177, 185 e 187 do Código Civil).

Nesse contexto, discute-se a aplicação dos conceitos indeterminados do Código Civil na conformação do fato gerador da obrigação tributária, cujos elementos devem ser previamente definidos em lei (art. 150, I e III, da Constituição Federal). O cerne da discussão está em saber se os atos e negócios jurídicos formalizados de acordo com o direito privado podem ser desconsiderados pela administração fazendária com base em critérios subjetivos, ainda que com o pretexto de assegurar uma pretensa eficácia positiva do princípio da capacidade contributiva (art. 145, §1º, da Constituição Federal).

O assunto sugere considerações as mais variadas. No presente trabalho será examinada, especificamente, a possibilidade de aplicação ao Direito Tributário do instituto da desconsideração da personalidade jurídica, prevista no art. 50 do Código Civil, assim redigido:

“Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica”.

Como se depreende, ficou facultado ao juiz estender a responsabilidade por obrigações contraídas em nome da pessoa jurídica aos seus administradores ou sócios, quando se verifique desvio de finalidade, ou confusão patrimonial.

Diante disso, a questão que se coloca é se pode haver responsabilidade dos administradores ou sócios por débitos fiscais da pessoa jurídica, com base no art. 50 do Código Civil. Vejamos.

 

2. A PERSONALIDADE JURÍDICA E SUA DESCONSIDERAÇÃO.

 

Sem embargo das teorias construídas para explicar a existência da pessoa jurídica[2], não se pode negar que a personalidade jurídica das sociedades é instituto acolhido pelo direito por ser importante à vida social e econômica.

A Constituição Federal inclusive dedica um Capítulo para cuidar dos princípios gerais aplicáveis à atividade econômica, disciplinando a atuação de empresas públicas e privadas, com vistas a promover a justiça social (Capítulo I – “Dos Princípios Gerais da Atividade Econômica”, do Título VII – “Da Ordem Econômica e Financeira”).

Há, portanto, inequívoco interesse em promover a criação de centros autônomos de direitos e obrigações, com autonomia patrimonial e segregação de responsabilidade em relação aos sócios, para estimular o desenvolvimento da atividade econômica e a consecução dos objetivos republicanos[3].

A personalidade jurídica da empresa surge, assim, como um dos principais pilares de sustentação da livre iniciativa. Deve, pois, ser respeitada na medida do possível, sob pena de se configurar notável obstáculo ao regular desenvolvimento dos negócios. Por conseguinte, a desconsideração da personalidade jurídica somente se justifica em situações excepcionais, para assegurar que o direito não seja lesado através da manipulação da pessoa jurídica[4].

 

2.1. TEORIA GERAL DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA.

 

Em sua concepção original, pauta-se a teoria da desconsideração pelo afastamento da personalidade jurídica nas hipóteses específicas de fraude ou abuso, com base na eqüidade[5]. Nessas situações, o sócio ou o administrador utiliza a pessoa jurídica com finalidade diversa da que justifica sua existência, como anteparo para mascarar atos realizados em seu próprio interesse. Através da desconsideração, o ato lícito aparentemente praticado pela pessoa jurídica passa a ser imputado à pessoa física responsável, tornando-se ilícito[6].

Não se trata de despersonalizar a sociedade, com sua conseqüente extinção, mas sim de levantar o manto da personalidade jurídica num caso concreto, para alcançar quem perpetrou determinado ato por seu intermédio e que, de outro modo, não seria responsabilizado pelo adimplemento de certa obrigação[7].

Assim, a versão clássica da teoria da desconsideração pressupõe a responsabilidade limitada dos sócios e administradores[8] e o uso abusivo da personalidade jurídica para encobrir atos praticados em proveito pessoal daqueles e em prejuízo de terceiros[9].

 

2.2. A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO DIREITO BRASILEIRO. AS TEORIAS MAIOR E MENOR.

 

Nada obstante, a experiência brasileira conhece leis (além de doutrina e jurisprudência) que denominam impropriamente de desconsideração da personalidade jurídica hipóteses que não se confundem com a teoria tradicional. Por isso, a doutrina adverte ser necessário distinguir entre as teorias maior e menor da desconsideração da personalidade jurídica[10].

O pressuposto da teoria maior é a manipulação da pessoa jurídica mediante fraude ou abuso. A par disso, distinguem-se as formulações subjetiva e objetiva da teoria maior da desconsideração. A primeira destaca o intuito do sócio de frustrar o interesse do credor. A segunda fundamenta-se, primordialmente, na confusão patrimonial[11].

Por sua vez, a teoria menor de teoria nada tem, na medida em que simplesmente ignora a separação patrimonial entre a pessoa jurídica e seus integrantes, imputando responsabilidade de qualquer natureza (pessoal, solidária, subsidiária) ao sócio ou administrador, ou autorizando a superação da personalidade jurídica diante da mera frustração do interesse do credor.

Realmente, não faz sentido falar em desconsideração quando preexista norma jurídica imputando responsabilidade a alguém. Se o sócio ou o administrador for legalmente responsável pelas obrigações contraídas pela sociedade, não há necessidade de desconsideração da personalidade jurídica para alcançar seu patrimônio, pois basta verificar-se a hipótese legalmente prevista para que o liame obrigacional se instaure automaticamente[12]. Nem tampouco cabe invocar a simples insatisfação do credor como conduta abusiva, passível de justificar a superação do princípio da separação patrimonial entre a pessoa jurídica e seus componentes. O abuso pressupõe o uso anormal de um direito, não o mero inadimplemento da obrigação.

Exemplo da aplicação da teoria menor ao direito brasileiro é o §5º do art. 28 do Código de Defesa do Consumidor, que autoriza a desconsideração da personalidade jurídica pelo juiz “sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores”[13]. Também o art. 18 da Lei 8.884/94[14], o art. 2º, §2º da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT)[15], o art. 4º da Lei nº 9.605/98 (Lei do Meio Ambiente)[16], entre outros, criam hipóteses peculiares de responsabilidade que não se amoldam à teoria da desconsideração da personalidade jurídica tal como concebida[17].

Há, portanto, de ter-se cautela quando se fala na aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, para bem delimitar o objeto da análise. Os requisitos e condições para a superação da personalidade jurídica variam de acordo com o tratamento conferido pela norma jurídica aplicável ao tipo de relação jurídica considerada e nem sempre a expressão guarda pertinência com a teoria original.

Para os fins do presente trabalho, importa examinar se a desconsideração da personalidade jurídica pode ser invocada pelo Fisco com fundamento unicamente no art. 50 do Código Civil, quando na condição de credor. O tema nada tem a ver com as normas que tratam da figura em outros campos da experiência jurídica e, dessa forma, nenhuma referência a elas será feita.

 

2.3. A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO CÓDIGO CIVIL.

 

O art. 50 do Código Civil inspirou-se na teoria maior da desconsideração, porém, com alguns temperamentos, ao permitir a agressão do patrimônio dos administradores ou sócios da pessoa jurídica apenas e tão-somente quando caracterizado abuso da personalidade jurídica em razão de desvio de finalidade ou confusão patrimonial[18].

A norma deixa claro que a desconsideração se aplica somente a determinados atos, praticados com abuso, e sua efetivação depende de provocação da parte prejudicada (ou, excepcionalmente, do Ministério Público). Dessa forma, a desconsideração implica a criação de norma individual responsabilizando os sócios ou administradores por obrigações específicas, mediante apreciação eqüitativa do juiz. A responsabilidade assim criada vale para o caso concreto, de sorte que pode um credor ser beneficiado, mas outro não, tudo dependendo do ingresso em juízo e da convicção do magistrado.

Contudo, é importante notar que o abuso de personalidade jurídica, embora compreendido no conceito maior de abuso de direito, com ele não se confunde, como a parte não se confunde com o todo. O trato das matérias é diverso.

O abuso de direito é regulado no artigo 187 do Código Civil e sempre implica ilicitude, com as conseqüências dela decorrentes, notadamente a reparação do dano (art. 927 do Código Civil). A identificação do abuso do direito envolve um processo mental particular, pois a figura não se caracteriza a partir da violação de uma regra específica, mas sim pelo uso excessivo, anormal, de um direito legítimo à primeira vista, em contrariedade aos princípios que informam o ordenamento jurídico. Haverá abuso de direito quando o ato exceder limites impostos pelo “seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”. A figura envolve atividade integrativa do ordenamento, calcada em princípios éticos.

Já o abuso de personalidade jurídica implica responsabilidade do agente, mas não torna o ato sempre ilícito e nem o eiva de nulidade. Basta dizer que se o credor não reclamar, ou se a pessoa jurídica solver a dívida, não haverá extensão dos efeitos das relações obrigacionais aos sócios. Nesse contexto, ações que envolvam ilicitude “per se” estão fora do campo do abuso da personalidade jurídica.

Logo, o campo de pesquisa para a correta interpretação do art. 50 do Código Civil exclui, como causa da desconsideração, condutas ilícitas marcadas por dolo, simulação ou fraude. Para estas, há previsão de sanções ou a atribuição de responsabilidade nos ramos próprios do direito. Só haverá espaço para a desconsideração quando não existam regras específicas que disciplinem as conseqüências de determinados atos jurídicos.

Além disso, a margem de subjetividade do juiz é mais restrita em se tratando de abuso da personalidade jurídica do que nos casos genéricos de abuso de direito. O abuso de direito pode ser verificado a partir da violação a princípios e objetivos gerais do ordenamento. O abuso de personalidade jurídica somente se caracteriza “pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial”.

Assim, nem toda conduta que possa ser considerada abusiva de acordo com o art. 187 configurará o abuso da personalidade jurídica previsto no art. 50, ambos do Código Civil. Inexistindo desvio de finalidade ou confusão patrimonial, não há que se falar em desconsideração.

 

2.3.1. DESVIO DE FINALIDADE E CONFUSÃO PATRIMONIAL.

 

A desconsideração da personalidade jurídica, para efeitos civis, surge quando o ato é praticado pela pessoa jurídica, tem a aparência de legalidade, o sócio ou administrador é seu órgão e a representa, mas abusa de seu poder, prejudicando terceiros por desviar-se dos objetivos da empresa, perseguindo objetivos próprios ou de outros (alheios ao da empresa), ou misturando seus negócios pessoais com os da pessoa jurídica (confusão patrimonial).

 

2.3.1.1. DESVIO DE FINALIDADE.

 

É comum entender-se bastante a inobservância ao contrato social ou estatuto para caracterizar-se o desvio de finalidade. Todavia, o objeto social não encerra todas as atividades que se inserem nos fins da empresa. Múltiplas ações são tomadas no interesse da pessoa jurídica e que não constam expressamente de seu objeto social[19].

O desvio de finalidade se configura quando os atos são alheios ao interesse da empresa. A questão não é saber se a pessoa jurídica foi prejudicada ou beneficiada, pois a atividade econômica é sujeita a intempérie e nem sempre ações tomadas pelos órgãos de gestão da empresa implicam resultado positivo. O que importa verificar é se o ato guarda relação de pertinência com o tipo de função desenvolvida pela pessoa jurídica, tendo em vista a finalidade econômica, social, que justifica a sua existência jurídica autônoma. Se o ato for praticado no interesse próprio do sócio, que usa a pessoa jurídica, ainda que sem prejudicá-la, há desvio[20].

Por conseguinte, não cabe a desconsideração e a responsabilização de sócio ou administrador quando se verifique ação tomada no interesse da pessoa jurídica, máxime se autorizada pelos órgãos deliberativos competentes. A atividade empresarial implica, muitas vezes, riscos e ações que não se compreendem claramente no objeto social. Se for feito negócio eventual por entender-se que é uma boa oportunidade para produzir lucro de que a empresa necessita, não há desvio de finalidade.

Portanto, só se verifica o abuso de personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, quando houver desvio de função. O que se fez não era próprio da pessoa jurídica, era alheio ao seu interesse, não se compreendia em sua função.

Outrossim, afigura-se importante distinguir se o agente atua na qualidade de representante da pessoa jurídica, ou por sua conta e risco. Se as características do negócio permitem supor tratar-se de ato praticado em nome e interesse próprios do agente, somente a ele devem ser imputadas as conseqüências legais. Será caso de mera imputação ou qualificação jurídica do fato, não havendo necessidade de desconsiderar a personalidade jurídica.

Um bom exemplo para ilustrar as diferentes situações é o da celebração de contrato com pessoa jurídica contendo cláusula de realização de determinado serviço pessoalmente por determinado sócio ou funcionário. Se a pessoa jurídica está regularmente constituída e provê os meios necessários à prestação do serviço por intermédio de seus sócios ou funcionários, a atividade considera-se realizada pela sociedade, ainda que deva necessariamente ser executada por um de seus integrantes. Se, apesar de executada com recursos da pessoa jurídica, a atividade interessar   preponderantemente a sócio ou administrador, poderá se configurar abuso de personalidade jurídica, caso presentes os requisitos do art. 50 do Código Civil. Por fim, se a pessoa jurídica não tiver relação com a atividade desenvolvida pelo sócio ou administrador, limitando-se a ceder-lhes o nome, considera-se responsável apenas o executor do serviço. Note-se que, no primeiro cenário, a sociedade atua regularmente, fornecendo meios para a prestação do serviço,  ainda que através de um único membro; no segundo, a sociedade afasta-se dos seus objetivos, ao viabilizar a prestação do serviço no interesse preponderante do sócio ou administrador; e, no terceiro, há interposição da sociedade para dissimular a prestação de serviços por um de seus membros.

Outro exemplo. O sócio ou administrador age através de pessoa jurídica, como se esta fosse a sua representante. Ou seja, a pessoa jurídica fecha negócios para o sócio. Neste caso, o sócio é quem pratica os atos e, desse modo, deve sofrer as conseqüências previstas na norma jurídica. A situação tem pontos de semelhança com as operações por conta e ordem. Realmente, se alguém age através de terceira pessoa, ainda que em nome desta, o ato reputa-se praticado por aquela[21]. Não há espaço, portanto, para se cogitar de desconsideração.

Em síntese, é preciso identificar com cuidado as situações em que a pessoa jurídica age em seu próprio nome, porém, no interesse de terceiro, das situações em que o sócio ou administrador age por sua própria conta, ainda que representado pela pessoa jurídica. Na primeira situação pode-se cogitar da aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica; no segundo caso, não é necessário, bastando imputar o ato a quem efetivamente o praticou.

 

2.3.1.2. CONFUSÃO PATRIMONIAL.

 

A confusão patrimonial é, talvez, o elemento que caracteriza o abuso mais claramente. Se sócio e sociedade se confundem em seus negócios e patrimônios, é razoável entender-se inexistir patrimônio separado e limitação da responsabilidade que justifiquem a consideração da personalidade jurídica[22].

As empresas familiares, cujo capital encontra-se quase totalmente nas mãos de uma única pessoa, são campo fértil para a confusão patrimonial. É costume, nesse tipo de sociedade, que as contas da pessoa física sejam pagas pela pessoa jurídica, como, por exemplo, faturas de cartão de crédito, faturas telefônicas, contas de restaurante, remuneração de empregados domésticos. Por outro lado, é comum o sócio efetuar empréstimos para a pessoa jurídica sempre que exista necessidade de caixa. A mistura dos recursos e interesses da pessoa física e da pessoa jurídica denota a existência de uma única entidade, a pessoa física, justificando a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade.

Da mesma forma, as empresas integrantes de um grupo econômico que não segregam os respectivos recursos, administração e contabilidade, estão sujeitas à desconsideração, para responsabilização da sociedade acionista ou controladora pelos atos praticados em seu interesse, porém, em nome da empresa administrada[23].

 

2.3.2. RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA. NECESSIDADE DE COMPROVAÇÃO DO LEGÍTIMO INTERESSE DO CREDOR.

 

Saliente-se que a desconsideração de que trata o art. 50 do Código Civil não afasta a responsabilidade da empresa. Ao prever que os efeitos de certas e determinadas relações podem ser “estendidos” aos administradores ou sócios, a norma os coloca no pólo obrigacional juntamente com a pessoa jurídica, na condição de responsáveis.

Contudo, a responsabilidade patrimonial de sócio ou administrador somente terá lugar se for acolhido pelo juiz pedido formulado por parte interessada ou pelo Ministério Público, quando lhe caiba intervir no processo. Para este efeito, é necessário demonstrar previamente a existência de interesse legítimo na desconsideração da personalidade jurídica, em razão da insolvência da pessoa jurídica pelo cumprimento de obrigação decorrente de ato abusivo. Do contrário, transformar-se-ia em regra uma situação excepcional, criando embaraço ao regular exercício da atividade econômica.

Em outras palavras, não pode o credor ou o Ministério Público requerer a desconsideração da personalidade jurídica sem demonstrar justa causa. Há de ser comprovado que a pessoa jurídica não tem condições de cumprir as obrigações assumidas e que estas foram contraídas no interesse dos sócios ou administradores, com desvio de finalidade ou confusão patrimonial. Trata-se de requisito essencial, pois de seu preenchimento depende a aplicação da regra do art. 50 do Código Civil.

Na prática, ocorre algo similar ao benefício de ordem previsto nos arts. 1.023 e 1.024 do Código Civil[24]. Portanto, a responsabilidade dos sócios e administradores deve ser entendida como subsidiária, pois a desconsideração supõe a utilização da pessoa jurídica como obstáculo à satisfação do interesse do credor[25]. Assim, quando for possível receber da pessoa jurídica a prestação devida, não há justo interesse que legitime o credor a pleitear a medida excepcional de desconsideração da personalidade para alcançar os administradores ou sócios.

 

2.3.3. DISTINÇÃO ENTRE ABUSO DE PERSONALIDADE JURÍDICA E OUTRAS FIGURAS.

 

À luz das considerações precedentes, pode-se distinguir da seguinte forma os atos abusivos dos ilícitos e dos praticados por terceiros: se o ato se compreende no âmbito de atividades da pessoa jurídica e for praticado no seu interesse, não há abuso; se o ato se compreende no âmbito de atividades da pessoa jurídica, mas for alheio ao seu interesse e tiver sido praticado com desvio de finalidade ou confusão patrimonial, em prejuízo de terceiros, há abuso; se o ato for praticado com violação a regras jurídicas que o disciplinem e prevejam conseqüências específicas, há ilícito; se o ato não poderia ser praticado pela pessoa jurídica, ou se foi por ela praticado por conta e ordem de terceiro, deve ser imputado a quem efetivamente o praticou.

Os critérios propostos se prestam a servir de referência objetiva para a identificação da figura jurídica envolvida em cada caso concreto, com vistas à correta aplicação das normas pertinentes. A boa compreensão dessas premissas é essencial, pois delas decorrerão importantes conclusões mais adiante.

 

3. A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA E O DIREITO TRIBUTÁRIO.

 

Delineados os principais aspectos da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, verifica-se que a principal questão envolvida é a responsabilidade de terceiros por obrigações assumidas pela pessoa jurídica. Afinal, o objetivo maior da desconsideração da personalidade jurídica consiste em alcançar o patrimônio dos sócios ou administradores que dela abusam[26]. O tema diz respeito, portanto, aos integrantes do pólo passivo da relação obrigacional.

Nesse contexto, cumpre examinar a possibilidade de estender a responsabilidade por dívidas tributárias da sociedade aos seus sócios e administradores, com base no art. 50 do Código Civil.

 

3.1. A SUJEIÇÃO PASSIVA TRIBUT[ARIA É MATÉRIA RESERVADA À LEI COMPLEMENTAR.

 

O art. 146, III, “b”, da Constituição Federal outorga competência à lei complementar para “estabelecer normas gerais em matéria tributária”, compreendendo especialmente os elementos informadores da obrigação tributária, entre os quais o sujeito passivo.

O Código Tributário Nacional, recepcionado com status de lei complementar pela Constituição de 1988,[27] tratou do tema nos Capítulos IV (“Sujeito Passivo”) e V (“Responsabilidade Tributária”), do Título II (“Obrigação Tributária”) do Livro II (“Normas Gerais de Direito Tributário”, estabelecendo que “sujeito passivo da obrigação principal é a pessoa obrigada ao pagamento do tributo ou  penalidade pecuniária” (art. 121), dizendo-se “contribuinte, quando tenha relação pessoal e direta com a situação que constitua o respectivo fato gerador” e “responsável, quando, sem revestir da condição de contribuinte, sua obrigação decorra de disposição expressa de lei” (art. 121, § único, I e II). A par disso, o Código disciplinou pormenorizadamente as hipóteses de solidariedade e responsabilidade de terceiros, por substituição e transferência (arts. 124 e 128 a 137)[28].

Portanto, todo o regramento atinente aos contribuintes e responsáveis tributários encontra-se no Código Tributário Nacional, devendo ser observado pelo legislador ordinário no exercício da competência tributária, sob pena de violação à reserva de lei complementar[29].

 

3.2. O CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL NÃO AUTORICA A RESPONSABILIDADE FUNDAMENTADA NO ART. 50 DO CÓDIGO CIVIL.

 

A reserva de lei complementar impede que a responsabilidade de sócios ou administradores por abuso da personalidade jurídica prevista no art. 50 do Código Civil seja aplicada em matéria tributária. Lei ordinária não pode tratar de sujeição passiva, matéria exaustivamente regulada no Código Tributário Nacional. Essa, aliás, a razão que justificou a revogação do art. 374 do Código Civil, que dispunha sobre a compensação de dívidas fiscais e parafiscais[30].

Contudo, alguns doutrinadores sugerem que a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica encontraria fundamento no Código Tributário Nacional, notadamente no art. 116, § único[31], que confere poderes à autoridade administrativa para “desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária” e no art. 124[32], que trata da solidariedade das “pessoas que tenham interesse comum na situação que constitua o fato gerador da obrigação principal” (inciso I), ou daquelas “expressamente designadas por lei” (inciso II). Assim não parece, pelas razões a seguir alinhadas.

 

3.2.1. O ART. 116, § ÚNICO, DO CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL NÃO TRATA DE SUJEITAÇÃO PASSIVA.

 

Em primeiro lugar, o § único do art. 116, § único, do Código Tributário Nacional é ineficaz, por falta de densidade normativa suficiente à sua aplicação, em virtude de não ter disciplinado a seqüência de atos necessários para se desconsiderar o ato ou o negócio jurídico e nem ter indicado o agente competente para re-qualificar os atos desconsiderados, com observância do devido processo legal.

Conquanto a matéria tenha sido delegada ao legislador ordinário, não parece que a lei complementar poderia tê-lo feito, pois o tema diz respeito á teoria geral da obrigação e do crédito tributário, exigindo disciplina uniforme para evitar conflitos de competência entre os entes federativos, papel reservado exclusivamente à lei complementar, nos termos do art. 146, I e III, da Constituição Federal. Basta pensar no que aconteceria se, além da União, todos os Estados e os Municípios decidissem editar normas próprias para disciplinar o assunto, desqualificando e re-qualificando como bem entendessem os atos e negócios praticados pelo contribuinte. O campo para conflitos de competência ée insegurança jurídica seria fértil.

Portanto, é ineficaz o § único do art. 116 do Código Tributário Nacional, à falta de disciplina que estabeleça os critérios a serem seguidos pela lei ordinária[33].

Em segundo lugar, ainda que se considerasse legítima a “regulamentação” do § único do art. 116 do Código Tributário Nacional por lei ordinária, a norma não daria fundamento à desconsideração da personalidade jurídica prevista no art. 50 do Código Civil.

Com efeito, o art. 116 encarta-se no Capítulo II (“Fato Gerador”) do Título II (“Obrigação Tributária”) do Livro II (“Normas Gerais de Direito Tributário”) do Código Tributário Nacional. O campo de aplicação do dispositivo diz respeito ao fato que dá origem à obrigação tributária. O § único cuida da descoberta desse fato, quando dissimulado por atos ou negócios jurídicos praticados com fraude à lei ou abuso de direito. A norma opera, portanto, no plano do aspecto material da hipótese de incidência.

O art. 50 do Código Civil, por sua vez, dispõe sobre abuso de personalidade jurídica, que, como visto anteriormente, não se confunde com a noção geral de abuso de direito, positivada no art. 187. Além disso, o dispositivo legal permite ao juiz imputar responsabilidade a sócios e administradores por dívidas contraídas em nome da sociedade em casos específicos, não regulados, sem exclusão da pessoa jurídica. O tema diz respeito à responsabilidade de terceiros, matéria relativa ao aspecto subjetivo da hipótese de incidência tributária, tratada no Capítulo V do Título II do Livro II do Código Tributário Nacional, que versa sobre hipóteses de sujeição passiva indireta de que trata o art. 121, § único, II, do Código Tributário Nacional.

Portanto, o assunto disciplinado no art. 50 do Código Civil nada tem a ver com o âmbito de atuação do art. 116, § único do Código Tributário Nacional, de sorte que não se pode pretender aplicar as disposições daquele em matéria tributária, com amparo neste.

 

3.2.2. A SOLIDARIEDADE PREVISTA NO ART. 124 RESTRINGE-SE ÀS HIPÓTESES DISCIPLINADAS NO CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL.

 

No que respeita ao art. 124 do Código Tributário Nacional, a desconsideração da personalidade jurídica igualmente não se contém em qualquer de seus incisos.

É indiscutível que o sócio e o administrador são terceiros em relação à pessoa jurídica. Contudo, quando eles agem como órgãos da pessoa jurídica, não há pluralidade de sujeitos passível de justificar a solidariedade por interesse comum. Os atos são da pessoa jurídica, apenas. Não se aplica, portanto, a regra do art. 124, I, do Código Tributário Nacional.

Nem tampouco se afigura possível extrair do inciso II do art. 124 uma permissão ao legislador ordinário para atribuir aos sócios ou administradores responsabilidade pelos débitos da pessoa jurídica, para, a partir de tal raciocínio, legitimar a aplicação do art. 50 do Código Civil às obrigações de natureza tributária.

Com efeito, a solidariedade legal há de observar os parâmetros definidos no Código Tributário Nacional, sob pena de configurar-se “delegação em branco” de matéria reservada à lei complementar para a lei ordinária, em violação ao art. 146, III, da Constituição Federal. Realmente, se o legislador tributário pudesse atribuir responsabilidade solidária a pessoas diversas daquelas que podem ser consideradas responsáveis nos termos do Código Tributário Nacional, restariam inócuas e sem sentido as normas gerais que cuidam exaustivamente do tema[34].

Assim, o inciso II do art. 124 deve ser interpretado de forma sistemática e teleológica, no sentido de que a lei pode prever casos de solidariedade quando se verifique alguma das hipóteses de responsabilidade previstas no Código Tributário Nacional, de modo que permaneça mais de uma pessoa no pólo passivo da obrigação tributária, independentemente da comunhão de interesses prevista no inciso I do art. 124. Seria o caso, por exemplo, do adquirente de imóvel, responsabilizado solidariamente pelo imposto de transmissão devido pelo vendedor eleito como contribuinte[35].

 

3.3. A TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JUTÍDICA É INCOMPATÍVEL COM O DIREITO TRIBUTÁRIO.

 

Ainda que houvesse lei complementar dispondo sobre a matéria, não parece possível compatibilizar a teoria da desconsideração da personalidade jurídica com os princípios constitucionais que regem a tributação, tendo em vista que a atribuição de responsabilidade aos sócios e administradores supõe excepcionalidade que só pode ser examinada e decidida pelo juiz, como previsto no art. 50 do Código Civil.

A reserva de jurisdição é da essência da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, originária de países que adotam o common law, havendo ampla liberdade para os juízes decidirem os casos concretos independentemente da existência de regras escritas. Essa noção foi preservada pelo Código Civil, que procurou compatibilizar o instituto com a tradição positivista do nosso direito, ao prever as situações passíveis de configurar abuso sujeito ao controle jurisdicional.

A importação do instituto para o direito civil brasileiro foi possível porque as normas de direito privado formam um sistema aberto, que admite integração por decisões judiciais[36]. Realmente, o art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil e o art. 126 do CPC deixam claro que a falta de norma jurídica pode ser suprida pelo Poder Judiciário, mediante a utilização de princípios gerais de direito, analogia, costumes. Há uma cláusula geral inclusiva, segundo a qual todos os casos estão sujeitos à regulação pelo direito, ainda que pela via integrativa, mediante decisão judicial.

No caso do direito tributário, porém, a situação é inversa. A tributação está jungida ao princípio da estrita legalidade (art. 150, I, da Constituição Federal), sendo vedada a utilização de vias integrativas para a criação de obrigação não prevista em lei, como explicita o art. 108, §1º, do Código Tributário Nacional. O sistema é fechado. Vigora cláusula geral exclusiva, ficando submetidos às normas de incidência tributária somente os casos nelas expressamente previstos. É o que se denomina, doutrinariamente, de tipicidade cerrada[37].

Além disso, o sistema tributário rege-se pela previsibilidade[38], faceta da segurança jurídica. Deve o particular ter condição de aferir com antecedência e razoável grau de certeza a possibilidade de ser tributado. Por isso, a retroação de normas mais gravosas é expressamente vedada pela Constituição Federal (art. 150, III).

Muito embora o art. 50 do Código Civil estabeleça os casos em que pode haver a desconsideração da personalidade jurídica, a aplicação do instituto não depende unicamente da subsunção do fato à norma, mas, sobretudo, do exame individualizado do caso pela autoridade judicial. Haverá sempre uma solução particular a ser dada pelo juiz. Posto um caso idêntico diante de dois magistrados, poderão ser proferidas decisões diferentes, em função do livre convencimento de cada um. Vale dizer, o resultado é imprevisível.

Por essas razões, mostra-se inviável aplicar a teoria da desconsideração da personalidade jurídica em matéria tributária, nos moldes em que idealizada pela doutrina e acolhida pelo art. 50 do Código Civil.

 

4. A RESPONSABILIDADE DOS SÓCIOS E ADMINISTRADORES NO CÓDIGO TRINUTÁRIO NACIONAL.

 

O que se afirmou não significa que os sócios ou administradores estejam livres de responder pelo crédito tributário, em determinadas situações. O Código Tributário Nacional prevê a responsabilidade de sócios e administradores quando praticados atos com excesso de poderes, infração de lei, contrato social ou estatuto. Entretanto, não se trata de desconsideração da personalidade jurídica, mas sim de imputação de responsabilidade. A matéria está disciplinada nos arts. 134 a 137, comentados brevemente a seguir.

 

4.1. RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA – ART. 134.

 

O art. 134 do Código Tributário Nacional estabelece que, “nos casos de impossibilidade do cumprimento da obrigação pelo contribuinte, respondem solidariamente com este nos atos que intervierem, ou pelas omissões de que forem responsáveis”, as pessoas enumeradas em seus incisos I a VII[39], entre as quais “os sócios, no caso de liquidação de sociedades de pessoas”.

Inicialmente, deve-se advertir que os administradores, assim como os sócios das sociedades personificadas não são alcançados pelo dispositivo, tendo em vista a menção apenas aos sócios das sociedades de pessoas, tornando aplicável a máxima “inclusio unius, exclusio alterius”[40].

De resto, cumpre salientar que a responsabilidade prevista no dispositivo comentado não é propriamente solidária, mas sim subsidiária por supor a impossibilidade de cumprimento da obrigação pelo contribuinte[41]. Ademais, as pessoas indicadas no dispositivo nem sempre poderão ser responsabilizadas. Assim serão se tiverem motivado o não pagamento do tributo por ação ou omissão culposas. Realmente, não se cogita de dolo, mas apenas de culpa[42], ainda que em grau mínimo, como indica a ressalva feita no § único do art. 134, no sentido de que a responsabilidade somente se aplica “em matéria de penalidades, às de caráter moratório”, colocando fora do alcance do dispositivo as obrigações resultantes de dolo, até porque estas estão tratadas nos arts. 135 e 137 do Código[43].

Portanto, atos de simples gestão, que não impliquem decisão alguma quanto ao pagamento de tributos ou ao surgimento de obrigações tributárias não ensejam responsabilidade tributária. A situação é similar à da responsabilidade civil, na medida em que supõe existir relação de causalidade entre a conduta do devedor e o prejuízo do credor. De fato, se o nascimento da obrigação tributária não depende dos atos praticados pelas pessoas referidas no art. 134, não há que se falar em responsabilidade.

Como exemplo do que se disse, imagine-se o tutor que preenche a declaração de imposto de renda do tutelado, conforme os elementos de que dispõe e sem incorrer em erro ou manifestar intenção de prejudicar o fisco. Ou, então, a situação de massa falida que não tem condições de pagar os tributos devidos. Seria razoável responsabilizar o tutor, ou o síndico, nestas circunstâncias, simplesmente porque estão arrolados no art. 134? Parece claro que não[44].

Por certo a posição dos sócios no caso de liquidação de sociedade de pessoas é diferente daquela assumida pelo tutor ou pelo síndico, havendo motivos para que fosse estabelecida a responsabilidade ilimitada daqueles pelos débitos fiscais, independentemente de terem participado nos atos de gestão da sociedade, como se dá no plano civil (arts. 990 e 991 do Código Civil). Entretanto, na medida em que o Código restringiu a responsabilidade desses sócios às dívidas resultantes dos “atos em que intervierem”, os exemplos citados são perfeitamente aplicáveis, no que respeita à necessidade de nexo causal entre a conduta (ação ou omissão culposas) e o resultado (falta de pagamento de tributo), não cabendo responsabilização em outras circunstâncias, que não as previstas no Código Tributário Nacional.

 

4.2. RESPONSABILIDADE PESSOAL – ART.135.

 

O art. 135 diz serem “pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos”, as pessoas referidas no art. 134 (inciso I), assim como os “mandatários, prepostos e empregados” (inciso II), além dos “diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado” (inciso III).

Ao estabelecer responsabilidade pessoal das pessoas indicadas, o dispositivo exclui a responsabilidade de quem seria o contribuinte. Trata-se de responsabilidade por substituição[45]. Contribui para essa conclusão o fato de que o inciso I do art. 135 menciona as mesmas pessoas que, nos termos do art. 134, teriam responsabilidade solidária pelo crédito tributário, juntamente com o contribuinte. Se a responsabilidade de tais pessoas exclui a do contribuinte, parece lógico entender que igualmente respondem de forma isolada as pessoas referidas nos incisos II e III.

Seguindo o mesmo raciocínio, pode-se inferir que, diferentemente dos casos culposos do art. 134, as hipóteses do art. 135 exigem dolo, embora caracterizado objetivamente pelo excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos.

Registre-se que a “lei” a que se refere o art. 135 é aquela que disciplina a conduta das pessoas indicadas nos seus incisos, no desempenho das respectivas funções. Não se trata da lei tributária, pois, se assim fosse, bastaria o não recolhimento do tributo para que a responsabilidade se instaurasse, de modo que uma pessoa jurídica, por exemplo, nunca responderia por débitos em atraso[46].

No que respeita às sociedades, vale relembrar que o excesso por parte dos administradores deve ser examinado com muita cautela, pois o contrato social não esgota tudo o que está compreendido no âmbito de atuação da pessoa jurídica, sendo legítimos, em princípio, os atos praticados no intuito de alcançar as finalidades previstas no contrato ou estatuto social[47].

A esse respeito, é pertinente a invocação do art. 1.015 do Código Civil, segundo o qual “oexcesso por parte dos administradores somente pode ser oposto a terceiros se ocorrer pelo menos uma das seguintes hipóteses: I – se a limitação de poderes estiver inscrita ou averbada no registro próprio da sociedade; II – provando-se que era conhecida do terceiro; III – tratando-se de operação evidentemente estranha aos negócios da sociedade”.

Note-se que, ao assim dispor, o Código Civil não trata de matéria própria de lei complementar, limitando-se a arrolar as hipóteses em que se caracteriza o excesso de poderes dos administradores. O tema nem sequer é tratado pelo Código Tributário Nacional, que, dessa forma, recepciona integralmente as disposições do direito privado, onde estão estabelecidas as normas que disciplinam a constituição e a atuação das pessoas jurídicas e dos direitos e deveres dos seus sócios e representantes.

Advirta-se, no entanto, ser possível que os atos das pessoas indicadas no art. 135 do Código Tributário Nacional beneficiem as pessoas em nome das quais atuam, hipótese em que a responsabilidade tributária pessoal do terceiro poderia frustrar o interesse fazendário[48].

Como não parece ser o intuito do Código Tributário Nacional livrar o contribuinte de responder por obrigações tributárias decorrentes de negócios com os quais possua relação direta, deve ser buscada uma interpretação sistemática e teleológica que harmonize as regras de sujeição passiva estabelecidas nos seus arts. 121 e 135 com as normas de direito privado.

Nessa conformidade, parece correto interpretar o art. 135 no sentido de que os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas, somente devam ser considerados substitutos tributários pelos créditos tributários resultantes de atos praticados fora da esfera de atuação própria da pessoa jurídica, ou até mesmo contra ela própria[49]. O ato deve ser doloso, estranho aos objetivos da sociedade, alheio aos interesses desta.

Realmente, só faz sentido atribuir responsabilidade pessoal a terceiro se o ato por ele praticado for de tal natureza que não possa ser imputado ao contribuinte, por mostrar-se alheio aos seus interesses.

Assim, se o administrador manifestamente excede os limites da sua função, praticando atos não abrangidos pelas finalidades da empresa, visando o seu próprio interesse, responde pessoalmente pelo crédito tributário na condição de substituto tributário, nada podendo ser exigido da sociedade. Se o ato tiver sido praticado no interesse da empresa, não cabe a substituição[50].

De outro modo, abrir-se-ia margem para atuação de má-fé de empresas que se esquivariam de assumir responsabilidades por obrigações tributárias resultantes de operações realizadas no seu interesse, sob o argumento de que seus representantes teriam agido irregularmente[51].

 

4.3. RESPONSABILIDADE POR INFRAÇÕES – ARTS. 136 e 137.

 

O art. 136 do CTN contém cláusula geral relativa à responsabilidade por infrações da legislação, estabelecendo ser ela independente“da intenção do agente ou do responsável e da efetividade, natureza e extensão dos efeitos do ato”, salvo disposição em contrário.

Parte da doutrina e da jurisprudência entende que o art. 136 do CTN consagra hipótese de responsabilidade objetiva[52]. Curioso notar que, apesar disso, a jurisprudência vem entendendo que não se pode afastar o exame da boa-fé do sujeito passivo para efeito de verificar o cabimento da sanção[53]. Ora, se de responsabilidade de natureza objetiva se tratasse, não importaria perquirir acerca da boa-fé do contribuinte, já que esta afastaria apenas a má-fé ou dolo.

Na realidade, parece que, ao considerar irrelevante a intenção, o art. 136 quer dizer que não se exige dolo para a caracterização da infração, bastando a culpa. Esta se presume pelo simples inadimplemento da legislação tributária, que indica a falta de diligência ou imperícia do obrigado ou de seus prepostos[54]. Assim, no caso da pessoa jurídica, basta, via de regra, a caracterização da falta, para que se presuma a culpa (in vigilando, in eligendo, in omitendo)[55] e se lhe imputem as conseqüências legalmente previstas.

Se, eventualmente, ficar comprovado que a legislação não foi cumprida porque o sujeito passivo, agindo com as cautelas necessárias, não pôde fazê-lo, como, por exemplo, nas hipóteses de caso fortuito ou de força maior, seria admissível afastar a penalidade, até em face do princípio que determina a adoção de interpretação mais favorável ao acusado, em caso de dúvida quanto à punibilidade, entre outras questões (art. 112 do Código Tributário Nacional).

No que respeita à possibilidade de a lei tributária dispor em sentido contrário ao que se contém no art. 136, significa que poderá ser exigida a intenção como fato determinante para a caracterização da infração, bem como levadas em consideração a efetividade, natureza e extensão dos efeitos do ato. Vale dizer, pode a lei prever o dolo como elemento do tipo, ou estabelecer, por exemplo, que a penalidade ficará relevada caso do ato praticado não resulte a falta de recolhimento do tributo.

De outro lado, o art. 137 relaciona hipóteses de responsabilidade pessoal do infrator. Nestes casos, não há dúvida de que a caracterização do dolo é essencial para que se verifique a punição. Faz-se necessário, dessa forma, identificar o real infrator para que se aplique a penalidade, diferentemente das infrações de que trata o art. 136. Várias das considerações feitas a propósito do art. 135 são adequadas para a correta interpretação do art. 137, valendo salientar alguns aspectos adicionais.

O inciso I doart. 137 prevê a responsabilidade pessoal do agente por “infrações conceituadas por lei como crimes ou contravenções”, mas a exclui quando praticado o ato “no exercício regular de administração, mandato, função, cargo, emprego, ou no cumprimento de ordem expressa emitida por quem de direito”. A primeira observação é de que parece imprópria a referência a exercício “regular” de administração, mandato, função, cargo, emprego, quando se cuida da prática de ato conceituado como crime. O que há de entender-se é que o dispositivo diz respeito às ações tomadas no exercício do cargo ou equivalente e no interesse do representado[56].

No caso de pessoa jurídica, se a deliberação é tomada por administrador da empresa, com o conhecimento expresso ou suposto de seus órgãos de administração e no exercício de suas funções, o ilícito e a conseqüente responsabilidade serão da pessoa jurídica, sem prejuízo da responsabilidade civil de todos que participaram do ato. Se, todavia, houver excesso de poderes, contrariando as finalidades previstas no estatuto ou contrato social, a responsabilidade será apenas do agente, com exclusão da pessoa jurídica que não teve interesse e nem se beneficiou do ato praticado.

O inciso II do art. 137 sugere que, havendo norma prevendo conduta onde o dolo específico do agente seja elementar, ou seja, que envolva a intenção de obter determinado resultado, a responsabilidade será exclusivamente do agente. O tema, entretanto, exige reflexão. Se o agente pratica o ato isoladamente (sem a participação ou conhecimento de representantes ou órgãos da pessoa jurídica), haverá exclusão da responsabilidade da pessoa jurídica. Se, entretanto, esta dele participou de qualquer maneira, tendo interesse no resultado, será responsável[57].

O inciso III do art.137 cuida de ações das mesmas pessoas relacionadas no art. 135 contra aqueles por quem respondem ou representam. Trata-se, mais propriamente, de ilícito civil contra terceiros[58].

Interessante observar que as pessoas referidas no art. 137, III, são, a rigor, as mesmas que desempenham a administração, o mandato, a função, o cargo e o emprego de que trata o inciso I do mesmo artigo.

Ao estabelecer a responsabilidade das pessoas arroladas nos arts. 135 e 137, I, por atos dolosos praticados contra os terceiros cujos interesses administram, o inciso III do art. 137 indica que somente há responsabilidade pessoal de terceiros quando se verifique evidente desvio de função e o ato contrarie o interesse do contribuinte, vítima do ilícito juntamente com o Fisco[59].

Por conseguinte, no que respeita à pessoa jurídica, pode-se concluir, a partir da interpretação lógica, sistemática e finalística do Código Tributário Nacional, que os administradores somente podem ser responsabilizados por dívidas da sociedade em razão da prática de atos que excedam as suas atribuições e sejam alheios aos interesses da pessoa jurídica.

Examinadas as hipóteses de responsabilidade previstas no Código Tributário Nacional, verifica-se que efetivamente não é caso de desconsideração da personalidade jurídica da sociedade. O sócio ou administrador sofrem as conseqüências de seus atos por força de norma jurídica que regula especificamente a espécie. Não é necessário que o juiz constate abuso de personalidade ou que haja provocação do credor. Basta que o fato descrito na norma seja praticado pelo sócio ou administrador para que haja responsabilidade. A questão é de mera imputação.

 

5. IDENTIFICAÇÃO DO SUJEITO PASSIVO NOS CASOS DE INTERPOSIÇÃO DISSIMULADA OU OSTENSIVA DE PESSOAS E DA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS PERSONALÍSSIMOS.

 

Uma última questão que tem sido objeto de controvérsias é a possibilidade de responsabilizar os sócios ou administradores da pessoa jurídica por dívidas fiscais decorrentes de atos praticados pela pessoa jurídica, em nome daqueles, ou de serviços de caráter pessoal.

 

5.1. INTERPOSIÇÃO DE PESSOAS.

 

Aqueles que utilizam pessoas jurídicas para a prática de determinados atos podem ser alcançados diretamente, sem a necessidade de norma que preveja expressamente a sua responsabilidade. A questão é de identificação do contribuinte, à luz do art. 121 do Código Tributário Nacional.

A atuação da pessoa jurídica em nome de terceiros não é vedada, em princípio. A própria legislação tributária admite que se atue por intermédio de representantes (mandatários, comissários), cabendo ao representado responder pelas obrigações assumidas[60].

Há casos, porém, em que a pessoa jurídica é utilizada como fachada para encobrir atos de terceiros. Trata-se dos casos em que a pessoa jurídica não tem finalidade própria. É mera casca. O terceiro age efetivamente e usa o nome da pessoa jurídica, que nada faz. Nesses casos, o que ocorre é interposição fraudulenta de pessoas[61].

Constatada a fraude, pode o Fisco atingir diretamente o real sujeito passivo, desprezando o negócio aparente, por ser simulado. O fundamento legal para esse procedimento encontra-se no art. 149, VII, do Código Tributário Nacional, que autoriza a revisão do lançamento “quando se comprove que o sujeito passivo, ou terceiro em benefício daquele, agiu com dolo, fraude ou simulação”.

Ressalte-se que o tema não se confunde com outras patologias apontadas no Código Civil, como a fraude à lei e o abuso de direito. Para estas, não há previsão no art. 149 do Código Tributário Nacional de lançamento de ofício em razão de sua ocorrência. Eventual possibilidade de coibi-las no âmbito tributário residiria na aplicação da norma do § único do art. 116 do Código, que, como já referido, é ineficaz, em decorrência de insuficiência normativa acerca do devido processo legal a ser observado para a reformulação do lançamento.

 

5.2. SERVIÇOS PRESTADOS EM CARÁTER PERSONALÍSSIMO.

 

O Primeiro Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda apreciou três casos emblemáticos, que têm a ver com a imputação de responsabilidade por obrigações constantes de contratos firmados com pessoas jurídicas. O primeiro, de um famoso apresentador que constituiu empresa e, por seu intermédio, firmou contrato com canal de televisão tendo por objeto a apresentação de programas de rádio e televisão onde figurava como personagem central. O segundo, de um conhecido técnico cuja sociedade do qual fazia parte firmou contrato com clube de futebol para treinar o time. O terceiro, de um clube de futebol que pagava direito de imagem de jogadores a pessoas jurídicas das quais estes eram sócios[62].

Em todos os casos, alegou a fiscalização que se estaria diante de procedimentos destinados a evitar a tributação pelo imposto de renda com base nas alíquotas aplicáveis à pessoa física, tendo em vista o tratamento mais benéfico conferido pela legislação tributária às pessoas jurídicas, notadamente as tributadas pelo lucro presumido.

A leitura dos acórdãos demonstra que autuações foram mantidas pelo Tribunal Administrativo, a par de outros fundamentos, porque, à luz dos elementos de fato coligidos ao processo, concluíram os julgadores que a pessoa jurídica não contribuiu para a prestação dos serviços contratados, sendo as atividades desenvolvidas exclusivamente por um dos sócios. Em outras palavras, não havia organização empresarial para a execução da atividade . Por essa razão, os serviços foram atribuídos à pessoa física.

Há quem identifique nas mencionadas decisões do Conselho de Contribuintes a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica[63]. Assim não parece. O que fez o Conselho de Contribuintes foi imputar o ato a quem efetivamente o praticou. Apenas identificou-se o contribuinte, ou seja, aquele que teve relação pessoal e direta com o fato constitutivo da obrigação tributária, nos termos do art. 121, § único, I, do Código Tributário Nacional. De fato, nos três casos mencionados, foi constatado, com base nas provas analisadas, que a pessoa jurídica não havia desenvolvido as atividades que ensejaram a produção do rendimento tributável. Sendo assim, não há que se falar em desconsideração da personalidade jurídica, que pressupõe, como visto anteriormente, a utilização de meios da empresa para a execução da atividade, embora no interesse preponderante de sócio ou administrador. Se em nada contribuiu a sociedade para a realização do serviço, este somente pode ser imputado às pessoas físicas[64].

Note-se que, posteriormente, o art. 129 da Lei 11.196/2005 estabeleceu que, “para fins fiscais e previdenciários, a prestação de serviços intelectuais, inclusive os de natureza científica, artística ou cultural, em caráter personalíssimo ou não, com ou sem a designação de quaisquer obrigações a sócios ou empregados da sociedade prestadora de serviços, quando por esta realizada, se sujeita tão-somente à legislação aplicável às pessoas jurídicas, sem prejuízo da observância do disposto no art. 50 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil”.

O dispositivo peca por determinar a aplicação de norma de direito privado que prevê responsabilidade não admitida pelo Código Tributário Nacional, como demonstrado neste trabalho. Entretanto, bem examinado, tem o mérito de permitir a distinção entre os atos imputáveis exclusivamente à sociedade, os atos imputáveis à sociedade, mas cuja responsabilidade pode ser estendida aos sócios e administradores e os atos imputáveis apenas a estes últimos. Com efeito, considera-se aplicável o regime tributário da pessoa jurídica à prestação de serviços “por esta realizada”, ainda que seja imposta obrigação de caráter personalíssimo a sócios ou empregados. Se a prestação de serviço tiver sido realizada pela pessoa jurídica, mas constatar-se desvio de finalidade ou confusão patrimonial passível de configurar abuso de personalidade jurídica, os efeitos das obrigações assumidas pela pessoa jurídica poderão ser estendidos ao patrimônio das pessoas físicas envolvidas, desde que assim autorizado por decisão judicial, tendo em vista que a remissão ao art. 50 do Código Civil colhe-o por inteiro, inclusive no que respeita à reserva de jurisdição. Se, todavia, a prestação de serviço não for realizada pela pessoa jurídica, mas por alguém que a usa como mera fachada, será aplicável o regime de pessoa física.

Nesse sentido, o art. 129 da Lei nº 11.196/2005 deverá interferir nos fundamentos das decisões do Conselho de Contribuintes, de um lado, reforçando a legitimidade de autuações contra pessoas físicas que se utilizam indevidamente de pessoas jurídicas meramente aparentes e, de outro, evidenciando a improcedência de exigências formuladas contra sócios ou administradores de empresas regularmente constituídas para a prestação de serviços, ainda que em caráter personalíssimo, quando possa ser atribuída a atividade à pessoa jurídica. Nesses casos, caberá ao Conselho decidir, ainda, sobre a possibilidade de responsabilização subsidiária das pessoas físicas pelos débitos fiscais, quando constatado o abuso de que trata o art. 50 do Código Civil, tendo em vista a inexistência de lei complementar que a autorize, devendo ser ressalvada, em qualquer caso, a necessidade de prévia decisão judicial a respeito.

6. CONCLUSÃO.

Em resumo, é possível concluir que:

(a)             Abuso de personalidade jurídica só pode se verificar se não houver regra jurídica que incida sobre o fato qualificando-o como ilícito ou imputando responsabilidade a terceiros;

(b)             O abuso de personalidade jurídica não se confunde com abuso de direito. Este é regulado pelo art. 187 do Código Civil e pode se aplicar-se a qualquer ato ou negócio jurídico. Aquele se restringe ao uso inadequado da personalidade jurídica e só dela;

(c)              O abuso de personalidade jurídica é caracterizado pelo desvio de finalidade ou confusão patrimonial. Não há possibilidade de invocação da teoria da desconsideração por razões outras que não as enunciadas no Código Civil. A restrição deve-se à indeterminaçã

Revista Dialética de Direito Tributário, 01 de fevereiro de 2007 às 9h44

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