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05 de março 2005 às 10H51

MP 232: efeito carona e uso abusivo

Por Hamilton Dias de Souza

A grande discussão que se trava no país inteiro quanto ao mérito da medida provisória nº 232 parece esquecer uma questão fundamental: foram obedecidas as precondições constitucionais exigidas para a adoção de medidas provisórias? Afinal, antes mesmo de discutir o mérito da medida (temas como o aumento da carga tributária), a Constituição (art. 62, par. 5º) exige que o Congresso Nacional se pronuncie previamente sobre aquelas condições, pois, sem esse controle preliminar, o chamado uso abusivo das medidas provisórias não conheceria nenhum freio!
O fato alegado para justificar sua adoção foi a necessidade de correção das tabelas progressivas de Imposto de Renda para as pessoas físicas. Contudo o que se viu foi a inclusão de várias outras normas, referentes a fatos diferentes e desvinculados do seu motivo determinante e, ademais, invocando uma falsa razão para fazê-lo. Diante disso, cabe indagar, antes de qualquer coisa, se isso é constitucionalmente possível.

O Executivo tem abusado de sua competência ao dispor sobre matérias diversas no corpo de uma só medida provisória.

Por certo que não.

O artigo 62 da Constituição Federal autoriza a edição de medidas provisórias em caso de relevância e urgência. Que caso seria este? Evidentemente, seria algo do mundo dos fatos: uma situação de fato que se destaca de outros casos em escala de importância (relevante) e que demanda solução sem demora (urgente) mediante regulamentação jurídica com eficácia imediata, a tal ponto de não ser possível aguardar o prazo de conclusão do processo legislativo comum, ainda que formulado pedido de urgência na tramitação do projeto de lei. Esse fato ou situação de fato deve ser disciplinado por normas constantes de uma medida provisória que tratem dele -e só dele, porque é ele, afinal, que é relevante e urgente. A propósito, tem especial aplicação o disposto na lei complementar nº 95/98, no sentido de que os atos normativos em geral não deverão conter “matéria estranha a seu objeto ou a este não vinculada por afinidade, pertinência ou conexão”.

O que se expôs parece o óbvio. Entretanto a realidade é que o Poder Executivo tem abusado de sua competência ao dispor sobre matérias diversas no corpo de uma só medida provisória. Aproveitando situação que exige disciplina urgente, inclui normas que cuidam de fatos diversos. São as malsinadas “caronas”, que subvertem o processo legislativo e invadem a competência do Congresso Nacional.
No tocante à MP 232, as alterações legislativas propostas tiveram como motivo determinante o “atendimento aos princípios da anualidade e anterioridade que precisam ser observados para efeito de se promover alterações dos parâmetros das tabelas progressivas e das deduções do IRPF”. Sem dúvida, a atualização dos critérios de apuração do Imposto de Renda da Pessoa Física caracteriza caso relevante, por afetar toda a sociedade, e que demanda solução urgente, em vista da proximidade do prazo para a apresentação das declarações de 2005, autorizando, assim, a edição da medida.

Todavia vieram “de carona” disposições sobre temas que em nada afetam ou são afetados pela atualização da tabela do Imposto de Renda. De fato, a MP 232 aumenta a carga tributária para os prestadores de serviço (IR e CSL), disciplina retenção na fonte de tributos para produtores rurais (IR e CSL), restringe a competência do Conselho de Contribuintes e estabelece Imposto de Renda e CSL sobre a variação cambial de investimentos no exterior, a par de outras providências. Tais temas exigem soluções planejadas, relacionadas com uma política geral da tributação, e que requerem um exame de causas próprio do projeto de lei. Nada têm de um estado de necessidade, que imporia ao presidente da República a adoção de providência imediata, inalcançável segundo as regras ordinárias de legislação.
Mas o pior é que a justificativa adotada para a inclusão de tais temas foi “aumentar a eficiência da administração tributária e evitar a evasão de tributos”, com vistas a obter “impacto positivo na arrecadação, atendendo ao disposto no art. 14 da lei complementar nº 101, de 4 de maio de 2000 -Lei de Responsabilidade Fiscal”. Esta lei, porém, só se aplica quando houver benefício de caráter não-geral que importe renúncia fiscal a demandar a correspondente contrapartida de receita. Ora, a atualização da tabela do Imposto de Renda vale para todos e objetiva apenas adequar a tributação à capacidade econômica do contribuinte, não configurando, assim, benefício fiscal, muito menos de aplicação restrita.

Ademais, normas como as que tratam do processo administrativo fiscal não têm impacto direto na arrecadação. Portanto os motivos apresentados pelo governo federal são falsos, o que realça a inconstitucionalidade das providências que não guardam estrita relação com a situação que originou a medida provisória nº 232.
É tempo de pôr fim a essas práticas cuja inconveniência política tem sido ressaltada por toda a sociedade. A questão, porém, não se resume a juízo apenas de conveniência. Cuida-se de clara inconstitucionalidade por abuso da competência que o chefe do Executivo só pode exercer em situações excepcionais.

 

Hamilton Diasde Souza, 60, advogado, é membro da Academia Brasileira de Direito Tributário e do Conselho Jurídico da Fiesp. Foi professor de direito tributário da Faculdade de Direito da USP ( hamilton.souza@dsa.com.br ).

Tercio Sampaio Ferraz Junior, 63, advogado, é professor titular do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da USP ( tsf@magafer.com.br)

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