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13 de maio 2019 às 10H51

O dever de imparcialidade dos agentes públicos

Por Hamilton Dias de Souza

Sanha fiscal tem levado muitas vezes à lavratura de autos de infração contrários à jurisprudência do CARF em matéria federal

O Estado Democrático de Direito (art. 1º da CF/88) caracteriza-se pela independência das funções legislativa, executiva e judicial (art. 2º da CF/88), garantia dos direitos fundamentais (art. 5º da CF/88) e submissão do Estado ao império da lei. A exigência de legalidade é a que mais de perto respeita ao Direito Administrativo. Com efeito, o art. 37 da Constituição Federal é elemento nuclear e estabelece os princípios que devam ser observados pela Administração Pública, dentre outros, a impessoalidade e moralidade.

O princípio da legalidade administrativa é o que caracteriza o Estado de Direito. A Administração Pública é escrava da lei. Nada pode ser feito por agentes públicos a não ser em virtude de lei. Disso resulta que todo ato administrativo está adstrito a uma norma legal que dá sustentação a determinadas ações para os fins nela designados.

Afere-se a legalidade por vários ângulos, dentre os quais o da finalidade. Quando o escopo legal não é observado não se respeita o próprio espírito da lei, o seu conteúdo. Dito de outra forma, viola-se a própria lei. Assim, quando a autoridade administrativa usa seu poder para finalidades diversas das perseguidas por aquela, ocorre desvio de finalidade.[1]

Depreende-se desse contexto que, se houver parcialidade, ainda que a bem de supostos interesses governamentais episódicos, como necessidades prementes de incrementar a receita pública, haverá desvio de finalidade e, portanto, ilegalidade[2]. Para que a lei seja observada, o agente deve interpretá-la com isenção. Extrapolar esse limite importa em desvio de finalidade ou até, em determinados casos, em “abuso de autoridade”[3].

É por essa razão que o auditor fiscal deverá agir sem levar em conta quaisquer outros interesses, que não o cumprimento fiel da lei, independentemente de eventuais objetivos arrecadatórios. O que se está a afirmar é que a imparcialidade é decorrência lógica e necessária da legalidade. Se essa não se verificar haverá desvirtuamento do espírito da lei, pois quem desatende o seu fim desatende-a ela própria. Por isso, quem a interpreta com parcialidade necessariamente a desatende.

O princípio da impessoalidade, por sua vez, tem por pressuposto o da legalidade, na medida em que o agente está impedido de buscar qualquer outro objetivo que não seja o atingimento da finalidade pública expressa na lei. Disso resulta a vedação da prática de ato administrativo pautado em interesse individual. É dizer, o ato deve estar desvinculado de fatores subjetivos, como simpatias, antipatias, ideologias políticas, preconceitos ou quaisquer outros. Em suma, deve prevalecer a neutralidade dos agentes na busca pela concretização do interesse público expresso na lei.

Na mesma linha de raciocínio, a moralidade afere-se diante do conjunto de regras e princípios a que se submete o ato estatal, como os princípios da razoabilidade e justiça[4]. A moralidade está intimamente ligada à ideia de probidade dos atos administrativos, ou seja, honestidade, retidão e honradez. Tanto isso é verdade que os atos imorais lesivos ao erário, como os eivados de corrupção, caracterizam improbidade, sujeitando-se às penalidades previstas no §4º, do art. 37 da CF. Além disso, qualquer cidadão poderá propor ação popular para anular ato lesivo à moralidade (CF, art. 5º, LXXIII).

Em suma, extrai-se da impessoalidade e da moralidade – como decorrência do princípio da legalidade – que os atos administrativos devam ser dotados de neutralidade subjetiva, ou seja, de imparcialidade. Se houver parcialidade não se cumprirão os desígnios da lei, pois o mote da ação estatal estará voltado a finalidade diversa da ali prevista.

Daí a primeira conclusão no sentido de que só haverá respeito aos princípios da legalidade, impessoalidade e moralidade se houver interpretação isenta da lei tributária, isso é, imparcialidade dos agentes fiscais no ato de constituição do crédito tributário.

Para fins de constituição do crédito tributário (art. 142, CTN) incumbe ao auditor fiscal a coleta de elementos de fato para identificação da ocorrência do fato gerador da obrigação tributária. O próprio parágrafo único do referido dispositivo determina que o lançamento é uma atividade administrativa “vinculada e obrigatória, sob pena de responsabilidade funcional”. Por se tratar de ato vinculado, os motivos que o justificam só podem decorrer da lei.

No exercício de seu mister, o Fiscal deve cumprir estritamente a lei, sem o que poderá causar prejuízos por vezes irreparáveis aos contribuintes. Afinal, tão certo quanto o dever fundamental de os contribuintes pagarem seus impostos é o direito de pagá-los na estrita medida do previsto na legislação. Mais, o particular tem o direito de confiar na neutralidade e imparcialidade da Administração Pública.

Se houver qualquer motivação diversa da consistente no estrito cumprimento da lei, como a de arrecadar mais do que o devido; atender ao superior hierárquico; aplicar multa qualificada para beneficiá-lo indiretamente, o fiscal descumprirá os mencionados princípios do art. 37 da Constituição Federal. Isso ocorre quando se verifica uma atitude mental do auditor fiscal que, na dúvida, opta pelo tratamento que for mais gravoso ao contribuinte. É o caso, por exemplo da cobrança das multas qualificadas, sem a efetiva comprovação de dolo do contribuinte. A propósito, mais da metade das decisões do CARF no ano de 2016 anulou autos de infração lavrados contra os contribuintes, como demonstra o relatório desse Tribunal[5].

Essa postura de, na dúvida, autuar o contribuinte com a imposição de multa qualificada, contribui para o cenário de insegurança jurídica do País, desestimulando investimentos e punindo empreendedores. Quando a fiscalização exacerba dos seus poderes ao lavrar autos de infração com parcialidade, o prejuízo ao setor produtivo é real. De fato, poderá haver desde a oscilação do valor de ações de companhias na bolsa de valores, reflexos sobre a imagem e a credibilidade de empresas, dificuldades para obtenção de recursos financeiros, além de uma série de outras implicações. O que se pretende dizer com isso é que a autuação fiscal é grave em si, ainda que venha a ser desconstituída posteriormente. Por isso, a imposição de multa qualificada exige especial imparcialidade e motivação, dadas as consequências nefastas que gera sobre a vida dos indivíduos e das empresas.

Ademais, de acordo com o disposto no art. 25, inciso II do Decreto 70.235/72, o julgamento realizado pelo CARF deveria ser paritário, e, portanto, com igualdade de condições – tanto para a Fazenda como para o contribuinte. Mas a composição em igual número de conselheiros representantes da Fazenda e do contribuinte fica, na prática, neutralizada pelo fato de incumbir ao conselheiro Presidente da Turma (representante da Fazenda) o voto de qualidade no caso de empate na votação. Isso significa que há apenas paridade aparente na composição do CARF.

O voto de qualidade do presidente da Turma ou mesmo da Câmara Superior conduz a uma parcialidade objetiva. Havendo empate prevalece o decidido pelo representante do Fisco. Logo, não há verdadeira paridade. Com base em dados de 2016, o Núcleo de Estudos Fiscais da Fundação Getúlio Vargas – NEF/FGV constatou que, em caso de empate, a Fazenda Nacional sagrou-se vencedora em 100% dos casos apreciados pela Câmara Superior do CARF que é o último grau do contencioso administrativo tributário[6].

Tratando-se de decisões proferidas em último grau recursal, os entendimentos firmados pela Câmara Superior são aplicados de modo uniforme em centenas de outros casos sobre os mesmos temas de fundo, o que denota a importância de que haja, efetivamente, paridade nos aludidos julgamentos.

Do que se expôs parece claro que na delicada relação fisco-contribuinte há um desequilíbrio sistêmico causado por variadas razões, dentre as quais a falta de percepção pelos agentes públicos de que a imparcialidade é seu dever. Arrecadar o máximo possível, ainda que se valendo de interpretações artificiosas, vai de encontro aos princípios basilares que informam toda a Administração Pública do País.

Não se trata de censurar o trabalho fiscal gratuitamente, mas sim de perceber que motivações pessoais ou ideológicas, desconectadas do espirito da lei, não se sustentam. O importante não é autuar muito, mas sim autuar bem. Autuar muito, deliberadamente e de forma inconsistente, prejudica o País e o próprio Estado. Prejudica o Estado não só por criar problemas ao particular autuado (como a necessidade de provisão em balanço para fazer frente ao débito fiscal e a perda de sua capacidade de investimento), mas por criar insegurança, que é um dos maiores fatores para afastar novos investidores. Não há liberdade econômica (tal qual prevista no art. 170 da CF) num ambiente de insegurança, que atualmente é provocada por uma série de fatores, entre os quais o sistema tributário caótico, o excesso de normas, o custo de conformidade e a jurisprudência oscilante.

O fato é que se verifica sanha fiscal que, além de motivada pelo esforço arrecadatório e por interesses individuais, tem levado muitas vezes à lavratura de autos de infração contrários à jurisprudência do CARF em matéria federal e até aos precedentes do Judiciário.

No contexto atual, é necessário garantir a imparcialidade da conduta dos agentes públicos em duas frentes: (i) alinhando-a com a defesa dos interesses públicos na constituição do crédito tributário e (ii) pela revisão do processo decisório do CARF, no qual o voto de qualidade causa um desequilibro de forças. Ambas medidas contribuirão para a transparência da Administração Pública, para a liberdade econômica e a segurança jurídica, fortalecendo as instituições inerentes ao Estado Democrático de Direito.

 

[1] CRETELLA JÚNIOR, José. Dos atos administrativos. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 305.

[2] MELLO. Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, 32ª ed. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 109.

[3] Lei 4898/65.

[4]  MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional. 9ª ed. São Paulo: Atlas, 2013, p 777.

[5] CARF: Relatório de decisões do CARF, de janeiro a dezembro de 2016. Brasília: 2017. http://idg.carf.fazenda.gov.br/publicacoes/relatorio-decisoes-carf

[6] LEME, Cristiane; SANTI, Eurico Marcos Diniz; HOFFMAN, Susy. O voto de qualidade em números: 100% dos votos de qualidade foram favoráveis à Fazenda Nacional na Câmara Superior.

Disponível em https://jota.info/colunas/observatorio-do-carf/observatorio-carf-o-voto-de-qualidade-em-numeros-12082016. JOTA, 12.08.2016.

Observamos que a pesquisa foi realizada com base em acórdãos de 2015/2016, sendo que os dados estão restritos aos restritos aos julgamentos realizados pela CSRF, cujos acórdãos foram publicados até 30/06/2016. Na amostra houve 347 julgamentos decididos pelo voto de qualidade, sendo 6 decididos sem julgamento do mérito e 6 com vitórias parciais do contribuinte.

HAMILTON DIAS DE SOUZA – Advogado, sócio fundador da Advocacia Dias de Souza e da Dias de Souza Advogados Associados, mestre e especialista em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).

Jota Info, 13 de maio de 2019 às 10h51

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