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19 de setembro 2023 às 15H22

A visão do tributarista Hamilton Dias de Souza sobre a reforma tributária.

Conversamos com o tributarista Hamilton Dias de Souza sobre a sua visão sobre a reforma tributária que está em discussão no Congresso Nacional. Depois de aprovada pela Câmara dos Deputados, a PEC 45/2019 encontra-se em discussão no Senado.

Qual a sua avaliação sobre a reforma tributária que se encontra em discussão no Senado?

Essa não é a reforma tributária que eu desenharia. Para mim, essa reforma tem um defeito fundamental, que é uma concentração muito grande de poderes na União. Vou começar pelo fim. Se a reforma passar, a União vai ter competência legislativa sobre 91,57% da carga tributária nacional. Do ponto de vista federativo, trata-se de uma concentração de poder legislativo inconveniente.

Isso é ruim por todos os aspectos. Primeiro, porque uma federação é uma boa ideia num país com a extensão do Brasil. Segundo, porque isso é uma matéria que não é sequer passível de emenda constitucional, pois a federação não pode ser amesquinhada ou, de alguma forma, aviltada. Não existe federação com chapéu na mão. O fato de estados e municípios terem algum poder de arrecadar e fiscalizar não é competência tributária, e sim capacidade tributária. A competência tributária é o poder de criar uma lei relativa a um tributo com as especificidades que o poder competente queira.

Com essa reforma, estados e municípios não terão mais competência tributária sobre o ICMS e o ISS, respectivamente. A réstia de competência, se é assim que se pode chamar, que eles terão será apenas uma variação de uma alíquota estabelecida pelo Senado Federal. Essa réstia será muito inferior à competência que eles tinham antes para legislar amplamente sobre os tributos.

Eu estou me estendendo muito no óbvio, mas é curioso que haja uma difícil aceitação desse óbvio pelos formuladores da PEC 45/2019. Apesar de ter tentado, eu não consegui obter uma resposta positiva ou negativa quanto a isso. Eu já conversei com o relator da reforma no Senado, o senador Eduardo Braga, que achou razoável a ideia de fazermos alguma coisa em termos de pacto federativo.

Efetivamente, nós temos um problema federativo. O ministro Gilmar Mendes já apontou que essa questão federativa pode vir a ser o centro dos debates no Supremo Tribunal Federal (STF) no pós-reforma. O assunto, portanto, é muito sério.

Dentro deste assunto, nós poderíamos mudar um pouco o sistema, mantendo a sua estrutura dorsal no Senado. O Conselho Federativo poderia ter a União com ⅓, os estados com ⅓ e os municípios com ⅓, sendo que as deliberações seriam por ¾. Essa deliberação impediria que qualquer um dos três pudesse deliberar sozinho, e mesmo que estados e municípios se juntassem, eles não teriam poder para deliberar contra a União. Dessa forma, haveria a necessidade de acordo.

Eu devo dizer que não estou inventando a roda. Em 2017, houve uma reforma tributária na Índia cuja solução foi essa. A Índia vivia um caos tributário similar ao do Brasil, mas, posteriormente a sua reforma tributária, ela vem tendo, ano após ano, índices de crescimento exponenciais. Aqui eu pergunto: se havia uma questão federativa na Índia, que foi composta dessa forma, que está funcionando bem e que era similar a do Brasil, por que não aproveitar, pelo menos em parte, ou pelo menos debater, uma ideia tão relevante quanto essa?

O atual sistema tributário é tão ruim a ponto de ter que ser descartado?

O atual sistema tributário ficou ruim. A Constituição de 1988 não foi mal feita. Ela foi sendo deturpada, pouco a pouco, por várias razões, como a profusão de legislações posteriores à Constituição, muitas delas emanadas pela União por interesses arrecadatórios. Legislações essas que foram mantidas pela jurisprudência sob o argumento, por exemplo, de que isso poderia afetar as finanças do país.

Pouco a pouco, nós fomos tendo modificações conceituais que alteraram o desenho da Constituição de 1988 e que transformaram o sistema, como dizem com alguma razão, num verdadeiro caos tributário. Do jeito que está hoje, o sistema tributário tem que ser reformado.

Na sua avaliação, por que se insiste tanto em se analisar um projeto que é tão criticado e que levanta tantas dúvidas, em vez de se analisar outros projetos como, por exemplo, a PEC 46/2022 ou a reforma do próprio sistema tributário atual?

A PEC 46/2022 é bastante parcial. Como ela manteria os atuais tributos sobre o consumo, ela não responderia a algumas questões. Por exemplo, o ISS foi concebido como um tributo eminentemente local e que interferiria muito pouco na cadeia industrial. Hoje, entretanto, o ISS entra demais na cadeia industrial, pois na medida em que a tecnologia avança, os serviços passam a ser parte dessa cadeia, mas como ele não dá direito a crédito, ele provoca um efeito cumulativo. Por mais que haja uma necessidade de se mexer no ISS, a PEC 46/2022 não respondeu a isso.

Com relação ao sistema atual, ele ficou tão mexido não apenas pela profusão de leis, mas pela jurisprudência do STF, da qual eu sou crítico. Por exemplo, as contribuições, a partir de 1988 e com a jurisprudência do Supremo, passaram a ter uma elasticidade enorme. A COFINS, que veio da Constituição passada como uma pequena contribuição, passou a tomar um vulto na arrecadação da União para o qual ela não foi criada. A Cofins tinha um fim social e incidia apenas numa parcela da receita.

Nós temos tributos inconstitucionais que foram validados pelo STF na medida em que o tribunal modulava. Vinha uma legislação inconstitucional, que depois de durar 10, 12 anos, era julgada e modulada pelo STF. O passado era considerado inconstitucional, mas a União pôs no bolso e ficou, o que a estimula a criar tributos inconstitucionais, pois enquanto não for julgado, a União leva e o contribuinte perde, a não ser os que ingressaram com ações.

Caso esse projeto seja aprovado da forma como está, o que deve acontecer?

Eu creio que haverá uma judicialização muito grande relativa às questões federativas. Há pouco tempo, eu tive uma conversa com um ministro do STF onde falávamos do expressivo número de normas tributárias da reforma, quando ele me disse que cada uma dessas normas será objeto de uma decisão do STF. Ou seja, todas essas normas, de uma forma ou de outra, serão, num determinado momento, objeto de considerações por parte do STF.

O STF, com certeza, não terá a mesma ideia sistêmica de quem pensou a reforma. Com isso, as decisões acabam sendo tomadas apenas por um ângulo específico daquele determinado artigo da Constituição. Quando isso se soma a milhares de decisões, o que eu vejo para o futuro é uma nova Babel Tributária.

O que deveria ser priorizado numa reforma tributária?

Simplificação, justiça fiscal, segurança jurídica e um equilíbrio na delicada relação entre fisco e contribuinte. Hoje nós temos o todo poderoso Estado, onde os poderes constituídos olham para ele, que, de alguma forma, tem o contribuinte como alvo externo a esse mundo ao qual todos pertencemos.

Uma reforma tributária deveria ter princípios honestos e olhar para o país como um todo, e não para os interesses episódicos do poder público de arrecadar mais e a qualquer custo.

Qual a sua percepção sobre a visão dos tributaristas sobre a PEC 45/2019?

Há uma grande divisão. Há aqueles que acham que ela é péssima e que o ideal é que ela não passasse; aqueles que acreditam que poderia haver uma reforma tributária infraconstitucional, pelo menos em alguns aspectos, e, ao final, aqueles que, como eu e muitos tributaristas, veem que a PEC 45/2019 está aí. Como o relator da PEC no Senado já disse que a sua estrutura será mantida, eu penso em ajudar. Pelo menos estou tentando dar alternativas, como essa do sistema indiano, para melhorar a PEC.

Contudo, devo dizer que não tenho dúvidas de que essa reforma tributária protege os interesses da União e os interesses arrecadatórios dos poderes públicos, não tem viés pró-contribuinte e, certamente, levará a um aumento da carga tributária.

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