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01 de agosto 2001 às 11H41

Análise Geral – Tributação da renda no Brasil pós Real

Por Hamilton Dias de Souza

À

Secretaria da Receita Federal

 

At.: Sr.  Everardo Maciel

 

Prezado Senhor Secretário,

 

Antes de tecer qualquer comentário sobre a “Análise da tributação da renda no Brasil: 1995-2000”, gostaria de congratular a Secretaria da Receita Federal pela iniciativa de divulgar as modificações realizadas na legislação do imposto sobre a renda, no decorrer dos últimos anos.

Trabalhos como esse são oportunos pois, além de revelar a variedade e profundidade das modificações realizadas, explicam seus motivos e objetivos, permitindo uma reavaliação do sistema como um todo. Com a leitura do texto transparece, como objetivo fundamental a guiar cada modificação introduzida, o intento de melhor alcançar o chamado princípio da neutralidade. É nesse ponto que planejo focar meus comentários.

A legislação do imposto sobre a renda como se encontrava cinco anos atrás, além de não conferir a efetividade necessária aos princípios e regras que regem a tributação, afetava também diretrizes constitucionais gerais e da ordem econômica.

Com efeito, as disposições normativas sobre esse tributo propiciavam o tratamento não isonômico dos diversos contribuintes, concorrentes entre si na mesma atividade econômica. Ocorre, todavia, que o tratamento eqüitativo dos concorrentes é elemento essencial do princípio da livre concorrência. Dentre outros, um dos sentidos fundamentais desse princípio é o de que as forças de mercado devem ter prioridade na formação de preços, no aperfeiçoamento qualitativo da produção de bens e serviços, na alocação de recursos, reduzindo-se ao mínimo a atuação do Estado, que só intervém legitimamente no mercado para proteger a livre iniciativa. Por isso, da livre concorrência decorre a exigência de imparcialidade dos atos impositivos do Estado, em face dos concorrentes, configurando um princípio da neutralidade concorrencial das medidas estatais.

No campo tributário, esse princípio tem especial relevância. A neutralidade dos tributos em face da concorrência decorre, em especial, da proibição de tratamento desigual de contribuintes e da exigência de respeito à sua capacidade contributiva. Dessa maneira, livre concorrência significa também que os concorrentes competem, em princípio, dentro de um quadro tributário que a todos afeta. Por isso, esse quadro não pode ser discriminatório, nem criar condições competitivas diferentes entre eles, seja por intermédio de uma interferência discriminatória direta (patente) ou indireta (oculta), ambas agressoras da ordem jurídico-constitucional.

É certo que qualquer tributo pode, para alguns contribuintes, representar um peso maior na sua capacidade concorrencial do que para outros. Essa conseqüência, no entanto, tem de decorrer da sua condição econômica específica e não do próprio tributo, pois que, nesse último caso, a neutralidade concorrencial pode estar sendo atingida.

A legislação do imposto sobre a renda destacava-se pela falta de neutralidade, fosse ela explícita, com o excesso de tratamentos específicos (como benefícios fiscais, p. ex.) fosse oculta, por meio de uma série de fatores, como a complexidade da legislação. Todos esses fatores foram atacados pelo Poder Público, como demonstra a exposição dessa Secretaria da Receita Federal.

Quanto à complexidade das regras do imposto sobre a renda, conduzia ela à falta de neutralidade, porque propiciava a elisão fiscal, lícita ou ilícita (evasão). Assim era, pois é nos detalhes do ordenamento jurídico, principalmente, que se encontram as brechas para se furtar à tributação devida.

Ao mesmo tempo, a complexidade da legislação dificultava a fiscalização eficiente, permitindo que evasões fiscais não fossem detectadas. De se destacar ainda que, perversamente, são justamente as empresas maiores, de maior capacidade econômica e contributiva, as que conseguem cercar-se de um maior aparato para evitar a tributação por meio de planejamentos.

Dentro do aspecto da simplificação, destaco duas importantes alterações: a criação do SIMPLES e a extensão do uso do regime do lucro presumido.

Como sabido, a abundância de normas e de detalhes na legislação gerava custos tão elevados aos contribuintes para cumprir as obrigações legais a ponto de, para conseguirem sobreviver no ambiente competitivo da economia, terem de descumprir a legislação.

O SIMPLES veio, portanto, atender aos anseios legítimos das pequenas empresas do País, por facilitar o cumprimento das normas tributárias, inserindo-as na legalidade, sem inviabilizá-las economicamente. O SIMPLES também concretiza outros valores constitucionais, que não os exclusivamente tributários, como o de dar tratamento favorecido às empresas de pequeno porte (art. 170, IX).

O mesmo se diga da extensão da possibilidade de utilização do sistema de tributação da renda pelo lucro presumido, que também possibilitou trazer para a legalidade incontáveis empresas que antes funcionavam irregularmente, por falta de condições de arcar com os custos de cumprir a legislação fiscal.

Não é necessário dizer que os danos da situação de irregularidade eram de variada ordem e não só tributários. Destaco que a situação de clandestinidade de algumas empresas lhes propiciava vantagens competitivas frente a outras, viciando a ordem econômica.

Dessa forma, o SIMPLES e o lucro presumido auxiliam a melhor realização do princípio da neutralidade e também do princípio da isonomia. Esse segundo princípio vem sendo entendido, no Brasil e na doutrina de outros países, como correlato de uma obrigação de equalização, com efeitos na redução das desigualdades sociais (CF art. 3o-III, 170-VII  – vide Ferraz, Diniz, Georgakilas, “Constituição de 1988”, Atlas, 1989, p. 31, e Celso Bastos, “Comentários”, art. 5o). Toda norma é discriminatória e o que legitima a discriminação é a relação lógica entre ela e o fato discriminado. Há, sem dúvida, tal relação entre fornecer um tratamento fiscal simplificado e a operacionalização de empresas de menor porte.

Também é importante dar destaque à maior estabilidade da legislação tributária. Assim como a complexidade, as constantes e repentinas alterações de normas criam terreno fértil para realização de evasões e elisões fiscais, fatores que minam a neutralidade.

A simplificação, aliada à estabilidade das regras, leva a acreditar que, aos poucos, a relação entre Administração Fiscal e contribuintes passará a ser dotada de maior lealdade e confiança mútua. Até pouquíssimo tempo atrás (e ainda atualmente, mas já em menor escala) vigorava uma desconfiança dos dois lados, que chegou a criar um hábito ou costume dos contribuintes de discutirem judicialmente qualquer nova medida legal, mesmo que apenas para obter uma vantagem financeira, o que, por via reflexa, tornava menos competitivos os contribuintes que não se socorriam do Judiciário.

Mas as alterações realizadas na tributação da renda não se limitaram à correção de defeitos que a legislação do imposto sobre a renda possuía cinco anos atrás. Foi necessário também dispor sobre os reflexos na tributação provocados pela maior inserção do Brasil no cenário econômico mundial. Para tanto, foram criadas as regras do regime de preços de transferência e sobre os chamados paraísos fiscais.

Quanto ao regime de preços de transferência, o que a lei faz é tentar dar tratamento isonômico às operações realizadas entre pessoas ligadas e aquelas efetuadas entre pessoas sem qualquer vínculo. Estas estão em situação desigual relativamente àquelas, visto ser mais fácil e provável a ocorrência de acordo ou manipulação de preço entre empresas vinculadas, o que justifica o tratamento especial.

De fato, a criação dessas regras atende à isonomia, pois as empresas vinculadas são alcançadas de forma igual às empresas que operam sem qualquer ligação, existindo, outrossim, evidente relação lógica entre a determinação legal da imposição de preços de mercado e a realidade das pessoas ligadas, o que legitima o tratamento discriminatório.

Devido a isso, o regime de preços de transferência é justificável em termos econômicos, sendo uma exigência em termos jurídicos decorrente dos princípios da isonomia e da neutralidade, novamente permeando as modificações realizadas.

Ocorreram, é certo, manifestações na doutrina de não concordância com essas novas regras. Isso porque alguns entenderam que elas constituíam presunções absolutas e não relativas da realização de preços com interferência. Com isso, embora a legislação brasileira pudesse ter sido inspirada pelo parâmetro do arm’s length, que mundialmente fundamenta as regras de preços de transferência, sua aplicação teria sido restringida no Brasil. Soma-se a isso o fato de a experiência ter mostrado, em diversos países que já adotam o controle dos preços nas relações com interferência, que a rigidez impositiva deve ser flexibilizada, objetivando adaptar as referidas normas às peculiaridades dos casos concretos. Citem-se, por exemplo, os Estados Unidos da América.

Percebe-se, todavia, que a legislação brasileira (em especial a Instrução Normativa nº 38/97) prevê várias situações específicas e a atenção a particularidades dos fatos reais. Por isso, a despeito de não ter sido explicitamente afirmado que o regime de preços de transferência criaria presunções relativas, penso que isso foi, de fato, feito. O tratamento dado no Brasil aos preços de transferência, portanto, é compatível com o ordenamento jurídico nacional, além de adequado para o cenário contemporâneo.

Também merece destaque a atenção dada pela Receita Federal ao problema dos chamados paraísos fiscais. A utilização de tais países para planejamentos fiscais é profundamente prejudicial a vários setores: o País perde recursos, o Erário deixa de obter a arrecadação que lhe cabe e empresas obtêm vantagens indevidas, prejudicando a concorrência, corroendo a neutralidade da tributação.

Ocorre que as operações realizadas por meio de tais localidades geralmente são artificiais. Por exemplo, muitas vezes a “empresa” localizada no paraíso é chamada de “empresa de caixa postal”, pois ela apenas detém um endereço, permitindo-lhe realizar operações que levaram à evasão tributária perpetrada por seu proprietário em seu país de origem.

Mas o conceito de paraíso fiscal é incerto, tanto na doutrina mundial quanto na legislação dos países que já dispõem sobre este tema. Por isso, sob determinada ótica, um certo país pode ser tido como paraíso fiscal, já de acordo com um conceito que privilegia outras características, não sê-lo. Nesse contexto, a definição objetiva dada pela legislação brasileira aos paraísos fiscais é benéfica. Atende-se à necessidade de dispor sobre esse assunto, ao mesmo tempo em que se evita a insegurança aos contribuintes, já que esses podem ter conhecimento prévio de quais países são considerados paraísos fiscais, para fins da legislação brasileira.

Quanto ao tratamento dado aos paraísos fiscais e às operações praticadas com tais localidades, ele varia de país para país. O tratamento adotado nos Estados Unidos da América, por exemplo, consiste em tributar diretamente na pessoa do sócio norte-americano os resultados pro rata obtidos pela empresa localizada em paraísos. A Alemanha também adota esse tratamento, assim como diversos outros países.

A legislação norte-americana ainda prevê a simples e direta aplicação da doutrina da desconsideração da personalidade jurídica. Rubens Requião, já em 1977, reportava-se a uma tese apresentada na Universidade de Heidelberg e comentava que tal doutrina gozava de “acentuada aplicação no terreno do direito tributário, para coartar a sonegação e evasão de impostos, quando se usa a personalidade da sociedade comercial como anteparo” (“Curso de direito comercial”, 8ª ed., Saraiva, 1977, vol. 1, p.264).

Já o tratamento dado pela legislação brasileira, de aplicar as normas de preços de transferência às operações praticadas com paraísos fiscais, a par de outras regras isoladas, é adequado, embora ainda ressentindo de um instrumento mais poderoso na luta contra evasões fiscais praticadas por meio de oásis tributários. Uma alternativa é a própria doutrina  da desconsideração da pessoa jurídica, já aplicada, inclusive, pela Câmara Superior de Recursos Fiscais (acórdão nº CSRF/01-0.087), outra seria a adoção de uma norma anti-elisiva, que muito poderia colaborar com a concretização do princípio da neutralidade.

É certo que os contribuintes não são obrigados a organizar seus negócios de forma a pagar mais impostos. Bem ao contrário, a liberdade geral e econômica prescrita pela Constituição Federal autoriza que todos possam organizar seus negócios e atividades da forma como lhes parecer melhor, mais eficaz e mais econômica, inclusive do ponto de vista tributário.

Por outro lado, é freqüente a elaboração e aplicação de “planejamentos fiscais”, calcados na realização de simulações e até mesmo de fraudes. Por isso, é conveniente a adoção de uma norma que enfrente a zona cinzenta existente entre os conceitos de evasão e de elisão fiscais, algo comum em inúmeros países de forte tradição democrática e de respeito aos direitos dos contribuintes.

Nos Estados Unidos da América, como se nota da jurisprudência formada a partir do leading case US x Ishram – 1873, o princípio dominante é o de que, quando uma série de atos do contribuinte dirigem-se somente à obtenção de situações fiscais favoráveis, o direito deve permitir requalificá-los para que reflitam a sua substância econômica, desconsiderando-se transações sem significado econômico (princípio do privilégio da realidade econômica da operação). Na Suíça, entende o Tribunal Federal que qualquer cidadão pode  organizar sua atividade econômica de modo a pagar menor montante de tributos, mas limitado pelo abuso de direito. No Reino Unido da Grã-Bretanha, existe a desconsideração de atos cuja motivação é essencialmente tributária, visando-se unicamente ao resultado fiscal favorável.

Já outros países valem-se de normas positivadas em lei. Na Espanha, o artigo 25 da Lei Geral Tributária permite prescindir das formas jurídicas adotadas pelos contribuintes quando o contexto em que se insere o ato revela abuso de forma.

Na Holanda, o artigo 31 do AWR (Allgemene Wet Inzake Rijksbelastingen) autoriza a desconsideração de atos jurídicos, dos quais se deva presumir que não teriam sido realizados salvo para obter uma elisão total ou parcial da imposição tributária, com base na circunstância de que não teriam visado a qualquer mudança essencial nas relações jurídicas objeto do ato (nos moldes da norma geral antifraude sugerida por Franco Gallo, para tornar inoponíveis à administração “os atos que, sem ser evasivos, propiciam ao contribuinte uma vantagem indevida, pois são praticados com o propósito de evitar a aplicação de uma norma tributária” – in “Elisão, economia de imposto e fraude à lei” – tradução de Zelmo Denari – Rev. de Dir. Trib. nº 52, pag. 13). Na França, o artigo L. 64 do Livre des Procédures Fiscales determina que não são oponíveis à administração atos que dissimulem o sentido verdadeiro de um contrato ou de um acordo, mediante cláusulas que enumera. Na Alemanha, o Paragraph 42 da Abgabenordnung prevê que sempre que ocorrer abuso, a obrigação tributária existirá como se, para os fenômenos econômicos, tivesse sido adotada a forma jurídica adequada (conforme referido por Silvia Cipollina, na obra “La legge civile e la legge fiscale – Il problema dell’elusione fiscale”, Ed. Cedam – pags. 245 e seguintes).

No Brasil, já se nota uma tendência jurisprudencial no sentido de que o deslinde de um determinado caso não depende apenas de responder ele à totalidade dos requisitos para ser catalogado como elisão fiscal, pois depende também de aspectos e circunstâncias que compõem fatos ocorridos  e atos praticados, levando-se em conta abuso de direito ou abuso de forma que não se confundem com os casos de simulação (AC nº 93.01.29171-1/MG, j. em 10/12/97 pelo TRF da 1a Região – Rel. Juiz Olindo Menezes; AC nº 115.478-RS, j. em 18/02/87 pelo extinto Tribunal Federal de Recursos – Rel. Min. Américo Luz, dentre outros).

O princípio isonômico (art. 150, II, da CF) exige que não se institua tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente. Todavia, fere-se a isonomia não só por atos, mas também por omissões. Se a lei não distingue ou não disciplina determinado fato, permitindo vantagens ou privilégios que desequilibram o livre mercado ou que permitem tratamento não condizente com a capacidade contributiva, haverá quebra de isonomia.

O princípio da neutralidade da tributação exige a desconstituição de desigualdades que afetem o exercício da livre concorrência, proibindo-se atos que, formalmente corretos, possam ser praticados mediante dissimulação, em detrimento da liberdade de mercado. Do mesmo modo não se pode aceitar que a real capacidade contributiva de alguns seja escamoteada por formas abusivas de direito, deixando de ser onerado o contribuinte mais capaz ou igualmente capaz de contribuir por força de estar mascarado o verdadeiro sentido de seus atos.

A existência de princípios constitucionais como a legalidade tributária, a tipicidade e a liberdade de organização das atividades econômicas devem ser respeitados. Todavia, como quaisquer direitos, não são absolutos. Eles inserem-se em um sistema constitucional, formado também por outros princípios e normas, de igual dignidade, como o princípio da livre concorrência, que impõe a neutralidade tributária. A aplicação do ordenamento jurídico deve implementar um balanço entre todos esses princípios, de forma a que todos sejam aplicados, da melhor forma possível.

Permitir que a mera formalidade jurídica impere contra a substância da capacidade contributiva do contribuinte pode atender a tipicidade tributária, mas despreza a neutralidade tributária, impedindo que a livre concorrência se implemente adequadamente.

Concluo reafirmando minha impressão no sentido de que as modificações realizadas na legislação do imposto sobre a renda nos últimos anos são notáveis e que, como bem posto pela Secretaria da Receita Federal, ocorreu uma verdadeira reforma tributária nesse imposto.

As observações que fiz levaram em conta, fundamentalmente, a horizontalização da carga tributária, com os efeitos positivos referidos. Inúmeros outros aspectos poderiam ser apontados, o que, entretanto, não seria compatível com os limites destes breves comentários.

Na oportunidade, reafirmo minha satisfação e honra por ter sido distinguido para pronunciar-me sobre o tema e renovo a V. Sª. protestos de consideração e respeito.

 

Atenciosamente,

  Hamilton Dias de Souza

Análise Geral. In: TRIBUTAÇÃO DA RENDA NO BRASIL PÓS REAL. SRF: Brasília, 01 de agosto de 2001 às 11h41

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