Artigos

Artigos

Confira as principais
publicações em
Artigos da Advocacia
Dias de Souza e do
mundo jurídico

01 de setembro 2006 às 9H57

Desvios concorrenciais tributários e a função da Constituição

Por Hamilton Dias de Souza

Em 19 de dezembro de 2003, foi publicada a Emenda Constitucional 42, que inseriu na Seção I (“Dos Princípios Gerais”) do Capítulo I (“Do Sistema Tributário Nacional”) do texto constitucional o artigo 146 – A, que prevê que a “Lei complementar poderá estabelecer critérios especiais de tributação, com o objetivo de prevenir desequilíbrios da concorrência, sem prejuízo da competência de a União, por lei, estabelecer normas de igual objetivo”.

É inegável a influência do tributo na competição entre as empresas pela conquista de mercado, cujo sucesso dependerá, dentre outros fatores, do aumento da sua eficiência tributária que, por sua vez, implicará melhor condição de competir.

É nesse contexto que Marco Aurélio Greco observa que, além de suas características próprias, o tributo, na atualidade, apresenta outra feição toda peculiar. Na medida em que onera certas atividades ou pessoas, pode causar interferência no regime de competição entre as empresas, se não estiver adequadamente formulado ou não for devidamente exigido[1]. A par disso, outras distorções podem verificar-se, como o uso abusivo de medidas judiciais, como adiante será exposto.

Segundo Greco, tais interferências na competição podem surgir tanto em razão de as leis fiscais gerarem distorções ou desigualdades num mesmo setor, como também “se as leis estão adequadamente formuladas, mas sua aplicação concreta não faz com que sua potencialidade total se efetive”[2]. A perda de efetividade decorre principalmente da existência de vazios ou do surgimento de situações individuais não atingidas pelo tributo em razão de conformações peculiares que podem comprometer o equilíbrio concorrencial.

Considerando os efeitos da tributação na livre concorrência, esta já não se limita apenas ao mercado, mas deriva, principalmente, de um conjunto de normas de política econômica e fiscal, inserido num regime normativo cujo objetivo é preservar os princípios que informam a ordem econômica[3].

O objetivo do presente estudo é investigar a correlação entre os princípios da livre-iniciativa, livre-concorrência e isonomia em matéria tributária, e fazer a devida ponderação entre eles. É nesse contexto que se passa a analisar o artigo 146-A da Constituição Federal.

A correlação entre o princípio da livre iniciativa e da livre concorrência

A livre concorrência visa assegurar o regime de mercado no cenário econômico nacional, repelindo formas abusivas de dominação, seja mediante conduta estatal, seja privada, impondo-se a obediência a determinados padrões normativos[4].

A fixação de limites normativos parte da premissa de que a atuação do Estado não crie distorções no mercado, preservando-se a isonomia entre os concorrentes. A livre concorrência decorre da liberdade de iniciativa, enquanto um aspecto e uma das extensões das liberdades individuais[5].

O princípio da neutralidade do tributo em face do princípio da livre concorrência.

O princípio da neutralidade tributária deriva do atinente à livre concorrência que, por sua vez, se conecta com o que prestigia a liberdade de iniciativa, seja no sentido de liberdade de acesso ao mercado, seja no de livre conformação e disposição da atividade econômica. Significa, pois, a neutralidade do Estado perante concorrentes que atuem, em igualdade de condições, no livre mercado. Em nome da finalidade de “assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social” (Constituição Federal, artigo 170, caput), o Estado é obrigado a não privilegiar concorrentes.

No campo tributário, a neutralidade dos tributos em face da atividade econômica decorre, em especial, da proibição de tratamento desigual entre contribuintes e da exigência de respeito à sua capacidade contributiva. É óbvio que qualquer medida impositiva de natureza tributária interfere na capacidade competitiva dos concorrentes. Assim, o princípio da isonomia será ferido se as relações concorrenciais entre empresas forem afetadas pela tributação, de tal modo que esta favoreça/desfavoreça umas em face de outras.

A correlação entre o princípio da livre concorrência e o da isonomia em matéria tributária.

O princípio isonômico exige que não se institua tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente (artigo 150, II da CF). Isso, porém, não implica deva ele ser observado sem levar em consideração os demais princípios constitucionais. Assim, há determinadas situações que provocam desequilíbrios concorrenciais mesmo quando as normas são indistintamente aplicadas a todos os agentes. Tal pode dar-se, exemplificativamente, quando o tributo não é pago por alguém por razões as mais diversas, consistam elas em inadimplemento, planejamento fiscal, ou suspensão de exigibilidade por força de medida judicial.

É possível configurar-se, nesses casos, competição desequilibrada a exigir considerarem-se os princípios da livre iniciativa e livre concorrência. Não é demais ressaltar que princípios não se aplicam como regras. Supõem considerações axiológicas e sobretudo ponderação em face de outros princípios. Em determinado caso concreto, a aplicação de um princípio pode excluir ou abrandar a de outro em função do grau de fundamentalidade dos valores envolvidos.

Quer isso dizer que é possível dar peso adequado ao princípio da igualdade quando a situação exige maior eficácia dos princípios da livre iniciativa e livre concorrência. Se houver desequilíbrio concorrencial por razões tributárias, podem ser instituídos regimes de tributação diferenciados, desde que necessários para o restabelecimento de competição justa.

O artigo 146-A, da Constituição Federal, assume, nesse contexto, extraordinária importância. Como se disse, vocaciona-se a dar maior concreção aos princípios da livre concorrência e da capacidade contributiva em face do princípio da isonomia. Com base nele, podem ser instituídos regimes especiais sem agressão à Constituição Federal. A jurisprudência existente e que se formou antes do dispositivo analisado deverá levá-lo em consideração nos próximos casos submetidos aos tribunais[6].

Não é justo que aqueles que desequilibram a concorrência não possam estar sujeitos a regimes diferenciados a eles referidos. Com base no artigo 146-A, podem. Exatamente para assegurar a isonomia e a livre concorrência se justificam os regimes especiais. Isso deve ser levado em consideração pela jurisprudência.

Se, de um ponto de vista tributário, todos devem ser tratados igualmente, de um ponto de vista concorrencial, todos devem ser tratados com igualdade de condições de competir, sob pena de ferir-se o princípio da livre concorrência. Aliás, se um agente econômico atua no mercado sendo menos onerado que outro que se encontra na mesma situação, infringe-se não só o referido princípio da livre concorrência, mas também o da capacidade contributiva.

O artigo 146-A da Constituição Federal trata de desvios concorrenciais tributários, ao passo que o artigo 173, parágrafo 4º, da CF de problemas estruturais do mercado. Este vocaciona-se a regular violações à concorrência livre, enquanto aquele visa atingir desvios dessa natureza, ainda que potenciais, se tiver causa tributária. Trata-se, portanto, de verdadeiro instrumento geral que permite a atuação do legislador infraconstitucional, dentro de um juízo de razoabilidade, não somente em casos concretos mas nos casos em que se verifique a ameaça de desequilíbrio concorrencial causado pelo tributo.

Partindo da necessária interpretação sistemática da Constituição Federal, entendemos que a possibilidade de instituição de critérios especiais de tributação permite tratar, adequadamente, no plano constitucional, situações que afetam a concorrência. A edição deste dispositivo era fundamental para ratificar a possibilidade de serem estabelecidos critérios especiais de tributação, sem esbarrar na comumente alegada violação ao princípio da isonomia em matéria tributária.

A estrutura do sistema jurídico de prevenção aos desvios concorrenciais tributários após a edição do artigo 146-A.

A norma constitucional ora em análise poderá permitir sejam implementadas medidas eficazes no combate à competição desleal baseada no menor ônus tributário obtido por quaisquer meios, sejam claramente ilegais, sejam aparentemente legais, mas abusivos. É nesse sentido que importa diferenciar os regimes especiais a serem instituídos com base no artigo 146-A daqueles usualmente declarados inconstitucionais pela jurisprudência.

Enquanto estes últimos possuem fim meramente arrecadatório, aqueles objetivam, em última análise, neutralizar o papel do tributo na conquista do mercado por agentes econômicos, sem quebra da isonomia. O que se busca é permitir sejam criados mecanismos que equalizem o ônus tributário entre os que competem, o que, de resto, está em consonância com o princípio da capacidade contributiva.

O artigo 146-A é norma dirigida ao legislador infraconstitucional, atribuindo-lhe competência para a edição de critérios especiais de tributação. A lei complementar poderá estabelecer os critérios a serem observados pelas leis ordinárias, como norma geral. Os regimes especiais serão fixados pelas leis ordinárias. A lei federal antes existente e compatível com a norma constitucional é válida e prescinde de lei complementar. Após a fixação por esta de critérios gerais, mesmo as normas próprias de leis ordinárias a ela (lei complementar) estarão sujeitas.

Após tais considerações, merecem destaque algumas práticas anti-concorrenciais que podem ser disciplinadas a partir do novo modelo constitucional.

A aplicação do artigo 146-A na fixação de critérios especiais de tributação.

A lei complementar poderá estabelecer os requisitos para a identificação de desequilíbrios concorrenciais, indicar os critérios especiais de tributação passíveis de serem adotados e definir os limites a serem observados. Note-se, contudo, que o estabelecimento de critérios não significa a imposição de medidas repressoras, mas apenas a previsão de práticas que possam levar ao desequilíbrio e, de outro lado, instrumentos normativos aptos a evitá-lo ou eliminar seus efeitos se já ocorridos

Nesse contexto, conduta que implique vantagem competitiva fundada na redução ou na eliminação do ônus tributário pode ser capaz de caracterizar o desequilíbrio concorrencial tributário a ensejar a utilização do dispositivo. Não se trata meramente de falta de recolhimento de qualquer tributo, mas uma conduta contínua que permita a obtenção de uma vantagem durante tempo suficiente capaz de interferir no regular funcionamento do mercado, provocando desequilíbrios estruturais. Não é preciso, contudo, que o desequilíbrio seja nacional, variando de acordo com a dimensão geográfica do mercado relevante afetado (municipal, estadual, regional ou nacional).

O limite dessa competência, contudo, é que não haja meio menos gravoso para atingir as finalidades pretendidas, isto é, que a medida adotada seja necessária, dentro de parâmetros de razoabilidade (proporcionalidade), devendo vigorar apenas durante o tempo em que perdurar o desvio. Em homenagem ao princípio do devido processo legal, haverá sempre a necessidade de previsão de um procedimento administrativo para a apuração do desvio e para o estabelecimento de medidas aptas a resolvê-lo, com a participação de entidades representativas do setor.

A necessidade de regras específicas decorre da séria dificuldade de regular determinados setores de forma diferente dos demais. Setores submetidos à carga tributária elevada, como combustíveis, bebidas, cigarros, produtos farmacêuticos, têm sido alvo de concorrência predatória em que se utiliza justamente o tributo. A adoção de regras específicas pode consistir, por exemplo, na instituição de sistema monofásico apenas para certos produtos, tributação fixa, ao invés de ad valorem, para os que são objeto de elisão ou evasão fiscal, sistemas especiais de fiscalização e de recolhimento para certas empresas, e a imposição de outras obrigações acessórias.

Tais medidas, quando adotadas anteriormente à edição do artigo 146-A, da Constituição Federal, permitiam o argumento de que poderia haver tratamento discriminatório. O referido dispositivo dissipa eventual dúvida quanto à possibilidade de criação de regimes especiais de tributação, até porque decorre do princípio da livre-concorrência.

 

 

 

[1] – Cf. GRECO, Marco Aurélio. Planejamento Tributário. São Paulo: Dialética, 2004, p. 39;

[2] – Idem;

[3] – Cf. BASTOS, Celso Ribeiro e MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva, 1990, p. 26;

[4] – Idem;

[5] – Cf. Raffaella Niro, Profili Constituzionali della Disciplina Antitrust, Pádua, 1994, p. 122;

[6] – Cf. o entendimento do Supremo Tribunal Federal no julgamento do RE 195.927/MG, no qual a aplicação de regime especial de controle de fiscalização de ICMS foi afastada sob o fundamento de que “o ato da autoridade coatora bloqueou de modo profundo a atividade profissional lícita do contribuinte”. O autor foi eleito um das advogados mais admirados em pesquisa feita pela revista Análise Advocacia.

 

Os prêmios dos escolhidos foram entregues no dia 19 de setembro em São Paulo

Revista Consultor Jurídico, 01 de setembro de 2006 às 9h57

Últimos em Artigos